Apesar da pouca idade, Luana sabe de onde vem a força que a ajuda a não se desesperar. Mestre Calça-Larga, Nena e vovó Josefa sempre lhe falam: “Não temos nada a temer. Nossos antepassados nunca nos abandonam. Eles estão dentro de nós”.

[...]

 

De repente, Luana se vê na noite de 24 de janeiro de 1835, em um casarão também no Pelourinho. Os homens vestem uma espécie de camisolão e as mulheres, vestidos longos, com véus na cabeça. São os malês, muçulmanos, e se cumprimentam com a expressão:

– Allahu akbar! Allahu akbar!1

Nesta noite, vão deflagrar uma revolta para libertar todos os escravos e criar um império negro na Bahia. Luísa está centre eles.

De repente, alguém entra correndo na sala, gritando:

– Fomos traídos! Fomos traídos!

Imediatamente, mais de 1.500 malês entram em confronto com os policiais e atacam um quartel. Por algumas horas, a capital da Bahia lhes pertence. Setenta morreram e 281 são presos. Quatro líderes condenados à morte por enforcamento. Os demais, a trabalhos forçados, açoites e degredo na África.

(Luana: asas da liberdade, p. 15).

 

Como num passe de mágica, a parede da sala desaparece e a imagem do barco atracado no cais ganha proporções reais e tridimensionalidade. Caminhando pelo píer, o pai, o menino e outro homem parecem estar a passeio.

– Meu inseparável amigo Luiz Cândido Quintela, minha dívida contigo já não tem mais dimensão!

– Que isso, meu caro? Você já vendeu seu sobrado para pagar dívidas de jogo. Queimou a herança de sua tia. Eu te aceito como hóspede em minha casa até que saia dessa situação. Apenas te peço uma coisa: não entre mais em minha casa de tavolagem.

– Por que me faz esse pedido?

– Porque uma casa de jogos não é ambiente para um viciado como você.

– Você pode ter razão. Mas eu sinto que a sorte se aproxima. Preciso só de um pequeno capital para reverter essa situação.

– Não posso lhe emprestar mais nada.

– E nem precisa. Tive uma ideia que vai resolver definitivamente meu problema. Me aguarde aqui que vou conversar com uma pessoa ali naquele veleiro e já volto.

– Certo. Preciso cobrar uma dívida de jogo de um estivador e depois nos encontramos.

Ambos se afastam e o pai continua a caminhada de mãos dadas com o filho, agora com 10 anos. Passando por um escritório do porto, o menino vê um calendário numa das paredes. Apesar de nunca ter frequentado escola, guarda os números correspondentes àquela data: 10/11/1840.

– Luiz, me aguarde aqui. Vou conversar com o barqueiro e já volto.

– Vamos ao Rio de Janeiro procurar minha mãe, pai?

– Estou pensando nisso.

– Pode ir conversar que eu espero.

De onde está não consegue acompanhar a conversa, mas percebe a insistência do pai, que volta e meia aponta para ele. Se estivesse mais perto, ouviria o barqueiro perguntar:

– Mas tem certeza de que o menino é escravo?

– Sim. Filho de escrava, escravo é. Eu o herdei de uma tia. Preciso desse dinheiro para salvar uma dívida.

– Está bem. Apesar de franzino, ele me parece bem vivaz. Posso conseguir um bom dinheiro por ele lá na Corte.

– Só te peço que não revele que o vendi. Ele é muito afeiçoado a mim. Diga apenas que lhe pedi para levá-lo ao Rio de Janeiro. Peço ainda que não o maltrate. Também me afeiçoei a ele. Não fosse essa dívida...

– Tudo bem. Tome a quantia que me pediu. Quanto ao tratamento quem decide sou eu. Agora ele me pertence.

Os olhos marejados de cada um do grupo não lhes permitem ver com nitidez a tristeza e o ar assustado do pequeno infante, ao entrar no veleiro. Menino vendido pelo pai falido, viciado em jogo, herdeiro perdulário de uma fortuna. Criança de olhar assustado, nascida livre, mas escravizada por conveniência e mentira.

A bordo do patacho Saraiva, seu coração palpita dividido o entre o temor do futuro incerto e a esperança de encontrar a mãe, assim como ele, levada para o Rio de Janeiro.

As lágrimas, que lhe escorrem pela face, não o impedem de ver o cais do porto de São Salvador, cada vez mais distante, onde ainda avista o vulto do pai de costas.

(A luz de Luiz, p. 42-44)

 

 

****

 

Não tinha olho que piscasse quando ela entrava na roda.

– Olha, mãe! É Luana que vai jogar!

O pessoal batia palmas e cantava até mais forte quando Luana aparecia e cumprimentava o adversário. Ela se ajoelhava ao pé do berimbau, fazia uma breve oração e dava um tremendo salto-mortal para trás.

– É bonito como quê! – comenta o velho Mandinga. – A menina joga com um dengo que lembra a vovó Adina. Aquela sim. Quando ela entrava na roda, não tinha valente que ficava em pé.

[...]

 

– Ei, pai! O que é um quilombo?

A pergunta vem de um menino de 5 anos, Luizinho, o irmão caçula de Luana, que os amigos chamam de “Luizinho Por Quê?”. O motivo está na cara: é perguntador como ninguém.

– Quilombo, Luizinho, era um lugar onde iam os escravos que fugiam das fazendas. Lá, negros, brancos e índios viviam em paz. Não tinha diferença. Não tinha nem rico nem pobre.

[...]

 

Os ancestrais de Luana viviam na África. Um continente que fica do outro lado do mar. Eles foram caçados como se fossem bichos, por homens muito maus. Foram amarrados e colocados num navio, que se chamava navio negreiro. Muitos não completaram a viagem. Morreram no mar, de tristeza, banzo.

Chegando aqui, no Brasil, foram vendidos para outros homens e tiveram que trabalhar nas fazendas, cortando cana, de sol a sol, e, pior de tudo, de graça!

Mas eles eram malungos, guerreiros, fortes, pessoas que nunca desistem do que querem. Souberam conquistar a liberdade e se juntar aos índios e a outros habitantes do Brasil daquela época, para construir esse quilombo. Aqui trabalharam, agora não mais como escravos, mas para eles.

 

[...]

 

Luana pisca forte e começa a sorrir. Agora ela já conseguiu saber onde é aquele lugar e em que tempo está:

– Ah, então é isso?! Aqui é Porto Seguro, na Bahia, e hoje é 22 de abril de 1500. Nesse momento, está sendo descoberto o Brasil. Gente! O meu país está nascendo!!!!

Um a um, os tupiniquins vão saindo do mato para de perto aquela gente estranha que chegava do mar. O primeiro foi Itabajauá, o pai de Itabaji. Depois, o próprio Itabaji e sua nova amiguinha, Luana, que estava de mãos dadas com a pequenina Tanauá. Essa, porém, puxava a mão e tentava escapar mato adentro.

Valente como ele só, Itabajauá foi direto aonde estava o homem barbudo, segurando a bandeira. Esse, que disse se chamar Cabral, tinha um montão de homens armados ao seu lado.

(Luana: a menina que viu o Brasil neném p. 7-32).

 

 

****

Como num passe de mágica, o que era um monstro medonho se transforma numa bonita paisagem, um imenso jardim com rosas, borboletas esvoaçantes e até uma cachoeira da qual escorre um rio, que lava tudo o que poderia ser chamado terror...

Mais tranquila, Luana se lembra do que a fez acordar: o som dos tambores...dos tambores falantes... é isso mesmo!

Tum dundum bac – Tundum dundum bac – Tatá tatá tatá...

E Luana entende tudo o que eles estão dizendo: “Vem, Luana, esperança de Palmares! Esperança das sementes de Zumbi!”.

 

[...]

 

De tempos em tempos, [Luana] vai com os pais à capital, onde se encontra com uma turminha muito especial. Ao lado de seus amiguinhos, ela descobriu que a beleza da gente não depende da raça, da cor, da idade, se é homem ou mulher, gordo ou magro, alto ou baixo. Depende, apenas, de como você se sente: bonita ou feia. E a turma só tem criança bonita, porque só tem criança feliz.

 

[...]

 

Quando chega a Cafindé, Luana sente que ela se tornou semente também. Agora entende o que quer dizer remanescente de quilombo. Não é apenas um pedaço de terra, é, sim, um pedaço da história verdadeira e maravilhosa de um povo que, por quatro séculos, participou ativamente da construção da riqueza desta nação, sem o direito de desfrutar esta riqueza.

E Luana sabe que, hoje, mesmo não sendo mais escravo, ainda falta muito para o seu povo ser verdadeiramente livre e ser tratado com todo respeito a que tem direito.

(Luana: as sementes de Zumbi, p. 9-40).

 

***

 

Luana acha impressionante a história que Atino está lhe contando. Ela também tem um berimbau. É um berimbau. É um berimbau mágico que a ajuda a viajar para o lugar que quiser, no tempo que desejar, na atualidade, no passado ou no futuro. Naquele momento reconhece seu berimbau como um símbolo da liberdade. Que maior liberdade que a de poder ir para onde e quando quiser?

Atino o solitário, já não parece o mesmo. Ganhou uma vitalidade sem igual, ao contar a história de seu ancestral. Já nem parece o homem triste que todos em Cafindé conhecem.

[...]

 

Berimbau...Luana entende bem quanto e por que Moromba amava o próprio berimbau. Ela sente o mesmo pelo seu. Lembra-se, então, do dia em que ele se tornou mágico. Chovia muito. Olha só, chuva na história de Moromba e chuva em sua história!

Lembra que, antes da chuva, estava a caminho da casa da vovó Josefa e parou para conversar com seu amigo Cauê, um menino tupiniquim, descendente dos primeiros habitantes do nosso país. Aí, o aguaceiro despencou e um raio caiu bem na corda de seu berimbau. A partir desse dia, basta tocá-lo e desejar muito ir para um tempo e um lugar diferentes, para ela chegar lá.

 

(Luana: capoeira e liberdade, p. 20-31).

 

 

 

***

 

Apesar da pouca idade, Luana sabe de onde vem a força que a ajuda a não se desesperar. Mestre Calça-Larga, Nena e vovó Josefa sempre lhe falam: “Não temos nada a temer. Nossos antepassados nunca nos abandonam. Eles estão dentro de nós”.

[...]

 

De repente, Luana se vê na noite de 24 de janeiro de 1835, em um casarão também no Pelourinho. Os homens vestem uma espécie de camisolão e as mulheres, vestidos longos, com véus na cabeça. São os malês, muçulmanos, e se cumprimentam com a expressão:

– Allahu akbar! Allahu akbar!1

Nesta noite, vão deflagrar uma revolta para libertar todos os escravos e criar um império negro na Bahia. Luísa está centre eles.

De repente, alguém entra correndo na sala, gritando:

– Fomos traídos! Fomos traídos!

Imediatamente, mais de 1.500 malês entram em confronto com os policiais e atacam um quartel. Por algumas horas, a capital da Bahia lhes pertence. Setenta morreram e 281 são presos. Quatro líderes condenados à morte por enforcamento. Os demais, a trabalhos forçados, açoites e degredo na África.

(Luana: asas da liberdade, p. 15).

A mãe-irmã

(História Contemporânea)

ALZIRA TINHA DEZESSEIS ANOS; não era uma dessas fisionomias que tanta bulha fazem nos  romances  que nos vêm da velha Europa;  era cá da América,   e era  bela quanto podia ser; não tinha essa cor de leite, que tanta gente faz entusiasmar, mas tinha um moreno agradável, próprio dos  trópicos;  suas faces  não eram de  carmim, de um pálido tocante, que convidava todas as afeições; seus olhos não eram azuis como o céu do meio-dia, mas eram negros como o azeviche;  não tinham a viveza dos olhos espanhóis, mas tinham uma languidez encantadora,  que  parecia   anunciar  continuado  sofrimento  e implorar proteção a quantos os olhavam;   e a proteção não podia  ser negada;  seus  cabelos  não   eram da cor do ouro, não lhe caíam em anéis sobre ombros jaspeados, mas eram finos, mui lisos, em muita quantidade, e mais pretos e luzidos que o preto do ébano; sua estatura era antes baixa que alta; sua cintura podia ser apertada as duas mãos; seus dentes eram dois fios das mais iguais e claras   pérolas  do  Oriente;   sua  perna  parecia feita a torno; seu pé era o mais delicado.   Alzira era o que com  tanta   propriedade  chamamos  uma  feiticeira, porque com efeito ela e outras como ela enfeitiçam todos aqueles que têm a desgraça... não : a ventura de as ver.

Alzira era filha única de um militar, que comandava um dos regimentos desta corte, abastado em cabedais, homem de bem a toda a prova, e que se ufanava de, em toda a sua vida, não ter que se repreender de uma só fraqueza; filho e neto de militares, ao mesmo tempo que generoso, franco e virtuoso, dotado de toda a dureza própria da sua profissão; lamentando a todas as horas não ter um filho que pudesse instruir na vida militar, e deixar em seu lugar, como já ele ficara no de seu pai, e este, no de seu avô; mas, querendo remediar esta falta, casando sua filha com um militar.

A mãe de Alzira era ao contrário a própria bondade; apenas com o dobro da idade de sua filha, e dois terços da de seu marido, tratava aquela como a sua mais íntima amiga, sem que um só segredo tivesse para ela; sua filha era o objeto exclusivo de suas afeições. Mas, tanto como a sua filha amava a seu marido, porque o coração de uma mulher é incompreensível em suas afeições; pai, mãe, marido, filhos; ama a cada um mais que a todos, e a todos mais que a cada um; a cada um dá o seu amor, e o seu amor é dado a todos: mistério que ninguém pode definir, e que só a natureza com toda a sua sabedoria podia criar. A mãe de Alzira amava a seu marido tanto como a sua filha, mas o seu amor era um amor respeitoso, o que provinha tanto do caráter particular dele, como da diferença da idade.

Tinha a mãe de Alzira um irmão, dos primeiros negociantes da corte, igualmente casado, cuja mulher vivia em uma chácara, onde as duas iam passar muitos dias no ano, e sobretudo jantar todos os domingos.   Entre outros caixeiros, tinha êste negociante um guarda-livros, de idade de vinte e cinco anos, que às perfeições físicas juntava todas as morais; moço verdadeiramente perigoso, se sua educação e princípios o não tornassem refletido sobre seu viver.    Entretanto, tinha um defeito; defeito, é verdade, em que nem ele nem ninguém tinha culpa, mas que nem por isso deixava de ser defeito; era pobre, vivendo apenas de seus ordenados. Êste defeito era para todos; quem o negará? para o pai de Alzira ainda tinha outro e era não ser militar.

Narciso era este o nome do guarda-livros, apesar; de todos os seus princípios e de toda a sua reserva, não pôde deixar de ficar cativo de Alzira.   Está isso nas mãos de alguém? quem é esse que governa o seu coração ? a razão pode muito, mas o coração pode mais que a razão; amor não é crime; mas, não se atribuam a amor es em que ele não tem a menor parte; paixões vis são amor.

Alzira viu Narciso a princípio com bastante indiferença; mas o amor dele não lhe foi por muito tempo oculto; conhecia o seu valor, e em breve pagou amor com amor. Êste negócio seguiu o caminho de todos os de idêntica natureza; atenções, olhares, pequeninos serviços prestados entre a mais numerosa companhia, que para os mais são indiferentes, mas que tanto valor têm ara os amantes; duas palavrinhas ditas em segrêdo e respondidas com um sorriso. Tempo ditoso é esse! em que um dedo de uma luva tocado produz um choque elétrico em todo o corpo, faz voar o entendimento aos espaços imaginários, e ali construir castelos, cujo único defeito é não terem realidade l Vós, que vos achais hoje presos nas cadeias de himeneu, dizei quanto dareis por fazer reviver um só momento desses. E vós, que ainda hoje espiais os passos de alguma bela, dizei se podeis conceber maior ventura do que estardes ao lado de vossas amadas, sem lhes dizerdes uma só palavra, e sem que elas na só palavra vos digam.

Alzira e Narciso conheciam as dificuldades que havia para sua união; conheciam os projetos do velho militar, e que era êle inflexível; e, apesar disso, tinham esperança, porque a esperança é a companheira inseparável do amor.

Por mais cuidado que tivessem ambos, seus sentimentos foram descobertos por aqueles mesmos que eles tinham mais interesse em que os ignorassem. O resultado desta descoberta foi que, depois de longa conferência entre os dois cunhados, foi chamado Narciso à presença de seu amo, o qual lhe comunicou que, necessitando seu extenso comércio na Ásia de um agente zeloso que ali o dirigisse, fora feita escolha dele para esse fim, pelo que propunha um interesse na sua casa, se quisesse partir na primeira embarcação.

— Dou-vos oito dias, continuou, para me dardes a rosta; mas, tomai bem sentido nos motivos que vos vão dirigir; vossa sorte depende do passo que ides dar. E para melhor poderdes resolver, lembrai-vos de que o Rio do Janeiro ainda tem uma policia ativa e vigilante, que não consente que viva em continuados sustos uma família aliás respeitável.

Estas palavras fizeram conhecer a Narciso a necessidade de sua posição; oito dias se desolou, escreveu cartas as mais apaixonadas, recebeu respostas as mais ternas; mas o oitavo dia chegou; uma resposta era necessária, e não era possível que fôsse negativa; era melhor ir por vontade e com vantagens, do que à força e desgraçado.

Enquanto se faziam os preparativos da viagem, julgou-se prudente que fôsse Alzira para a chácara de seu tio. Mas, como partiria Narciso sem se despedir dela? sem lhe dizer talvez o último adeus? sem lhe jurar fé e constância eterna? sem ouvir de sua boca a sorte que o esperava? Uma entrevista foi ajustada, que devia ter lugar de noite no jardim. Muitas vezes as maiores cautelas produzem o mesmo eleito que os maiores descuidos.

A entrevista teve lugar; suspiros, soluços, lágrimas, protestos, juramentos, e depois um beijo, e após êste segundo, e após este o crime se consumou...    O crime! E quem pode dizer que foi crime? Ao menos eles não foram criminosos. Embriaguez terrível apoderara-se deles: o silêncio da noite, a solidão... a mocidade... sim, a mocidade,   tão cheia de vida, tão cheia de calor, tão precipitada.   Não foi amor; oh! não lhe imputemos culpas que ele não   teve;   a união dos dois sexos é um instinto, a que as leis sociais  têm querido dar normas, e sujeitar a regras,   das quais porém a natureza muitas vezes não faz caso. É criminoso para a sociedade aquele que viola essas normas; mas a natureza absolve muitas vezes o que a sociedade condena.

E que remorsos não tiveram eles quando lhes passou a ilusão! Quanto dera Narciso por nunca ter pedido semelhante entrevista! Quanto dera Alzira por a não ter concedido!    Quando ali se reuniram, pensavam que só teriam de chorar a separação a que eram obrigados; porém, não lhes aconteceu assim; Alzira teve que chorar sua inocência perdida, e Narciso não podia de modo algum perdoar-se a fraqueza a que tinha sido arrastado. Foi necessário separar-se, e separaram-se; Narciso partiu no dia seguinte, e foi inconsolável; Alzira o não ficou menos, e a sua tristeza não era fingida, porque que deplorar duas perdas.

Mas seus tormentos ainda cresceram, e chegaram ao último auge, quando no fim de um mês conheceu que estava pejada. É esta uma daquelas posições que facilmente se não concebe, e que por isso nunca pode ser descrita, nem fazer-se sentir ao leitor.   Figure-se uma menina, cuja coragem ainda uma só vez não foi experimentada, cuja família tem toda por timbre a honra, cujo pai nem conhece o nome do que seja fraqueza, o pai de cujo filho navega a centenas de léguas de distância, e por isso lhe não pode vir prestar apoio; figure-se uma menina nestas circunstâncias, e com uma falta de semelhante natureza, que não pode ser ocultada... os tormentos de uma semelhante posição não podem bem avaliados.    Mas era necessário tomar uma medida.

Alzira confiou tudo a sua mãe.

Não gastou esta o tempo em repreensões ou reflexões agora de todo inúteis; fêz melhor; procurou meios de salvar a honra de sua filha, a sua e a de seu marido; para o que, de concerto com aquela, se fingiu pejada. A princípio tomou seu marido esta notícia por simples gracejo; mas, tão seriamente lhe falou ela, que a acreditou, e sentiu verdadeiros transportes de alegria. E conquanto não dessem notoriedade ao fato, todavia, contando-o em segrêdo a um e a outro, em breve se fez público.

Ainda não bastava, era necessário mais alguma coisa; que ela se fingiu gravemente incomodada e carecida dos ares do campo; o que, junto à necessidade de distrair sua filha, cuja constante melancolia era atribuída à ausência, foi motivo  bastante de se retirarem as duas para uma fazenda a trinta léguas da corte, a qual também careciam de ver, por o não terem feito havia muito tempo. O serviço embaraçou o militar de as acompanhar.

Ora, enquanto elas  fazem a sua jornada, façamos nós algumas reflexões.

Os meus leitores talvez criminem esta boa mulher, porque assim enganou seu marido; mas, não têm razão. Para os fazermos calar, bastaria lembrar-lhes que nem sempre as mulheres que enganam os maridos são criminosas; Rebeca enganou Isaac, fazendo que desse a Jacó a bênção que êle destinava a Esaú; e nem moralista cristão, nem padre da igreja que saibamos, tem até hoje repreendido esta ação. Como, porém, talvez se não ache exatidão na paridade, expliquemos o nosso enigma, deixando aos mais o cuidado de explicar os que arranjarem.

E se o padre mestre do Despertador disser que isto é irreligioso?   Mas, que nos importa a nós com o Despertador?   faz ele muito bem; ele bem sabe que a constituição permite a livre expressão do pensamento, em cuja faculdade encaixa êle também a de exprimir o que não pensa; ora, certo nesse direito, êle vai dizendo o que quer, e quem não quiser que o não leia.  Diga, pois, o que bem lhe parecer, que nós iremos continuando com a nossa história.

Alzira era filha única, e portanto, todos os bens de seus pais deviam passar a ela; a ela, portanto, vinha somente a prejudicar a suposição de sua mãe; e ela não comprava muito cara a sua reputação por metade da sua fortuna, e quando esta em tudo ia recair em seu filho que era seu herdeiro universal. E se viesse a casar e ter filhos legítimos, devendo aquele ser ainda seu herdeiro, como filho meramente natural, ficava-lhe segura sua legítima, ficando a outra parte para os outros. E, não casando Alzira, seria sempre seu filho o seu herdeiro, á título de irmão. Quanto ao pai de Alzira, também o engano era tolerável, pois quase indiferente lhe devia ser abraçar e beijar o menino como seu filho, ou como seu neto. Se estas razões não desculparem a boa mulher, não temos outras melhores para dar.

Alzira, em tempo próprio, deu à luz a um menino, a que foi posto o nome de Guilherme; seu pai foi avisado de que tinha um filho varão, o que o encheu de alegria. Via já um militar futuro, que devia continuar a geração dos militares; já os maiores postos do exército eram confiados seus; a glória da família e a da pátria iam receber um lustre incomparável.

Guilherme pôde, portanto, ser criado junto de sua mãe, que, com aparências de amor fraternal, escondia amor materno,   que,  aliás, se lhe não podia ocultar, causando mesmo admiração ver como podia ela assim afagar um irmão que lhe vinha arrancar metade de sua fortuna, quando menos o podia recear. E ainda mais admiração causou quando, oferecendo-se-lhe vários partido, aliás  mui  vantajosos,  respondia que  não podia aceitar, para não diminuir a fortuna de seu pequeno irmão que, tendo de seguir a carreira militar, necessitava de ter com que o fizesse com brilhantismo.

Guilherme foi, com efeito, destinado à profissão das armas, logo que chegou a idade suficiente: seu avô o tratou sempre como seu filho, tido já quando menos o esperava, fruto da sua velhice; isto é, seu avô não usou com ele daquela energia de que tanto se ufanava, o que tão necessária é para uma boa educação; o que fez que ficasse ele sujeito a alguns defeitos, como orgulho e irascibilidade pronta. Seu avô morreu, deixando-o dezoito anos, e sem que tivesse conhecimento do segredo fatal; sua avó morreu pouco depois, e assim ficou Guilherme governando a casa e sua própria mãe, que supunha ser sua irmã, e que debalde lhe dava alguns conselhos, os quais êle de cada vez ouvia menos.

E entretanto o que tinha feito Narciso? tinha sido fiel sempre à sua amada?  Sim, tinha sido fiel.   Ignorava, é verdade, tudo quanto se tinha passado; ignorava mesmo que era pai; mas, apesar disso, foi firme em seus juramentos. Por algum tempo continuou a sociedade com seu antigo  amo;  porém,  achando-se  com  fundos suficientes, principiou a girar sôbre si, e adquiriu em breve boa fortuna.  Alzira, logo que seu pai morreu, buscou notícias dele; e, sabendo que ainda se conservava solteiro, o fez participante de quanto era passado; pelo que, realizando seus cabedais, êle se apresentou nesta corte, quando já seu filho contava vinte e dois' anos.    

Buscou logo  Alzira, e, entregando-lhe esta os documentos justificavam a filiação, trataram  imediatamente o casa-j mento.

Viu Guilherme as visitas que fazia Narciso àquela que êle supunha sua irmã; viu que estas visitas amiudavam, e viu que entre eles reinava a maior familiaridade, e desconfiou que algum louco amor tinha entrado na cabeça de Alzira, que, pelo menos, iria dar em algum casamento. Mas, casar-se ela? Privá-lo assim de metade da fortuna com que contava? Julgou, portanto, ou de seu dever ou de seu interesse, necessário fazer algumas reflexões a Alzira; mas esta zombou dele, e continuou a receber o seu antigo amante. A aversão de Guilherme para este homem cresceu mais por este fato.

Supondo que ela, com efeito, tivesse em vistas casar-se com ele, como consentir em bom projeto que, além de privar da  fortuna  que já  dissemos,  tinha o defeito de não  partir dele, o que não  é pouco para um espírito pequeno e orgulhoso? E como suportar que julgasse o público que semelhante casamento era efeito de seu mau viver, pois, de outra sorte se não podia conceber que casasse na idade de trinta e nove anos, quatro depois da morte de seu pai, aquela que sempre recusara fazê-lo, para  não diminuir a fortuna de seu irmão ? e quando rumores se espalhavam já de que, com efeito, Alzira não tinha que se louvar dele? Um  partido era necessário tomar que, por uma vez, cortasse semelhantes relações; ordens foram dadas para que a sua porta se não abrisse a Narciso.

Êste, ignorando tudo, apresentou-se a querer falar com Alzira; a entrada lhe foi negada. Admirado por extremo, quis saber por ordem de quem; a verdade lhe foi dita.

— Por ordem de Guilherme?

— Sim, senhor.

— E teve êle a ousadia de me fazer fechar a sua porta?

— Êle o  mandou, senhor.

— Estouvado mancebo! É necessário que eu entre; devo falar com a senhora.

— É  impossível  consenti-lo.

— Está ele em casa?

— Sim, senhor.

— Ide chamá-lo.

Guilherme apareceu.

— É certo que me fizestes fechar a vossa porta?

— É certo; e devo anunciar-vos que nunca mais vos será franqueada.

— Estimo a vossa franqueza; é de militar. E poderei saber as razões?

— Na minha casa faço o que me parece, e não dou satisfações a alguém.

— Assim deve ser; mas,  nesta casa mora também Alzira; ela não vos está sujeita; é a ela, e não a vós, que procuro, e creio que ela me não proibiu a entrada.

Guilherme se tornou pálido de cólera.

— É exatamente porque procurais minha irmã e não mim, que vos tenho feito proibir a entrada. Vossas relações com ela me desagradam, e julgo dever fazê-las cessar.

— E vosso procedimento para com ela é o de um bárbaro, também julgo que o devo fazer cessar. Ela deve ser minha esposa.

— Quaisquer que sejam os vossos projetos, quem vos deu o direito de repreender-me?

— Quem? as vossas ações. Se tivésseis tratado de fira sorte uma mulher que se tem sujeitado a viver solteira, só para assegurar-vos a fortuna que de seus pais pertenceu, talvez ela me não fizesse queixas, talvez êste casamento não tivesse lugar; mas, o vosso viver repreensível é, talvez, a causa principal do passo que vamos dar.

— A minha paciência vai se esgotando. Ainda até hoje de ninguém ouvi palavras semelhantes! Retirai-vos, senhor.

— Eu não  me retiro; quero falar a Alzira; quero entrar.

— Senhor, vós me quereis fazer chegar aos últimos extremos! Quereis que use de violência?

 — De violência! vós para comigo ! Oh, meu Deus perdoai-lhe; êle não sabe o que diz. Franqueai-me esta porta.

— E por que não usarei de violência para convosco? Não necessitarei de implorar auxílio; meu braço será bastante forte.

— Imprudente! calai-vos. Franqueai-me esta porta; quero falar à minha esposa.

— Já vo-lo disse; esta porta vos não será franqueada; minha irmã ainda não é vossa esposa; quando o for, tratareis com ela, não aqui, mas no lugar para onde a levardes.

— Bem, eu  não venho preparado; esperai-me aqui mesmo; dentro de meia hora serei convosco.

Narciso retirou-se; Guilherme pôs-se a rir.

— Que quererá dizer? Pretenderá bater-se comigo! Mas, aqui mesmo em casa não parece crível. O velho perdeu o juízo... ou antes quis ver se me aterrava... Não, ele não vem mais, posso estar seguro. Demoremo-nos porém a meia hora, e vejamos em que isto dá.

Narciso voltou ainda antes de passada a meia hora,e fêz-se anunciar a Guilherme, que não pouco se admirou de tão pronta volta, e o fez introduzir. Narciso sentou-se sem cerimônia, e fez sentar a Guilherme, como se estivesse em sua casa.

— Então,  tendes pensado?

— Pensado em quê?

— Já estais resolvido a deixar-me casar com Alzira?

— Eu não embaraço o vosso casamento; não quero que continueis a entrar nesta casa.

— Mancebo, vêde o que fazeis; com uma só palavra posso fazer-vos mudar de resolução.

— Nem com palavras, nem com ações.

— Imprudente! olhai que é um segredo de que depende vosso estado e fortuna.    

— Não posso deixar de rir-me dos mêdos que quereis meter-me. Pensei que vínheis para ações, e não para palavras.

— Para ações, venho. Mas de que ações falais?

— Pensei que íamos decidir nossa contenda com as armas;  vosso ar,  quando saístes, pressagiava  grandes coisas; mas vejo que pensastes melhor, e que quereis concluir tudo em palavreado.

— Um desafio! As leis o proíbem.

— É a desculpa dos cobardes, das almas vis.

— Guilherme! não me insultes.

— Não vos insulto, digo-vos as verdades.

— Ë bem certo que a natureza nem sempre fala! Guilherme, olha para mim; não te diz nada o teu coração?

— O meu coração diz-me que falo com um aventureiro, que veio do fundo da Ásia para iludir minha irmã, e que agora  busca cobrir sua infâmia com um milhar de rodeios.

— E quanto me custa desenganá-lo! quanto me custa descobrir êste segrêdo fatal! tornar talvez menos puro a seus olhos aquele anjo de candura!... Ainda uma vez; tua fortuna, teu estado depende de uma só palavra minha; não me obrigues a pronunciá-la.

— Ainda uma vez, não a receio; já vo-lo disse; peço-vos que a pronuncieis; quero ouvir essa palavra mágica que, igual aos sons do corno de Oberon, me deve connfundir.

— Guilherme!... Guilherme!... és   meu   filho.

— Eu, vosso filho!... vosso filho!... eu!... não pode ser; não. Foi minha mãe muito virtuosa, e meu pai mui delicado em pontos de honra, para que ela fôsse capaz de uma fraqueza. Vosso filho!... não pode ser... Vosso casamento com minha irmã seria um incesto. Vosso filho!... e pensáveis que assim acreditria semelhante embuste? Dar-me-eis satisfação pela desonra que assim quereis fazer pesar em uma família inteira.

— Guilherme! não me obrigues a pronunciar o isto; não me obrigues a mostrar-te provas, que eu queria que fôssem por ti sempre ignoradas.

— Provas! ah!  sim, eu as quero;  eu quero provas. Um labéu foi por vós lançado sôbre a melhor das mães, sôbre a mais virtuosa das mulheres. Oh! eu  quero provas, eu as exijo.

— Guilherme, ainda to repito, desiste dos teus intentos.

— Não, não posso; minha mãe acha-se infamada: obrigar-vos-ei  a justificá-la.

— Tua mãe! e sabes quem é tua mãe ?

— Quem é minha mãe?... Pois também pode haver dúvidas a êsse respeito?

— Sabes que Alzira é tua mãe?

— Alzira!... Alzira !... não pode ser.

— Examina estes papéis; vê estas declarações em forma por tua avó, pelo vigário e pelos professores, que assistiram ao parto de Alzira. Alzira é tua mãe, e eu sou teu pai. Toda a tua fortuna é de Alzira. Tu nem nome tens ainda, e de minha vontade depende dar-to.

— Alzira, minha mãe!... ele, meu pai!...

— Quis ocultar-te tudo, para que ignorasses o meu crime: obrigaste-me a revelar tudo. Agora te sujeitarás às conseqüências da tua imprudência.

De mim dependia agora fazer acabar tudo isto tràgimente: bastava mover o orgulho e irascibilidade do rapaz, e fazê-lo suicidai-se. Poderia descrever o suicídio á minha vontade, e mostrar depois o corpo do infeliz feito em pedaços, nadando em seu próprio sangue, e as lágrimas e desesperação da mãe e do pai. Mas, para que se tudo isto não foi assim? Verdade primeiro que tudo.

Guilherme recebeu a notícia com a maior tristeza, mas em poucos dias acostumou-se a sua nova sorte. Alzira e Narciso casaram-se e legitimaram-no nesse ato; e acabou-se a história.

(Panorama do conto Brasileiro)

Como uma mulher de verdade

Cansou de se dedicar a amores vãos. Mudando de ramo, encontrou, depois de longa e exaustiva procura, uma boneca preta.

A ela encomendou, após minucioso diálogo, tudo o que era necessário para satisfazer seus gostos e vaidades, renovando diariamente o estoque, para nada lhe faltar.

Sua vida ganhou nova melodia. Com os arranjos que sempre sonhara.

Ao final do expediente, afoito retornava à casa. Saudoso de rever a companheira que, sentada ao piano, aguardava-o com belas canções que ela mesma compunha para se desmancharem em promessas, carinhos e suspiros.

Quase todas as noites saíam a passeio. A ponto de tornarem-se assíduos frequentadores de jantares, cinemas, teatros, festas, motéis, shoppings, tal era a finidade que os unia, causando inveja aos casais menos afortunados. E sempre com maior intensidade ele, com diversificada criatividade, lhe declarava o seu febril e imensurável amor, ao qual ela lhe retribuía, por outrora ter tido as esperanças esvaídas, de tanto entregar-se a empresários vis.

 
Quem sofre sempre
Tem que procurar
Pelo menos ir achar
Razão para viver.
TM
 

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O enjeitado

Quando os livros que nos remete a velha Europa não são recordações de velhas idades; quando depois de nos ter feito aborrecer os godos, os vândalos e os condes do feudalismo, hoje só nos mimoseiam com vândalos e godos, e feitos do feudalismo; quando depois de tantos sermões contra as cruzadas, que tantos sermões tiveram em seu favor, Walter Scott e penas, senão de igual pulso, pelo menos de avantajada fama, nos aquentam nossas imaginações com os heróis da Palestina, custará a crer que nos apresentemos ao público cem tão singelas narrações; mas nós, cuja vida é de ontem, cuja história é toda contemporânea, cujos anais ainda não estão escondidos no pó de velhos cartapácios enterrados no fundo das bibliotecas, contamos só o que vemos e ouvimos, emprestando-lhe apenas alguns vestidos. É certo que também temos nossas tradições, nosso calendário também cheio de feitos heróicos de acrisolado patriotismo, cada pedra de Pernambuco nos prestaria matéria para um poema; as arriscadas viagens dos paulistas a nossos sertões, cada uma formaria, sem mais atavios, um romance; porém, faltam-nos dourados salões, subterrâneos imensos, portas de segredo, altos torreões dominando léguas de campinas e meias pontes levadiças, vassalos e pajens e toda a magna comitante caterva, cujas descrições enchem páginas e páginas, e que hoje são da essência. As magnificências dos altos barões e poderosos senhores não chegaram até nós; nossos encontros são de pigmeus, em vista daqueles em que figuraram Saladino, Filipe e Coração de Leão.

A natureza é grande entre nós, suas infinitamente variadas cenas prestam-se a infinitamente variados episódios; mas o sublime da arte agora não é esse, são necessários acontecimentos horríveis e inesperados, homens sem tipo na natureza, bruxas, fantasmas, espectros; fora deste caminho não há salvação. Ora, isto não temos nós.

E para aqueles que escrevem na língua portuguesa ainda há outra mania, é necessário que as palavras sejam daquelas de que já não há memória viva.

"O ponto está que o diga algum daqueles

"Que Craesbeeck imprimiu........."

Eis aí atingido o cume da perfeição, porque aliás é português mascavado, e sob a autoridade dogmática infalível de um concílio chamado Sêneca, é imoral e excomungado com certeza de ir para o inferno aquele que não diz imigo e mor, em vez de maior e inimigo.

Nós, humilde rabiscador de papel, que já lemos as Décadas e Lucena, e que ainda às vezes nos recreamos com Sá de Miranda, Bernardes, Camões e Ferreira; e que apesar disso entendemos que não é para desprezar a linguagem de Garção, Diniz e Ribeiro dos Santos, e alguns outros, que entendemos que a construção de nossa frase de hoje não está obrigada a sujeitar-se em tudo e por tudo à construção de Palmeirim e Clarimundo, tendo achado em Camões muitos termos que a língua de antes não tinha, e não sabendo por que razão o povo romano não daria a Virgílio e Varo a mesma licença que a Cecílio e Plauto, quando as palavras são como as folhas, que umas caem e outras nascem, iremos satisfazendo nossa vontade de escrever sem importar-nos com o que dizem esses:

"............. Letrados

"Licurgos e Ulpianos de palavras."

E enquanto aparamos a pena para mais grave discurso, confiamos aos nossos leitores o seguinte fato:

Em uma sala decentemente mobiliada com todas as demonstrações de mais que honesta abastança, junto a um piano aberto, se achava sentada uma senhora, cujas feições mostravam todo o verdor da mocidade, conquanto bem se divisasse que já não estava próxima à infância. Trajava roupas pretas, o que, e seu cabelo negro e luzidio, contrasta vá agradavelmente com a alvura de sua tez. Suas faces não estavam de todo descoradas, mas seus olhos grandes à flor do rosto tinham certa languidez que indicava sofrimento, deixando bem ver que outrora foram animados por vivo fogo. E quem a visse diria logo que não era uma donzela; a firmeza de sua posição e a maneira por que fitava seus olhos facilmente o deixavam perceber. O completo de suas formas fazia sobressair a sua languidez: dir-se-ia que aflita buscava cavalheiro que lhe desafrontasse seus agravos, e cada qual desejaria ser aquele que por ela enristasse a lança ou desembainhasse a espada. Sobre a estante estava aberta uma dessas músicas suaves que tanto tocam o coração, dando sinais de que fora tocada; mas as costas um tanto voltadas, um lenço na mão, os olhos como que úmidos, e o peito um pouco palpitante, faziam ver que ela sentia alguma viva emoção mais forte do que a que lhe podiam produzir os harmoniosos sons do instrumento. A seu lado havia fuma cadeira vazia, e na sala, a passos largos, um homem, ao parecer, de trinta anos.

— Um pai! mas dai-me um pai! dizei-me quem ele foi, dizei-me quem foi minha mãe, dizei-me quem sou, dizia Júlio, o sujeito que passeava na sala. Não conhecer meus pais! dever minha existência provavelmente a um crime! ter de expiá-lo e ignorar qual seja! é um inferno, um verdadeiro inferno. Não, eu não hei de consentir em prender uma existência à minha; não a hei de levar de rojo comigo, não a hei de fazer sofrer tormentos que só a mim foram legados, nunca, nunca; ninguém sacrificarei!

— Mas se vossos pais foram criminosos, vós o não sois, sois inocente.

— Eu, inocente! Sim, é essa a doutrina do mundo. Se meus pais fossem conhecidos, se suas ações bem merecessem da pátria e dos homens, se fosse algum nome ilustre, eu grilaria bem alto, exigindo que uma parte de sua consideração recaísse sobre mim Mas, se forem criminosos, rejeitarei a vergonha de suas culpas, lançarei de mim a infâmia de suas ações, negarei mesmo que sejam meus pais, desmentirei a quem o asseverar. Egoísmo do século! esta doutrina é tua, só por nós e para nós; eis aí os teus princípios destruidores, que tantos males têm trazido à humanidade.

— E que certeza tendes de que vossos pais foram criminosos?

— Que certeza? Talvez causas houvesse que os obrigassem a rejeitar-me, se bem que inocentes; porém, que raros são esses casos! E esta mesma incerteza não é ainda um tormento? Que orgulho não é para um filho dizer: aquele é meu pai! E eu não o posso dizer! E quando me disserem: és o filho do crime, não poderei negá-lo; quando me disserem: teu pai foi um malvado, não poderei dar um desmentido: quando me disserem: tua mãe foi uma mulher vil, não poderei dizer o contrário... E, talvez, fossem inocentes! talvez razões poderosas... que sei eu? Emília, este tormento é o maior dos tormentos.

— Quando tantos se ufanam de não conhecer seus pais! de, como dizem, dar princípio à sua geração.

— Moral corrompida é essa, moral adotada por aqueles que não têm outro meio para justificar-se, moral com que o mundo doura muitas existências que devera marcar com o ferrête da ignomínia! Não façais cair nos filhos as culpas dos pais: oh! eu também o não quero, mas estigmatizei o crime em todas as suas partes em todas as suas conseqüências; tirai-lhe toda a ocasião de poder ufanar-se um dia de suas ações, fá-lo-eis menos freqüente. Não, debalde outros se vangloriem, eu nunca o poderei sofrer tranqüilo.

— Mas não me tendes dito mil vezes que viveis só para mim? Pois para mim vivei; sejamos ambos felizes. Tremeis pelo que dirão de vós? não vos importe, sede só meu.

— É verdade, Emília, só para vós, mas por isso mesmo, porque vos amo mais que tudo, é que não posso consentir em unir-me a vós sem que primeiro saiba quem sou e que posso ser feliz. Desde que tive suficiente conhecimento que minhas indagações neste sentido não tem parado um só momento. Esta idéia está tão fixa em minha alma, que dela depende todo o meu porvir; enquanto me não for revelado este segredo não posso feliz, ninguém será feliz comigo. Não sereis vós aquela que eu ei de sacrificar. Ouvi-me, Emília. O meu amor não é uma paixão vil, um vil desejo de satisfazer os sentidos; o meu amor é um sentimento de admiração e profunda estima por vós; parte do fundo do meu coração, é uma necessidade de minha alma. Amo-vos, não por mim, mas por vós; e porque vos amo queria ver-vos feliz, mais feliz que todas as mulheres; queria pôr a vossos pés pompa, grandeza, riqueza... um trono, se tivesse um trono; queria conhecer vossos mais pequeninos desejos, vossos menores caprichos, queria poder satisfazê-los todos, queria que nunca tivésseis um pensamento que logo por mim não fosse adivinhado e realizado... queria dar-vos céu na terra. Não o posso fazer. Meu coração existe cheio de vós; porém, um outro pensamento vive também na minha alma: — Meu pai, minha mãe. Este pensamento cada dia deita mais profundas raízes, torna-se mais, rouba-me mais a atenção. De envolta com o nome de Emília, esse pensamento grita: — Meu pai, minha mãe. De noite, de dia, na solidão, entre a mais numerosa companhia, no meio dos prazeres mais estrondosos, uma voz me persegue: — Meu pai, minha mãe. Espectros me afiguram, visões se me antolham; cada homem me parece ser o que procuro, cada mulher julgo ser minha mãe. Corro, indago, examino, busco; a ilusão foge, e me acho só, ou no meio de pessoas indiferentes, a quem minha sorte nada importa. É este o meu estado, meus dias correm muito longe da ventura. Não, eu não vos poderia fazer feliz. Amo-vos, Emília; e porque vos amo, não posso sacrificar-vos. Deixai-me procurar... procurai também; dizei-me quem são meus pais, dizei-me quem sou; dizei-me que a minha existência não é um crime... então me poderei entregar todo ao amor; então poderemos ser felizes.

— E não suspeitais a que classe pertenceis? Não tendes indícios que vos possam guiar?

— Poucos. Uma única idéia tenho clara: é a do lugar onde se passaram os primeiros dias de minha infância. Uma casa térrea, que não tinha casas na vizinhança; suas paredes eram brancas; na frente tinha uma varanda, na qual havia à direita um quarto. Toda a disposição interior dela ainda se me figura vivamente. Fora havia um campo coberto de verde grama; à direita duas copadas mangueiras; à esquerda alguns cambucazeiros; e no fundo um morro de subida doce, plantado de mandioca até quase ao seu cume. Dali descia um regato, que serpeando por entre os cambucazeiros, ia perder-se em um rio que passava pela frente do campo. Vivia-se ali com abundância, mas não com luxo. A família não era numerosa, constando de poucos escravos, alguns meninos, de um homem e uma mulher. Que gente era esta? que relações tinha comigo? Sei que não eram meus pais, e nada mais. Como deixei essa casa? onde era ela? por onde passei? Tudo ignoro. Achei-me nesta corte em companhia de um homem que vivia só com um escravo. E quem era este homem? Nunca pude saber mais do que, que fora um honrado e rico negociante, retirado do comércio, chegado da Europa pouco tempo antes daquele em que foi para sua casa, e onde exerceu a sua profissão por largos anos. Não era portanto meu pai; teria comigo algumas relações de parentesco? Eu o ignoro; ninguém me soube mesmo dizer nunca donde ele era, a que família pertencia, quem eram os seus parentes. Tratou de mim como se fora meu pai, à exceção daquelas carícias que só os pais sabem empregar. Fez-me entrar em um colégio, e dar-me a educação que tive; passou-me depois para uma casa de comércio, e por sua morte repartiu seus bens comigo e com as casas de caridade. São estas as minhas únicas recordações.

— Mas essa casa... se a pudésseis encontrar... os seus moradores. . .

— Tenho procurado tudo; tenho corrido todos os arrabaldes e recôncavos; ainda até hoje a não encontrei. Esse campo, essas mangueiras, esses cambucazeiros, não os tornei mais a ver. Parece que a terra os sumiu, para que nunca mais me pudessem revelar o segredo de que eram talvez os únicos depositários.

Em vosso lugar teria perdido a esperança, e...

— Perder a esperança! Ó Emília! como assim vos mostrais minha inimiga!... Perder a esperança... seria perder a vida. Hei de encontrá-los, o coração mo diz. Não era possível que me desse Deus a existência sem que me desse um só momento de ventura; eu o não posso gozar enquanto viver em semelhante incerteza. Hei de encontrá-los... e até então viverei sempre infeliz, mas viverei só.

— Júlio!

— Emília!

— E nunca sereis meu!

— Eu sou vosso, Emília; ordenai, mandai, disponde; achareis mais que um escravo, achareis um amante... vosso pela vida e pela morte; corpo e alma. Sou vosso, mas não quero que sejais minha. Não vos farei infeliz, a vos farei desgraçada.

— E nunca obterei outra resposta?

— Enquanto os não achar. Vou procurar de novo; aumentarei meus esforços; indagarei, correrei, gastarei. Se chegar a conhecer quem eles são; se a minha existência não tiver sido obra do crime, e por conseqüência não for para mim uma infâmia, correrei com a velocidade do raio; deitar-me-ei a vossos pés, donde só me levantarei para cair nos vossos braços; chamar-vos-ei minha, nunca mais nos separaremos.

Como já dissemos, este diálogo se passava em casa Emília; mas quem era esta Emília? Quanto a Júlio já os nossos leitores o conhecem suficientemente, para que por enquanto não seja necessário dar-lhes mais esclarecimentos. Emília era uma viúva, que apenas contava vinte e dois anos de idade. Casara aos quatorze anos, não porque o quisesse, mas porque assim lho haviam ordenado seus pais, e seu gênio demasiadamente dócil era incapaz de uma resistência; fora casada seis anos; e se durante este tempo não sofreu verdadeiras infelicidades, também não teve que se louvar de seu marido. Tinha este apenas vinte e cinco anos; tinha o seu coração algum fundo de bondade; era por vezes generoso; a verdadeira infelicidade não o achava insensível; mas fora disto nada mais tinha que o tornasse agradável. Em suas palavras reinava sempre uma constante obscenidade e imundícia; não por desejo de parecer imoral ou imundo, mas porque parecia que seu dicionário não continha outros vocábulos; isto o fazia evitar por toda a boa companhia. Sumamente grosseiro, não tinha para sua mulher nenhuma daquelas delicadas atenções, que o amor faz ter mesmo ao selvagem, e que no homem civilizado produz ao menos a boa educação; essas atenções, que se não fazem a felicidade, pelo menos suavizam muito os desgostos da vida doméstica; e somente sua mulher podia obter dele aquilo que ele absolutamente lhe não podia dispensar. Sofrivelmente orgulhoso, sua mulher era para ele mais que os seus escravos; e rigorosamente seria punido aquele que lhe fizesse a mais leve injúria; mas supunha sua mulher muito menos do que ele, e nem lhe era permitido levantar os olhos diante de seus olhos.

Emília, em todo o tempo que durou o seu consórcio, viveu resignada com a sua sorte, uma só queixa nunca lhe foi ouvida. Se algumas vezes suas amigas se queixavam da falta de suas visitas; se se admiravam de a não ver concorrer aos divertimentos, desculpava-se com o trabalho doméstico, com enfermidades suas ou da família, da melhor maneira que podia, sem que uma só vez a seu marido fosse imputada culpa. Em casa mesmo não só lhe guardava todo o respeito que uma mulher deve a seu marido, como mesmo procurava amoldar-se o mais que podia a suas vontades; não amava o homem, mas respeitava os laços que a prendiam a ele, e procurava preencher todos os deveres de esposa; sua condição não era boa, porém ela a fazia a menos má que podia; e quando seu coração sentia alguma aflição mais grave, era na oração, era elevando o seu pensamento a Deus, que buscava consolações. Chorou a morte de seu marido com lágrimas não fingidas.

— Era meu marido, era o meu protetor; era bom e generoso; suas palavras eram duras, mas o seu coração era brando — dizia ela, e assim o sentia.

Seu marido recompensou-lhe os sacrifícios, deixando-a herdeira de sua fortuna. Não lhe ficaram filhos. Os amores de Emília e Júlio não foram desses, que começaram de repente em um abrir e fechar de olhos; dessas súbitas impressões, que os poetas e romancistas têm sempre à sua disposição, e que parecem dispostos na cadeia dos acontecimentos a principio et ante saecula; pelo contrário, muito tempo se viram sem saber que se amavam, e mesmo sem se amar. Emília tinha contraído, durante a vida de seu marido, uma fisionomia melancólica de tristeza e abatimento, que sua viuvez aumentou ainda; via-se sentada em uma sala horas inteiras, no meio do prazer mais vivo sem soltar uma palavra, sem fitar os olhos em uma só das coisas que a cercavam. Este estado compadecia-se perfeitamente com o de Júlio, que no meio da mais numerosa companhia vivia isolado. Os discursos frívolos dos mancebos o enfastiavam; os sensatos dos anciãos achavam-no distraído; as risonhas palavras dessas alegres donzelas, para quem o mundo é todo de rosas, e seus ligeiros passos em uma contradança ou em uma valsa, seus sorrisos encantadores, eram pungentes espinhos, que lhe atravessavam a alma.

No meio dessa alegria geral só um ente encontrava, cujo estado parecia assemelhar-se ao seu; era uma mulher, era moça e era formosa; era Emília; razões foram estas muito poderosas para que procurasse aproximar-se dela. Mas muitas vezes sentado junto dela, passava horas inteiras sem lhe dirigir uma palavra! Ela também a não exigia; não se afligia com isso; também não lhe falava; e não era despeito; era porque se o silêncio era muitas vezes uma necessidade do coração de Júlio, o silêncio era também uma necessidade do coração de Emília. No próximo encontro tornavam ambos a avizinhar-se, e a mesma cena se reproduzia. Um observador inexperiente diria dois amantes extasiados, sem achar uma palavra para exprimir o que sentiam; alguma reflexão porém lhe faria ver que os pensamentos de um eram mui diferentes dos do outro; que os dois só se buscavam porque se não importunavam.

Pouco a pouco esta companhia tornou-se necessidade, Emília só ia aos lugares em que supunha que encontraria Júlio; Júlio só ia onde supunha que encontraria Emília; Emília estava desassossegada enquanto não via chegar Júlio; Júlio estava fora de si enquanto não podia achar lugar perto de Emília. Pouco a pouco Júlio foi o único pensamento de Emília, Emília enchia todo o coração de Júlio; todo o coração e não todo o pensamento, porque este tinha ainda outro objeto, que se não era mais forte, era mais antigo: — pai e mãe; estas duas palavras soavam mais alto a seus ouvidos, que ao habitador da América setentrional o Niágara em sua queda.

Emília recebeu como amante apaixonada a última resolução de Júlio; não podia acomodar-se com a lembrança de que tivesse ele uma idéia que pudesse mais do que ela, porque tal é a condição dos amantes; querem dominar exclusivamente no objeto amado. Talvez esse Júlio ficasse bem diferente, talvez suas resoluções fossem inteiramente outras, se a mais leve desconfiança lhe pudesse entrar de que não reinava só no coração de Emília; de que qualquer outro objeto era capaz de a desviar dele por um só instante; talvez essa generosidade, de que fazia tanto alarde, desaparecesse toda, e em seu lugar só ficasse o puro egoísmo, se pudesse recear alguma coisa pela afeição dessa mulher; mas ela lhe não dava lugar ao menor receio.

Emília esperou que Júlio voltasse, mas Júlio não voltou; soube mesmo que havia deixado a cidade. E como viveria ela nesses lugares onde estava tão acostumada a vê-lo, e agora o não veria! Sua mãe vivia em uma fazenda; a ocasião foi aproveitada para ir passar algum tempo com ela.

A mãe de Emília a recebeu como a sua filha mais querida, como aquela que, viúva como ela, tinha mais com ela esta relação particular. Seus olhos, porém, viram logo que o coração de sua filha não estava tranqüilo; suas freqüentes distrações não eram as da indiferença. O que poderá escapar aos olhos de uma mãe? Apenas os defeitos de seus filhos. Em breve foi sabedora de todo o segredo; Emília contou tudo, não se esquecendo da descrição da casa com as mangueiras e os cambucazeiros, com o campo e o regato. Sua mãe estremeceu visivelmente, tornou-se pálida e derramou lágrimas.

— E agora onde está Júlio?

— Eu o ignoro; creio que busca os lugares da sua infância. Mas conheceis-lo?

— Nunca o vi; todavia relações de sangue existem entre ti e ele. Sim, minha filha, esse Júlio é teu primo-irmão.

— Meu primo-irmão! A minha admiração cresce. E sabeis a história do seu nascimento?

— A história do seu nascimento é terrível; até hoje tem sido um segredo; e de todas as pessoas que a souberam só eu vivo.

— Minha mãe, contai-me essa história; dizei-me tudo, para que tudo lhe possa dizer. Conheça ele esse mistério que tanto tem procurado.

— Entendo, Emília; mas talvez não consigas o que desejas.

— Porém contai-me essa história; satisfazei somente a minha curiosidade.

— Pois bem; eu te satisfaço, porque a ninguém comprometo já; porque do conhecimento deste segredo pode depender a tua sorte futura.

Eis aqui o que a Emília contou sua mãe:

Perto do lugar em que hoje existe assentada a vila de S. João de Itaboraí, junto quase às margens do rio Cassarabu, houve em outro tempo uma rica fazenda, de que apenas hoje restam ruínas, conquanto os anos que tem decorrido não sejam muitos. Suas vastas plantações de cana admiravam a todos os que por ela passavam, os escravos contavam-se aos centos, seus campos estavam cheios de gados de todas as espécies. Todos os anos no dia 3 de maio, segundo o costume geral, começava o engenho a moer, e durante seis meses e mais não cessava um só instante de dia ou de noite. Em todo este tempo, a mais de meia légua, ouvia-se a bulha desse imenso estabelecimento, o relincho dos cavalos, o mugido dos bois, o balido das ovelhas, as cantigas dos que empregados em meter cana nas moendas procuravam disfarçar o sono para evitar a perda ao menos de um braço, os gritos dos tocadores do gado, e o zoeiro daquele todo. O corpo do engenho, as vastas oficinas que dele dependiam, não só para o fabrico do açúcar, como para trabalho de oficiais de todos os ofícios; as estrebarias, os currais, as imensas senzalas, a capela e a casa de vivenda, formavam uma não pequena povoação. O dono desse rico estabelecimento era conhecido por muitas léguas em roda; era o capitão-mor Mendonça. A todas as horas do dia chegavam e saíam cavaleiros de sua casa, ao meio-dia o sino da fazenda tocava, e uma grande mesa posta para todos aqueles que dela se queriam aproveitar. Viam-se mesmo chegar ali indivíduos que se demoravam oito e mais dias, sem que ninguém soubesse donde vinham, nem para onde iam, e sem que o dono da casa ou alguém dela os conhecesse, e todavia, estavam, comiam, retiravam-se, sem que por isso deixasse de continuar a haver mesa franca todos os dias. E contudo, Mendonça não era amado, era temido por todos aqueles que dele por qualquer motivo se aproximavam. Desgraçado daquele que por qualquer modo caísse em seu desagrado, ainda pela mais leve razão; seus peões com um tiro, ou ao menos o rebenque, lhe faziam justiça pronta. E nunca homem de justiça se atreveu a ir à sua casa, nem para perseguir muitos facinorosos que ali se asilavam, e que ele julgava de seu brio conservar subtraídos ao império da lei.

Mendonça teve vários filhos, entre os quais duas filhas, uma a mãe da nossa Emília, e outra mais velha, todos foram criados por seus pais, segundo os seus princípios, isto é, considerou-os a todos como seus escravos, e sobretudo as suas filhas, cujas vontades em coisa nenhuma foram consultadas. A mais velha (Júlia se chamava) casou-se aos treze anos. O coronel Sousa tinha muito dinheiro, e tanto bastou para que Mendonça o julgasse ótimo partido para sua filha. Tinha este quatro vezes a idade da noiva, estava carregado de filhos naturais de todas as cores, seus administradores, feitores e escravos queixavam-se a cada instante de suas barbaridades; para pôr termo a uma demanda que trazia com seu irmão, fez dar-lhe a morte; a embriaguez começava a ser nele habitual, mas que importava tudo isto? Tinha dinheiro, e o nosso capitão-mor supunha que o dinheiro valia mais que tudo. Sem dote! oh! esta razão é superior a todas.

Fez-se o casamento, Júlia de Mendonça foi tomar conta de sua nova casa, onde desde os primeiros dias só encontrou desgostos, seu marido continuou com seu viver antigo, uma só de suas concubinas não foi abandonada; Sousa entendeu que Júlia era apenas mais uma escrava que ia aumentar no seu serralho.

Júlia não sofreu calada a sua nova posição; desde os primeiros dias uma guerra declarou-se entre o marido e a mulher, que com insultos pagava os insultos que recebia. Anos passaram-se nesta luta. Negócios de grande interesse chamaram o marido à província (então capitania) da Bahia, onde, contra o que esperava, se demorou um tempo. À sua volta achou que seu leito conjugal fora manchado, e um menino, que lhe foi apresentado como enjeitado, conheceu em breve ser filho de Júlia. Este homem, que todos os dias violava a fé conjugal com manifesto escândalo, levantou altos gritos contra a esposa infiel; este homem, que aliás perdera todo o direito de queixar-se, pois que o crime de sua mulher era uma conseqüência, ousamos dizer, natural e necessária de seus crimes, dirigiu-se à casa de seu sogro, e altamente pediu-lhe vingança do ultraje que, dizia, a ambos fora feito.

Mendonça acolheu bem seu genro, enfureceu-se contra sua filha, e jurou vingar-se. Um quarto foi de propósito preparado na casa de Sousa, e a infeliz delinqüente foi encerrada nele; ali uma vez cada dia lhe era levada uma magra ração por suas escravas, que aliás tinham ordens positivas para lhe dirigirem os mais grosseiros e atrozes insultos, e elas satisfaziam bem a vontade de seu senhor, vingavam-se bem dos dias que foram obrigadas a servi-la. Nunca mais a desditosa pôde recobrar a sua liberdade. E muitas vezes o infame trazia uma ou mais dessas mulheres vis que lhe vendiam os seus favores, e à vista dela passava noites inteiras nas mais imundas orgias, na mais desenfreada lubricidade. E se por acaso divisava uma lágrima em seus olhos, o malvado soltava risadas infernais, satisfazendo-se com a idéia dos tormentos que a fazia sofrer.

E entretanto, depois de muitas pesquisas, o adúltero foi descoberto. Mandado agarrar pelos peões de Mendonça, foi conduzido garrotado à habitação em que jazia a sócia de seu crime, e aí, diante dos olhos dela, diante de seu pai e de seu marido, que quiseram assistir à execução, foi ele assassinado com a maior barbaridade, exercendo os dois a sangue frio, no corpo já morto, inauditas atrocidades, no meio dos mais torpes e hediondos motejos à infeliz. Não se contentaram; fizeram partir o cadáver em pedaços, e Sousa lhos atirava. — Abraça-te, dizia, abraça-te com o teu querido. Outros pedaços chegavam-lhe aos lábios, gritando-lhe: — Dá-lhe os teus beijos, dá-lhe os teus imundos beijos, ele os merece. E Mendonça o via e presenciava; e Mendonça, o pai da vítima, uma só palavra não proferiu, um só aceno não deu para que fosse poupada. Lágrimas de raiva vertia ela por não poder vingar-se do infame; a tigre devorada pela fome não deita sobre a presa olhos mais chamejantes do que os que ela fitava sobre seu bárbaro marido: raiva impotente! teve de ver tudo e não pôde vingar-se. Desde esse dia se foi finando à vista d'olhos, até que a morte a veio tirar de seus tormentos, depois de cinco anos de prisão.

O menino, a quem Júlia tinha dado o seu próprio nome, foi logo exposto por Sousa em casa de um lavrador da fazenda de Mendonça, não tendo podido obter deste que se lhe desse a morte. Aí estava ao tempo do falecimento de sua mãe, e foi então que um parente desse lavrador, vindo da Europa, sem filhos, e tomando afeição ao miserável órfão, o levou consigo e fez educar. Mendonça, sabendo disto, tramou de sorte que obrigou o lavrador a mudar de capitania; e fazendo arrasar a sua casa e mais benfeitorias, deu nova forma ao lugar, o que tornou infrutíferos todos os exames de Júlio.

Eis aqui o que a Emília contou sua mãe, não sem derramar por vezes abundantes lágrimas, e sem que um só instante deixasse de soluçar; e terminou a sua narração dizendo:

— Todos os atores desta cena, todos os que tiveram dela inteira notícia, estão hoje mortos; resto eu única sabedora deste segredo, não porque teu avô ou meu cunhado Sousa me contassem, mas porque tua infeliz tia me pôde revelar tudo, picando letras com alfinetes em papéis que eu lhe fazia passar em pequenos presentes que conseguia lhe chegassem, e que ela depois atirava por uma fresta, sendo apanhados por uma pequena crioula que os entregava a seu pai, e este mos fazia chegar à mão. Quanto dera eu para conservar hoje essa história, monumento fiel do orgulho, da tirania, da perversidade e da fraqueza humana! Porém o receio de meu pai me fazia lançar ao fogo os papéis logo que os lia. Agora também tu sabes tudo, e podes tudo revelar a esse Júlio; faze o que entenderes, mas repara que muitas vezes os resultados são contrários ao que se espera.

Emília ficou inteiramente aterrada com esta narração; os crimes de sua família, que ignorava, foram um peso enorme lançado sobre seus ombros; a natureza do segredo do nascimento de Júlio a afligia ainda mais. Comunicar-lho-ia?... Como atrever-se a contar essa longa série de horrores?... Ocultar-lho-ia ?... Como, quando via a solicitude e desesperação daquele coração ulcerado? Grandes combates deram-se em seu espírito, mil vezes: resolveu-se a falar, outras tantas a calar. Quanto melhor julgava ela agora ter ignorado tudo! quanto melhor que sua mãe nada lhe houvesse contado! Mas agora sabia tudo, e tudo quanto sabia era matéria para novas tristezas.

Porém, sua condição não podia piorar, Júlio não queria ser dela enquanto não soubesse quem eram seus pais, e só ela lho podia revelar. Era necessário fazer o último esforço, jogar a última carta, contar tudo, ver o efeito que faria o conhecimento desse mistério. Talvez que as relações do sangue servissem para estreitar as outras relações.

Júlio voltou à cidade, porém, mais taciturno e melancólico que nunca. Apenas Emília o soube, usando de todas as cautelas que pôde, e com toda aquela delicadeza de que só as mulheres são capazes, o fez sabedor de quanto sua mãe lhe havia revelado. Júlio recebeu essa carta fatal; uma só palavra não deu em resposta; oito dias sua porta esteve cerrada para todos os que o procuravam, no fim deles desapareceu, tendo antes disposto de todos os seus bens. Debalde Emília o fez procurar, debalde ardentes lágrimas inundaram-lhe as faces; Júlio desapareceu por uma vez.

Oito anos havia que tivera lugar a revelação fatal que separou Júlio de Emília; dava meia-noite; uma só estrela se não divisava em todo o firmamento; o sul soprava com toda a violência; a chuva tinha inundado nossas ruas, de que tanta gente fala mal, e que só são incômodas nos grandes aguaceiros, permitindo fora disso trânsito por todos os modos; reinavam as trevas na cidade, não bastando para as destruir os raros lampiões que então havia; a sineta da porta dos religiosos de Santo Antônio tocou com toda a força. O irmão porteiro pelo postigo perguntou o que queriam; foi procurado um religioso confessor ordinário de uma enferma, que muito tempo havia que não podia sair de sua casa para ir nos templos do Senhor receber o sacramento da penitência, e que agora parecia ter a sua hora chegada. Respondido que o religioso que se buscava não podia sair por achar-se com um violento ataque, foi pedido algum outro, vista a urgência; o guardião ordenou que fosse chamado o irmão Santa Vitória para acompanhar o mensageiro.

Este irmão Santa Vitória ninguém no convento sabia quem ele fosse, ou antes um só indivíduo o sabia: era o provincial. Mostrava ter quarenta anos; era alto, porém magro e pálido; sua cabeça era calva, seus olhos fundo; as rugas de suas faces mostravam que mais de um pesar violento tinha tocado em seu coração; taciturno e melancólico, todavia suas palavras eram afáveis. Havia seis anos que ali fora recebido, e lhe tinham sido dados os hábitos de noviço; ninguém com mais fervor desempenhou nunca todos os deveres inerentes. Seus companheiros nunca dele ouviram uma só palavra; seus superiores, apenas as respostas mais concisas a suas perguntas. Professou no fim do ano, recebeu as ordens, não porque o quisesse, mas porque assim lhe foi ordenado com preceito de obediência. Vivia na sua cela, tendo obtido não aparecer naqueles atos ainda de comunidade que o pudessem fazer ver em público; a oração e o jejum enchiam os seus dias; e o tempo que lhe restava, gastava-o no estudo, que era antes nova oração, pois versava todo sobre os mistérios e provas da religião, nunca distraindo um só minuto para cuidados profanos.

Em capítulo seus superiores faziam-no orar por vezes; ninguém o fazia com mais eloquência, ninguém com mais unção; ninguém negaria que a religião de Jesus Cristo tivera a Deus por autor, ouvindo-a exposta por sua boca. E contudo nunca seus superiores o fizeram orar publicamente; o que dava bastante que entender aos mais religiosos, parecendo-lhes que a causa de Deus e a honra do convento ganhariam muito em que o irmão Santa Vitória pregasse ao menos uma quaresma.

Pela primeira vez Santa Vitória foi assim mandado; mas a hora e as informações do outro religioso fizeram olhar esta saída sem perigo para seus votos.

Santa Vitória foi introduzido em uma casa, onde, tendo subido uma escada, deu em um extenso corredor, alumiado por uma única luz que mais servia para fazer ver a sua extensão do que para o esclarecer; era uma luz, que só servia para fazer ver as trevas. Acompanhando o seu guia, caminhou o religioso esse extenso corredor, no fim do qual se lhe abriu uma porta que lhe deu entrada para uma sala toda forrada de preto; havia a um lado uma mesa; sobre esta uma caveira e dois ossos em aspa; uma pedra do tamanho de um pão e uma disciplina toda salpicada de sangue; dependurado na parede um crucifixo. Havia também um livro que o religioso conheceu ser a Imitação de Cristo.

Havia ainda mais nessa sala: sobre uma pequena marquesa, deitada sobre as tábuas, com um pau por travesseiro, havia uma mulher com um vestido de lã preta, cujas feições ele não pôde distinguir.

Tudo isto não viu ele logo que entrou, mas o foi vendo pouco a pouco, porque uma única vela de cera amarela que ardia não bastava para fazer ver tudo de uma só vez.

— Senhora, disse o guia, eis o religioso; não é o vosso confessor ordinário, que suas enfermidades, e talvez anos, o impossibilitaram de vir; é um outro que o guardião vos mandou.

— Que se aproxime; receberá em pouco o meu último suspiro.

Conquanto estas palavras fossem ditas em voz baixa quase sumida, Santa Vitória julgou conhecer aquela voz; julgou que era uma dessas que no mundo encontrara por vezes; em seu espírito rendeu logo graças ao Altíssimo, porque assim tocara o coração dessa, quem quer que era.

— Chegai-vos, senhor, continuou a penitente moribunda; vosso trabalho durará pouco; meus últimos instantes são chegados. E quanto os tenho desejado! Receio mesmo ter cometido mais um pecado, quando os motivos que me movem não são todos espirituais, e neles tem grande parte uma paixão desgraçada.

A voz da moribunda se ia animando pouco a pouco; cada vez o bom religioso se parecia recordar mais daquele som. Porém não eram recordações que ele vinha buscar, e por isso, com voz grave e pausada, respondeu:

— Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade para os que buscam o seu pacto e os seus mandamentos (1). Bom é o Senhor para os que nEle esperam, para a alma que O busca (2); nunca aquele que n’Ele espera é confundido pela eternidade (3).

— Meu Deus!... Céus!... não me engano; esta voz... Júlio!.. sois vós, Júlio... esta voz é a voz de Júlio...

— Emília!

Eram eles. Quando Júlio recebeu a carta de Emília, que lhe revelava o segredo fatal de seu nascimento, oito dias passou na maior desesperação. Se pudesse saciar em alguém a raiva de que se achava possuído! Mas seus pais eram mortos, seu avô era morto, o marido de sua mãe era morto; sobre quem exercer uma vingança? De Emília não podia ele ser mais. Como viver debaixo do mo teto, dentro das mesmas paredes com uma pessoa que conhecia os horrores todos do seu nascimento? Um dela parecer-lhe-ia uma repreensão de crimes, em que ele aliás não tinha culpa. E suas palavras seriam sempre duras; o azedume de seu coração ressumbraria em ações; infeliz daquele que tivesse de o acompanhar!

Realizou todos os seus bens; pôs o seu produto em mãos seguras; e para fugir aos lugares em que tinham finado seu criminoso pai, seu terrível avô e o bárbaro marido de sua mãe; para nunca mais se encontrar com aquela que única lhe tinha suavizado alguns momentos de sua triste existência, determinou viajar. Para onde guiaria seus passos? Para a Europa, não; a sociedade animada que aí vive, seria um insulto constante a suas dores. Seu estado não era o da misantropia; mas não podia viver com os homens; não os aborrecia, mas eles o não podiam compreender, e por isso se não podia comunicar com eles. A brilhante França, a profunda Inglaterra, a silenciosa Holanda, a metafísica Alemanha, a desditosa Espanha e a morta Itália não lhe podiam oferecer as necessidades de seu coração. Êle queria fugir de Emília, de Sá e de Mendonça; mas queria ver sempre o sol da pátria; queria conservar alguma coisa de comum com o precioso objeto de suas afeições; queria, quando o plenilúnio estivesse no seu zênite, e talvez já caindo para o ocidente, dizer: — Talvez também a esta mesma hora Emília olhe com atenção para a Deusa da noite, e neste mesmo momento se lembre do seu Júlio. — Queria ver as mesmas estrelas. A imagem de Emília vivia sempre em seu coração; era necessário que aí não ficasse isolada, que alguém a acompanhasse; não porque temesse que ela aí definhasse, mas porque essas recordações lhe eram muito preciosas; e muitos dos momentos de sua existência eram suavizados com lembranças.

Foi para as províncias do interior que guiou seus passos; foi em nossos povoados desertos que buscou alguma tranqüilidade a seu espírito. De dia entranhava-se por essas solidões, por essas matas, onde nunca chegou a mão do homem; por essas serras, a par das quais são pequenos outeiros os Alpes e os Pireneus; pelas margens desses rios, alguns dos quais quase nem têm nome, e que todavia são incomparavelmente maiores que o Tejo e o Tigre, o Sena e o Tâmisa. Seu coração se dilatava ao contemplar essa natureza virgem, grande em toda a sua pompa; sua mente passava das coisas criadas ao Criador, e pensamentos de verdadeira religião levantavam-se em sua alma, quando contemplava essa majestosa variedade de substâncias e de formas. Nossos costumes singelos não carecem ainda dessas estalagens cheias de luxo, iguais aos palácios dos reis, onde a peso de ouro se encontram todas as comodidades da vida; nossos viajantes sabem que à primeira porta em que baterem acharão hospitalidade franca, cama e comida, segundo as posses do proprietário. O nosso Júlio, tendo mudado o seu nome, e dando-se por muito diferente daquele que era, depois de passar o dia em suas explorações, de noite buscava abrigo, não em algum opulento engenho ou em alguma vasta fazenda de café; era nas modestas habitações de nossos camponeses de medíocre fortuna, ou menos que medíocre, comprazendo-se em encontrar recordações de sua infância; aí preferia o prato de canjica, a cuia de mate, o beiju, a tigela de leite e a farinha de milho aos mais delicados manjares que lhe poderiam ser ofertados nas mesas dos ricos; e se lhe não feriam os ouvidos os estrondos de uma harpa, se uma doce brasileira com sua doce voz, fazendo caretas e contorções para arremedar os cantores dos teatros da Itália e da Alemanha, lhe não faziam chegar o sorriso aos lábios; ouvia suaves modinhas e lunduns acompanhados com a viola, cantados com expressão, cujos sons melodiosos não paravam nos ouvidos, iam tocar o coração. Quantas vezes chegavam as lágrimas a seus olhos, quando uma simples quadrilha lhe descrevia os rigores da sorte que separa dois amantes, ou as ternuras de uma bem sentida saudade!

O furor e a raiva que dominavam aquele coração foram-se pouco a pouco extinguindo, deixando em seu lugar uma profunda melancolia; Emília ainda o ocupava todo, mas como lembrança de uma visão celeste, como recordação de um pensamento angélico, que daria tudo por ver realizado, mas que sabia ser impossível realizar.

Foi nestas disposições que o achou a morte da pessoa a quem confiara os seus cabedais, o que o necessitou a voltar à corte. Bastante o sentiu ele, não porque receasse por seu coração, mas porque lhe era necessário volver ao rebuliço dos homens, o que de maneira alguma não quisera. Voltou; e como se não sobressaltou o seu coração, como não estremeceu todo o seu corpo, como não sentiu arrepio de frio, e ao mesmo tempo gotas de suor, ao passar pela casa de Emília! Quase involuntariamente entrou nessa porta onde tantas vezes tinha entrado, e força lhe foi necessário fazer para poder passar adiante. E Emília já ali não morava! Debalde perguntou por ela, ninguém lhe soube dizer o que era feito dela; Emília tinha desaparecido, sem que se soubesse para onde se havia retirado.

Era uma quinta-feira santa; dirigiu-se ele por acaso ao mosteiro de Santo Antônio, e aí viu celebrar os ofícios que a igreja faz celebrar nesse dia. A pompa do culto, a singela propriedade do canto, os sons do órgão que retiniam nas abóbadas do templo, o ar tranquilo dos religiosos, muitos dos quais mostravam em seus rostos as vigílias, jejuns e orações em que passavam seus dias, tudo o encheu de um entusiasmo santo pelas coisas sagradas. Suas faces foram incendiadas de pranto quando ouviu entoar este versículo das lamentações: — Nossos pais pecaram e não existem, e nós temos levado as iniqüidades deles. Os servos nos dominaram, e não houve quem nos resgatasse das mãos deles. — Oh! pareceu-lhe que o profeta predizia as desgraças de sua família, o crime de seu nascimento, e os horrores que se lhe seguiram; tudo lhe foi presente como se diante de seus olhos se passara. Quando ouviu logo depois: — Converte-nos, Senhor, a Ti, e nós nos converteremos; renova os nossos dias —, pareceu-lhe que o Senhor o chamava para convertê-lo, e que ali guiara seus passos para mostrar-lhe o único lugar em que poderia encontrar repouso; e repouso com efeito encontrou na religião, essa consoladora universal que tem remédio para todas as aflições da alma.

E Emília abandonada por Júlio o que faria? O mundo perdeu para ela todos os seus encantos; seu coração se foi desapegando dele e voltando para o céu, e o que acontece a todas as pessoas de uma imaginação viva, de dia em dia, de prática em prática, foi aumentando sua penitência e austeridade a um ponto extraordinário. Muitas vezes quis o seu confessor moderar o que julgava excessivo; aquela alma não ficava tranqüila, quando não igualava as práticas dos mais rigorosos cenobitas. Quantas vezes lamentou ela que a depravação do século lhe não permitisse ir viver de joelhos sobre uma coluna de muitos pés, com uma pesada cadeia na cintura! quantas vezes teve desejos de deitar-se sobre um monte de agudos espinhos ou sobre um braseiro ardente!

Agora estava diante de Júlio, e Júlio diante dela. Quem sabe se não chorou nesse momento pelas carnes de seu corpo, pela cor de seu rosto, pela viveza de seus olhos, pela agilidade de seus pés, pela destreza de seus dedos, pelo luzidio de seus cabelos? Quem sabe o que se passou nesse coração, quando depois de oito anos viu diante de si o seu antigo amante? Ainda uma leve vermelhidão subiu-lhe às faces, ainda uma mão descarnada foi atirada para o lugar em que se achava Júlio. Este conservou-se impassível.

— Emília! Não falarão meus lábios a iniquidade, nem a minha língua inventará mentiras (4). O Senhor nos vê e nos ouve, o Seu juízo pende sobre ti, seja Êle a vossa luz e a vossa salvação, e nada podereis temer.

— Júlio, as vossas palavras tranquilizam-me, prestai-me as últimas consolações da religião, porque é certo que a misericórdia do Senhor é a melhor de todas as vidas (5).

Júlio prestou a Emília os deveres de seu ministério últimos instantes, Emília entregou o seu espírito nas mãos do seu Criador. Mas os esforços que fez e o choque que recebeu com essa morte, deram-lhe abalo terrível.

Poucos dias depois os sinos do convento de Santo Antônio, em dobre fúnebre, anunciavam que um homem deixava de existir, que um corpo passava da existência ao nada, que uma alma passava do tempo à eternidade; o requiem sepulcral foi entoado, a terra tragou aquele que dela havia saído, e sobre a lápide que lhe fechou o túmulo, foram gravadas estas palavras: — Júlio de Santa Vitória.

(Panorama do conto Brasileiro, p. 197-219)