Verbo negrar

 

Eu negro

Tu negras

Ele ou Ela negra

Nós negramos

Vós negrais

Eles ou Elas negram

 

(América negra & outros poemas afro-brasileiros, p. 73)

 

O contra-lei & outros poemas (trechos)

 

(O contra-lei & outros poemas, p.17)

 

 

(O contra-lei & outros poemas, p. 59)

  

 

 

(O contra-lei & outros poemas, p. 23-24).

A jovem senhora

Elisio Lopes Jr.

QUEM: Esposa amarga, usando um chapéu com flores.

STATUS: Carrega a mala com o peso de sua frustração.


(Em silêncio, na estação do trem que nunca chega, ouvindo vozes vindas do armazém.)

 

As mulheres do armazém estão sempre sorrindo. Sem se importar com a hora, riem a qualquer minuto. Eu durmo e acordo ouvindo as gargalhadas. Parece que a festa é dentro da minha casa. E a música? É como se a música estivesse aqui dentro dos meus ouvidos. Eu sempre as ouço, todos os dias! E são as risadas mais espalhafatosas que já ouvi. Tem uma que começa lenta e explode em urros como animais, tem outra que primeiro dá um grito, depois se espalha cheia de dentes. Algumas delas se fazem de tímidas ao sorrirem. (Imitando:) “rá, rá, rá”, seguido de comentários: (Imitando:) “Rá, rá, rá, você é tão engraçado!... Rá, rá, rá, sim, eu quero mais um gole do seu vinho!... Rá, rá, rá...” elas gargalham... elas gargalham mesmo. Quando a festa acaba, elas dormem ali mesmo, no salão, com a boca torta em cima das mesas, agarradas aos clientes... às vezes bêbadas, maquiadas... com as garrafas vazias... é assim que eles são felizes! Os homens e as mulheres do armazém são sempre felizes. Eu não tenho nada com isso. É uma vida que não é a minha! Eu não deveria olhar para aquele antro. (Delira.) Mas aqueles gritos e a música entram pelos nossos ouvidos, pela nuca e a gente fica bêbada, mole nos braços da noite... sozinha, sonhando... Até que o sono vem e nos leva de volta ao quarto de onde nunca deveríamos ter saído. Eu não olho sempre, só de vez em quando. Quando não me contenho. Olho, sim, e naquele instante desejo trocar de lugar com elas. Sei que não deveria olhar nunca! É outro mundo, que não é o nosso: uma vida que troca o dia pela noite, à noite sempre com as garrafas e os homens. Mas eu penso... as mulheres do armazém é que devem ser felizes!

(In: Monocontos: histórias para ler e encenar, p. 84-5)

 

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Dona Ivone Lara

 

Elisio Lopes Jr.

QUEM: A grande dama do samba.

STATUS: Suave e no miudinho.


(Agradecendo ao aplauso do público e depois refletindo, ao observar a plateia.)

 

De todos os sambas que cantamos aqui, nenhum tem a melodia da vida real. É tudo ilusão. Um sonho meu. Este é a única canção que eu não consegui compor nesta minha vida. Esse dia não existe em nenhum livro de memória! Essa escola não desfilou, essa roupa, meus filhos me olhando, nada disso é real! E toda essa fantasia só é possível porque eu consegui! Se vocês estão diante dos seus olhos é porque eu consegui: esta preta, aqui, pobre, filha de um operário preto batuqueiro, que morreu carregando ferro nas costas, e de uma lavadeira sambadora, que teve medo, mas se virou sozinha pra criar duas filhas, viúva aos 22 anos. Ela conseguiu, e eu também! Estudei, casei, pari... e, entre uma coisa e outra, guardei um tantinho assim da minha força pra não deixar de acreditar que eu podia. É! Pode chamar esta preta, aqui, de abusada, de folgada, mas eu consegui. E se eu consegui é porque o samba me trouxe, me embalou, me vestiu, lambeu minhas feridas e me curou. Porque essa vida não é doce pra ninguém, né? Mas, pra gente, é pior! O mais amargo da vida é sempre oferecido primeiro pra mulher. E, o amargo, a gente prova desde cedo. Agora, o doce, o doce a gente precisa correr atrás. Eu conquistei o doce da vida e vou lamber os beiços até o final. Não importa se a canção é real ou de fantasia. E se alguém tentar lhe dizer o seu lugar, vá no miudinho, se ajeite na cuíca, rode no pandeiro, respire no cavaquinho... e não aceite! O nosso lugar é na frente, o nosso lugar é no meio da batucada, rodando nossa baiana com orgulho, iluminadas pelo foco da alegria!

(In: Monocontos: histórias para ler e encenar, p. 161-2)

 

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Griô

Elisio Lopes Jr.

QUEM: Senhor negro, sábio, contador de histórias.

STATUS: Diante de um país que não sonha, faz o seu testemunho.

(À sombra de uma frondosa gameleira, diante da comunidade em silêncio.)

 

Não há nada a dizer que já não tenha sido dito.

Ah... nós, velhos, temos muita pressa.

A vida escorre entre os nossos dedos,

e se tem uma coisa certa, dormindo entre outras certezas,

é que não sairemos dessa história com as mãos abanando.

Não é esta a história que vou deixar sobre o meu povo.

Era uma vez um rebanho que, a vida inteira,

atravessou o mundo procurando paradeiro. 

E pelo caminho escapou dos perigos,

e algumas vezes foi vencido.

O rebanho tentou seguir o caminho

ignorando o uivo dos que desejam devorá-los.

A travessia não tem fim, é o fim que acaba.

Eles ainda não entenderam que nós já aprendemos

que é a união do rebanho que obriga o leão a se deitar com fome.

Não seremos presas fáceis na boca dentada de ninguém!

E só existe futuro se o presente já for negro!

A gente não aceita mais alimentar a ignorância de ninguém!

Um dia... uma onda virá

E, como uma enchente, vai levar do nosso caminho

todos os pensamentos perversos para bem longe.

Essa onda vai começar dentro das cabeças,

como uma explosão no ori de cada um!

Um novo ayiê se formará.

E isso começa aqui entre nós.

Precisamos aprender a abraçar os nossos,

E a contar, juntos, a nossa versão dessa história.

 

(In: Monocontos: histórias para ler e encenar, p. 139-8)

 

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