PRETO NO BRANCO

Chicote e cacetete falam a mesma língua,
seguros pelo cabo dos que estão por cima,
apagando com a mancha branca que assassina.
A Pátria dos Quilombos não se dá por vencida.
Zumbi dos Palmares e Xica da Silva
são lições de corpo e alma da mais linda rebeldia.
Todo mundo se lembra da princesa Alisabel,
a mamãe noel da liberdade doada.
Todo o favor quer um troco:
manter a pátria amada deitada em berço esplêndido.
Fantasia custa caro.
Sem saída vive o beco.
O camburão é a gaiola do lixo humano.
A limosine é a casa do luxo desumano.
Linha de cor, código de barra.
Quanto mais escuro for, o estigma vem e mata.
Na flor da pele o espinho do racismo
que alimenta o espelho do cinismo.
Casa grande e senzala.
Mansão e favela.
Feira e shopping.
Cozinha e sala.
Elevador social e elevador de serviço.
O Brasil entre a Ilha de Caras e o Cemitério dos Vivos.
Quem inventou essa hierarquia quer a língua do canhão.
Mama África excluída não precisa de patrão.
Foi o branco, de coroa e de cruz na mão,
que criou o pecado e a punição,
e de língua travada,
ainda ensaia um perdão.
A cabeça da gente está cheia de história
de branco no preto, de falsas glórias.
Nosso povo quer saber do outro lado:
preto no branco, sem esquecer do passado.
"Escurecendo a questão", como diz o poeta,
saberemos a razão do acrobata da dor
no picadeiro das bestas feras.

(Dezlokado, pg. )

 

 

O TOSCO NÃO ME TASCA

PARTE DO ALTO

 

Fome de estrelas
Sede de chegar à Lua
Mesmo comendo poeira
Vou fazendo morada na rua
Lar com tantas esquinas
Fonte encantos encontros
Marcantes porque vêm de dentro
Abraços doces e francos
Sorriso sempre aproxima
O extremo fica ao seu lado
Pólos pontos distintos
Juntos, retas aladas
Curvas além do destino
Acaso sujeito avoado
Na corda bamba dos planos
Colhendo o que é bom dos contrários
Duvidar do exato é certo
Fico assim perto do achado
Faz bem descobrir que a moldura
Contribui pra beleza do quadro
Chama de luz não manda recado
A gente não nasce pra ser quadrado
Flor do desejo, samba rasgado
Verbo em teus lábios parte do alto

(Dezlokado, pg. )

 

PRETO NO BRANCO

Chicote e cacetete falam a mesma língua,
seguros pelo cabo dos que estão por cima,
apagando com a mancha branca que assassina.
A Pátria dos Quilombos não se dá por vencida.
Zumbi dos Palmares e Xica da Silva
são lições de corpo e alma da mais linda rebeldia.
Todo mundo se lembra da princesa Alisabel,
a mamãe noel da liberdade doada.
Todo o favor quer um troco:
manter a pátria amada deitada em berço esplêndido.
Fantasia custa caro.
Sem saída vive o beco.
O camburão é a gaiola do lixo humano.
A limosine é a casa do luxo desumano.
Linha de cor, código de barra.
Quanto mais escuro for, o estigma vem e mata.
Na flor da pele o espinho do racismo
que alimenta o espelho do cinismo.
Casa grande e senzala.
Mansão e favela.
Feira e shopping.
Cozinha e sala.
Elevador social e elevador de serviço.
O Brasil entre a Ilha de Caras e o Cemitério dos Vivos.
Quem inventou essa hierarquia quer a língua do canhão.
Mama África excluída não precisa de patrão.
Foi o branco, de coroa e de cruz na mão,
que criou o pecado e a punição,
e de língua travada,
ainda ensaia um perdão.
A cabeça da gente está cheia de história
de branco no preto, de falsas glórias.
Nosso povo quer saber do outro lado:
preto no branco, sem esquecer do passado.
"Escurecendo a questão", como diz o poeta,
saberemos a razão do acrobata da dor
no picadeiro das bestas feras.

(Dezlokado, pg. )

 

CAFÉ COM LEITE

 

me chama café com leite
quem é chá com porrada

(Dezlokado, pg. )

 

 BOM BRIO

 
Para aqueles que dizem
que tenho bombril na cabeça.
digo que tenho bom brio na cabeça.
ruim
é quem acha
o meu cabelo ruim
De que vale seu cabelo enrolado
com as ideias alisadas
dentro da sua cabeça?

(Dezlokado, pg. )

 

 VIVO DE AMORES

Vivo de amores
por pessoas
que gostam de pôr um ponto
de interrogação nas coisas.

Sou mais fascinado
por aqueles que fazem arte,
falam o que pensam,
e, por isso, sabem escutar
o que não querem.

Prefiro a luz acesa da dúvida
ao apagar da certeza.

(In: http://www.republicadopensamento.blogspot.com.br/).

 

AQUI É O PAÍS DO FUTEBOL

 

aqui é o país do futebol
onde o gol com a mão vale
onde o drible é vaiado
onde o carrinho é aplaudido
onde o placar é armado

aqui é o país do futebol
onde o juiz é comprado
onde o craque é violentado
onde o perna de pau é premiado
onde o cartola é recompensado

aqui é o país do futebol
onde o torcedor fica pra escanteio
onde a força expulsa a arte
onde a falta leva vantagem
onde a vitória é o empate

(In: http://www.republicadopensamento.blogspot.com.br/).

 

Texto para download

Gosto de Amora

Mário Madeiros

Eram rosas e azuis e faziam uma enorme planície de cores em contraste com o verde do chão. Na minha cabeça era um campo grande gigante, tão grande quanto meu pai, cujos passos eu mal conseguia acompanhar. Eu me lembro de caminhar e às vezes saltar para poder apressar meu passo, como ele a todo instante falava que eu deveria fazer. Mas eu gostava, ele não falava mal, era bonito de ouvir, bom. Meu pai era um homem cheio de conselhos e ditados. “Apressa o passo, que cobra que não anda não engole sapo”. Eu não entendia bem aquilo e ficava imaginando uma cobra parada em sua toca, sem mover os pés – sim, eu pensava que cobras tinham pés, já que ele dizia que elas precisavam andar para engolir sapos – vendo a vida passar e os sapos, sapinhos e pererecas olhando em desafio, dizendo “dona cobra, não vai me engolir? Venha cá fora, dona cobra”, com a  voz como naquela história que ele contava toda noite para mim, antes de dormir, da Festa no Céu, e como o sapo astucioso fez para chegar no baile do céu. O sapo, para mim, era o bicho mais inteligente do mundo, mais inconformado também e mais sofrido. Especialmente o cururu, todo rajado preto, das suas cicatrizes. Desafiava a cobra, bolava um plano para subir aos céus, se esborrachava todo no chão, caído de um lombo de pássaro ou de uma nuvem (a história mudava toda noite, mas eu gostava dos dois caminhos) e voltava no dia seguinte para fazer tudo de novo. Cobra que não anda não engole sapo, então eu tinha que ser rápido para chegar ao nosso destino, a todos os destinos do mundo, em passos largos apressados, como aprendi com meu pai.

Eram rosas e azuis e eu nunca entendia muito bem porque meu pai parava na Floricultura Formosa – era sempre a mesma – para cumprimentar o homem velho gordo preto de longa barba branca e risada alta. Ele dizia sempre a mesma coisa: “É o menino! Ei, menino, leve uma flor para sua vó, outra para seu tio e esta aqui para seu irmãozinho. E tome seu pirulito”. Eu tinha um irmão que nunca saía daquele campo rosa e azul, junto da minha avó e meu tio. A gente visitava eles, junto de um monte de gente que eu nunca lembrava direito o nome mas que meu pai dizia ser tudo Parente, parente nosso. E eu nunca entendia porque todo mundo morava no mesmo campo verde, mas eu ia, com meu Pai Gigante, Gigante forte e preto, com cheiro bom de banho tomado de manhã, junto comigo, que ele fazia questão que a gente tomasse todo dia e penteasse o que ele chamava de “a nossa raiz”, toda para trás, e passasse desodorante lavasse o rosto, escovasse o dente e arrumasse a cama… eu achava meio chato tudo aquilo, todo dia, mas cobra que não andava não engolia sapo, meu Gigante Preto fazia questão de dizer. E se seu rateasse, ele se fingia de bravo ou ficava muito mau mesmo e me controlava só com o olhar para dizer aquele ditado que eu mais temia: passarinho que come pedra, sabe o intestino que tem. Meu, eu não conseguia deixar de pensar no suplício que seria comer pedra, com ou sem opção e como ela sairia depois. E me dava um medo, igual quando minha avó Dita dizia que se a gente comesse laranja ou melancia com semente, as sementes iriam brotar de dentro da gente. Eu não queria comer pedra, nem semente de laranja ou melancia, nem imaginar como isso tudo iria sair de dentro de mim, então eu fazia, fazia tudo, temendo o pior que a voz do Gigante Preto era capaz de dizer.

E eu não queria deixar aquelas flores que o velho gordo preto de barba branca da Floricultura Formosa me deu caírem no chão. Eu queria entregar pro meu irmão, que meu pai dizia ter ido embora um pouco antes de eu nascer e que agora morava ali com a gente nossa e era feliz. Eu não sei como meu irmão fazia, porque já achava muito difícil morar na nossa casa, nossos pais e o outro irmão nosso, já era bem complicado. E ele morava com aquele mundo de gente. Será que tinha regras, se tinha que tomar banho, comer, acordar na hora certa? Será que ele tinha que ir para escola todo dia e ficar fazendo conta e um monte de coisa chata? Eu sempre perguntava pro meu irmão, mas ele só sorria, sempre o mesmo sorriso, piscando maroto, numa foto dele garoto, e se eu ouvia a sua voz era apenas dentro de mim, atrapalhada pelo meu pai que estava sempre colocando a mão no rosto quando a gente chegava na casa azul do meu irmão. E a mão do Gigante voltava toda molhada lá de cima do seu céu, me abraçando forte contra seu peito. Eu não entendia nada.

Eu sempre deixava meu Pai Gigante um pouco sozinho, porque ele havia me ensinado que às vezes o silêncio falava muito alto e a gente precisava andar um pouco para poder ouvir a voz do vento. Então, eu andava pela casa azul do meu irmão, pela casa rosa e desbotada da minha avó e via que elas eram todas parecidas com outras casas azuis e rosas de tanta gente ali naquele campo verde e bonito, onde o vento fazia curvas e mais curvas, falando alto em silêncio, até que eu chegasse ao meu lugar preferido dali da casa de todo mundo.

Era uma parede enorme, com uma galeria de retratos de gente muito antiga ou de moradores novos que estavam por ali. Eles me ajudavam nas aulas de matemática, porque eu ficava fazendo conta, com os números que meu pai me ensinou, que significavam quando aquelas pessoas tinham chegado ao mundo e quando tinham chegado à “Casa da Formosa”, como ele gostava de dizer. Eu sempre perguntava a ele se algum dia a gente iria morar ali também e ele me dizia que sim. Então, eu ficava fazendo conta para saber quanto tempo as pessoas demoravam para mudar de casa e ficava meio espantado quando parecia que tinha gente não levava nem um ano enquanto outros ficavam uns oitenta ou mais ali, indecisos, entre uma morada e outra.

Mas o que eu gostava mesmo do paredão não era ele em si, nem as fotos, nem tanto os números, quanto o sabor daquelas frutinhas pretas bem doces, que a árvore que saía de trás dele, dava. Era grande, enorme, porque tudo era gigante pra mim. E toda vez que eu ia visitar meu irmão, minha avó e aquele mundo todo de gente que morava ali, eu não podia sair de lá sem visitar a árvore gigante que dava aquela fruta preta como a gente, doce como minha vó Dita e cheia de bolinha feita a cara do meu irmão mais velho em nossa casa. Que meu pai dizia que o nome era feminino de amor. E eu não me importava que ela sujasse a minha mão, mas minha mãe ficava uma arara quando a gente chegava e eu tinha mancha preta, roxa, bordô pela camisa e pelo calção. Meu pai me ajudava a lavar e limpar e sempre trazia com ele também um saco cheio de amoras.

E quando minha mãe sempre perguntava como e por que eu conseguia trazer aquilo tudo, eu dizia que tinha pedido licença, igual ela tinha me ensinado, para toda aquela gente que morava ali, e que tinha pedido direitinho para poder subir em algum daqueles telhados rosas ou azuis de lá e começar pegar as amoras e colocar no saco, que eu trazia guardado no bolso escondido do calção. E que sempre eu não via chegar o Gigante Preto Pai atrás de mim, que me colocava nos ombros para eu poder chegar nos galhos mais altos e que me falava que, se eu tivesse pedido licença e com educação, estava tudo bem, que eles iam deixar eu pegar e ficava ainda mais doce, porque amora era feminino de amor. E que um dia todos nós iríamos morar ali e dar frutas doces uns para os outros e para quem visitasse nossa casa. Eu perguntava, então, sempre para o meu pai quando a gente poderia se mudar, porque tudo ali parecia ser mais legal que a escola e o chato do meu irmão e a molecada da rua de cima. E o vento ria alto de mim, enquanto a tarde caía sobre nós.

(Gosto de amora, p. 65)

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Escutem, vou contar um caso para vocês. Conheci, numa cidade cujo nome não me recordo no momento, dois rapazes muito amigos e que se consideravam irmãos, vestiam iguais, comiam juntos, onde um ia o outro também o acompanhava e assim por diante.

Eles eram tão unidos que chegavam a dizer: nunca havemos de nos separar, a não ser com a morte de um de nós.

Neste lugar todos admiravam e chegavam mesmo a invejar a união dos dois rapazes, até mesmo os colegas faziam coisas de horror para ver se destruíam aquela amizade, porém nada conseguiam.

Um dia, um daqueles camaradas, bastante revoltado por não conseguir separar os amigos, apelou para Exu, dizendo assim para os demais que se achavam presentes no momento:

— Nós não podemos dar jeito preciso para fazer estes dois camaradas se separarem, não é? Pois tenho plena certeza de que Exu vai fazer o que nós queremos e para este fim já o invoquei.

Todos que ouviram ele falar naquele momento ficaram arrepiados devido à atitude tomada pelo amigo, porém, como estavam no mesmo propósito, não levaram em consideração o que poderia acontecer.

 

Passados alguns dias, os dois camaradas saíram passeando e, como era tempo de frutas, eles foram por uma estrada onde avistaram uns pés de cajus em posições contrárias, e cada um com os frutos mais bonitos.

Vai um deles e diz:

— Eu vou colher alguns cajus naquele cajueiro do lado direito.

E o outro também, por sua vez, disse:

— Eu colherei daquele lado esquerdo pois acho melhor que os da direita.

Quando eles subiram nos cajueiros e estavam colhendo os cajus, apareceu na estrada um homem vestido com um pierrô com um lado preto e o outro vermelho.

O homem, que era Exu, passou pela estrada entre os dois rapazes e, quando já ia bem distante, um dos rapazes perguntou para o outro:

— Você viu aquele homem que passou pela estrada com uma roupa vermelha?

— Para mim está parecendo que hoje é carnaval e os cajus estão lhe fazendo ficar bêbado, porque aquele homem que passou pela estrada foi vestido de preto — respondeu o outro.

O primeiro, convicto do que tinha visto, disse:

— Lembre-se que existe grande consideração entre nós, nunca lhe menti, e não admito que me chame de mentiroso.

Daí desceram dos cajueiros e entraram em discussões severas, a ponto de brigarem corporalmente; quando estavam bem cansados, sem que houvesse um vencedor, o dito homem voltou e ia desapartar a briga, chegando em posição contrária; imediatamente os rapazes reconheceram o homem e um deles disse:

— É, meu amigo, você está com a razão.

O outro, respondendo, falou:

— Você também está com toda razão, pois estou vendo o mesmo homem com a vestimenta da cor que você disse; aconteceu ou fizeram qualquer mal contra nós para nos separar.

Aí então o homem, que era Exu, explicou:

— Ninguém fez nada demais contra vocês, fui eu quem quis fazer assim para mostrar que, nesse mundo, nem tudo pode ser como vocês querem — e desapareceu.

Os rapazes continuaram sendo amigos, porém não existia mais aquela amizade e dedicação que tinham antes.

 

(Contos negros da Bahia e Contos de nagô, p. 131-134.)