Entre pelejas e carapinhas

Eu pensava que raspar e alisar o cabelo entre a boleirada, começou mesmo com Ronaldo e Neymar, mas lendo o clássico O negro no futebol brasileiro de Mário Filho, percebi que isso é tão velho quanto as causas do fato.

Friedenreich já apontava esse comportamento desde o início do século 20. O primeiro a fazer mil gols é descrito como um mulato (filho de uma negra com um alemão), que antes de entrar em cada partida ficava se esforçando em manter a madeixa estivada, ou com um gorro, caso contrário não subia em campo. Esse não era um caso raro, só o mais famoso.

Pouco depois veio a era do pó de arroz, como artefato principal dos jogadores negros do Fluminense, pra dar o tom da brancura antes dos Jogos e não desagradar os torcedores e nem a cartolagem do time da elite carioca. Até porque negros no futebol profissional eram uma novidade, já que ninguém os queria. Por Ironia, o primeiro a apostar no talento dos jogadores negros foi o Vasco, o time da colônia. Fato que contou com a admiração de Carlos Drummond de Andrade, pois o poeta declarou ser torcedor do Vasco por ter sido o primeiro time a assumir a negrada.

O apelido de “pó de arroz” ficou na torcida do Fluminense, e por conta de ser tricolor e formado pela elite da cidade, esse apelido foi estendido à torcida do São Paulo. Há quem afirme que a prática do pó de arroz também contagiou os jogadores paulistas, mas a contradição é que o tricolor do Morumbi contratou Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, poucos anos após sua fundação em 1942, e em 1947 contava com Adhemar Ferreira da Silva, o “ouro negro brasileiro”, bicampeão olímpico em 52/56 (salto triplo), na sua equipe de atletismo.

Outro fato curioso é que o São Paulo foi o primeiro clube a contar com mulheres negras no atletismo, como no caso das velocistas Melania Luz, primeira atleta negra do Brasil a participar de uma Olimpíada, em Londres (1948) e Wanda Santos, medalhista pan-americana em Buenos Aires (1951), México (55) e Chicago (59), segunda mulher negra brasileira em Olimpíadas.

A aceitação dos atletas negros e negras no futebol e no atletismo não tem como ponto principal a superação do racismo e sim o desempenho acima da média desses atletas, e os casos pioneiros de Vasco e São Paulo são positivos, mas devem ser relativizados. Pois, mesmo depois de estarem no quadro de atletas profissionais, os jogadores negros ainda tentavam se embranquecer na cor e no cabelo.

O curioso é que Mário Filho aponta Pelé, criticado por sua indiferença com as lutas da comunidade negra, como pioneiro em manter a carapinha, com seu famoso topete, em meio aos neymares do século passado. Tanto que, não só por causa dele, o espetacular Santos dos anos 60/70 era requisitado mundialmente, inclusive na África, onde foi apontado como o time do pan-africanismo, apesar de alguns jogos terem sido armados para dar uma moral populista aos ditadores na África e Pelé ter se recusado, anos depois, a receber uma homenagem dos Black Panthers nos EUA, quando foi atuar no Cosmos de Nova Iorque. Dialéticas da bola.

Já nos últimos anos, muitos dos boleiros, incluindo Roque Júnior e Tinga, que mantiveram seus dreads mesmo no Brasil, só deixam o cabelo crespo crescer depois de desembarcarem na Europa. Basta ver o próprio Wellington (que foi pra Alemanha e ao voltar pro Palmeiras rapelou de novo), Cristhian (ex-Corinthians), Marcelo (Real Madrid) e Taison (Metalist), entre outros. Será porque lá nossa identidade é marcada pelo outro? Ou porque fica mais fácil manter a natureza das madeixas sem a pressão dos colarinhos e microfones esportivos do Brasil?

Há casos como o de Daniel Alves – tantas vezes xingado de forma racista e de ter recebido cascas de banana na lateral –, que pintou o restinho do cabelo de loiro pra ver se combinava com os olhos verdes, e pouco depois voltou atrás, dizendo em uma entrevista que o racismo na Europa não tinha jeito.

Mas há quem mantenha um contraponto, e no universo das tranças, os antes carecas Vagner Love (ex-Palmeiras e Fla, atualmente na China) e Carlos Alberto (ex-Flu, e Vasco), mesmo depois da Europa mantiveram o estilo descoberto na terra do gelo. Carlos Alberto tem arriscado um tímido black power à la Reinaldo, PC Caju e Jairzinho, os panteras dos anos 10. Veremos até quando.

No Brasil, apesar das piadinhas, o apreço por uma madeixa à la Friedenreich é mais aceito do que os imponentes dreads de Tinga. Já ouvi comentarista ficar atribuindo uma má atuação do volante pelo peso do cabelo, e mesmo os blacks de Cortês e William Barbio também foram ridicularizados em uma transmissão de rádio, enquanto eu ouvia um jogo no radinho sentado na arquibancada do Morumbi.

Manter a carapinha no Brasil não é tão simples e cordial como a história oficial sugere. Aqui, o racismo no futebol, apesar de bem acobertado na crônica esportiva por frases como “não quero acreditar nisso” e “não vou discutir esse assunto”, ainda provoca estragos na identidade dos jogadores, e está longe de ser um problema exclusivamente europeu, como muitos pensam.

(Crônicas de um peladeiro, p. 90-95).

Mané Garrincha de Lima Barreto

Muitos acreditam que a mentira só deixa de ser imoral na excelência dos escribas, já no futebol a mentira é camisa dez. Há tempos, decide, dita o ritmo da peleja, no vai-não-vai, fez­que-foi-mas-não-foi, no da vaca, na pedalada, no chapéu, na paradinha, no rolinho. Se você aprecia literatura e futebol ou uma das duas artes, sabe que tem um bom gosto por mentiras.

Não há nada mais mentiroso que um drible, o momento mais poesia da bola. O drible é um concreto fingimento, uma enganação. Todo driblador é imoral, cafajeste, sangue frio, não tem piedade de quem mal conhece, como fazia Mané Garrincha com seus Joões.

Na literatura, a mentira também é tempero essencial. Mesmo quando os livros nos envolvem em fatos reais, o escritor – malicioso como um atacante –, nos transporta ao seu mundo pela mentira.

Acreditamos em suas palavras, imagens, cores e rostos criados pela mágica da engabelação; ou será que Castelo seria contratado como professor de javanês, pelo Barão de Jacuecanga, se não fosse pelo 171 perspicaz de Lima Barreto?

O que dizer do pandemônio que virou a pacata Tubiacanga, uma cidade revirando defuntos para desvendar o segredo do ouro de Raimundo Flamel? Esse é um dos maiores dribles da literatura brasileira, como a jogada clássica de Mané na ponta direita, que desnorteou os gringos na Copa de 62, uma história canônica, como é A Nova Califórnia.

Na bola e na página a mentira é uma entidade, sobrenatural. Para deixar de ser o humilde Manuel Francisco e se tornar o eterno Mané Garrincha, ir de um simples Afonso Henriques a um célebre Lima Barreto, é preciso, antes de tudo, ser um mentiroso de alma.

Na bola e na página a mentira não requer só técnica, senão os melhores mentirosos viriam das escolinhas de futebol ou dos cursos de criação literária. Para ser um mentiroso imortal, é preciso poetar com bola, é preciso driblar com a caneta.

Na página, o leitor é como um torcedor fanático, e deve estar de poros abertos para sentir as mentiras que os escritores pregam, pois todo torcedor e todo leitor gostam mesmo é de sentir mentiras que valem a pena, daquelas que depois de um gol ou ao final de um romance, dizemos: “Essa sim é uma verdadeira mentira!”.

Ninguém gosta daquele zero a zero truncado, sem chute a gol, com uma falta a cada dez segundos, dá sono. É como um livro mal escrito, que a gente larga no meio e deixa esquecido, o jogo se apaga da memória e o livro se cobre de poeira em um canto qualquer.

Os boleiros, assim como os escritores, aplicam sua magia com a caneta, um debaixo das pernas de um João, o outro costurando palavras como num gol antológico, em ambos os casos é preciso fôlego e uma boa estratégia.

Os mais experientes ensinam que, nas pelejas, quem corre não é o jogador, é a bola, e nas letras as histórias fluem com vida própria, não se deve aprisioná-Ias.

Lima era um prosador ousado como um ponta, craque com as letras. Garrincha mal sabia ler, assinou até contrato em branco, mas escrevia poesias com as pernas tortas. Mané, provavelmente, não gostava de literatura, assim como Lima odiava football. Mané foi o Lima da bola e Lima o Garrincha da página. Tornaram-se imortais, por serem sacerdotes de mentiras sagradas. Por pouco não foram contemporâneos. Uma pena! Se os dois se encontrassem para tomar um trago, é certo que fariam uma boa tabelinha.

(Crônicas de um peladeiro, p. 56-58).

 

Poemissão

...desenzalar

a cognição, desacoturnar

as veredas,

 

desconhecer as fardas

e desenquadrar as

esquinas,

 

aguçar as teias,

esparramar pigmentos

plantar nas brechas da carne

 

encrespar

as espirais,

me aquilombar

na confluência malunga,

 

me umbigar nos quintais

como semente forte,

fecunda

 

receber passes

de agrado e segredo

me nutrir da doçura

dos grandes pequenos

 

amar...

com mais cor,

escurecer a

afirmação

 

pra firmar os vestígios,

aquecer os silêncios

de vida e presença

aos que virão.

(Acorde um verso, p.16-17).

Mapas de asfalto

há tempos que o céu

das beiradas

acorda cinzento

 

as pedras ficam intactas

endurecendo vidas

pelas esquinas

 

 

a esperança passa

como ventania

pelas ladeiras

 

e o asfalto grita

denunciando

mentiras vencidas

 

são heranças de uma

cidade açoitada

em silêncio

 

nos mocambos de hoje

germina a resistência

do amanhã

 

em cada quintal

um traçado

autoestima se firma

 

no olhar da mulecada

vejo uma trilha

sedenta de história

 

é batuque,

rodeando as intenções,

cravando horizontes

 

grafitando nos

muros, poemas

da nossa virada

 

declamando ação,

sacudindo vozes

 

e na espreita das ruas

ecoam as rimas

num versar ritmado de redenção!

(Acorde um verso, p.22-23).

Sereia

arabô ayô!

arabô ayô!

odò ìyá rainha!

tu que és musa

soberana dos poetas

 

embala toda essa gente

que faz terreiro no seu quintal

e clama proteção

em barquinhos de esperança

 

agita tua imensidão

em ventos salgados

e maré de bom agrado

 

para a brisa do teu cheiro

espalhar chuvas

de pipoca e canjica

no seu grande dia.

(Acorde um verso, 2014, p.48).