Paula Brito:

precursor da imprensa negra e do conto brasileiro

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

É espantosa a quase ausência de estudos a respeito da vida e da obra de Paula Brito. O esquecimento, enquanto morte simbólica, deixou as marcas da indiferença se sobressaírem em relação ao grande potencial expressivo, presente no conjunto de realizações literárias e jornalísticas do nosso autor. Graças a uma certa gama de pesquisadores, que atuam na linha de resgate da memória cultural produzida pela literatura, enquanto documento histórico, foi possível detectar e destacar os atributos que ofereceram um tom especial à atuação de Paula Brito no cenário intelectual do Brasil oitocentista.

Paula Brito foi um dos ícones da manifestação estético política afrodescendente, que se fez valer no mundo das letras e do jornalismo, em combate direto e sofisticado ao regime e sobretudo à mentalidade escravocrata do século XIX. A fim de destacar sua atuação, é preciso considerar o homem de ação e o homem de discurso que, fundidos, atuaram de maneira íntegra no conjunto de suas atitudes junto à composição cultural do país. Com o periódico O Homem de Cor – que depois passou a ser chamado O Mulato ou o Homem de Cor, Paula Brito entrou para a história do jornalismo, ao promover o início da Imprensa Negra no Brasil. Entre 14 de setembro e 4 de novembro de 1833, o mencionado jornal especializou-se em dar voz e vez ao negro, compreendido como agente da própria história, o que desmontava o padrão editorial da época, que costumeiramente destacava nas folhas públicas os atos daqueles comprometidos com a ordem escravocrata, ou seja, “os donos do poder”, conforme designação de Raymundo Faoro. É possível suspeitar que parte significativa do silenciamento crítico a respeito da obra de Paula Brito ocorreu pelo fato deste ter enveredado pelos caminhos do engajamento étnico, via jornalismo de denúncia, o que deve ter assombrado os donos das ‘capitanias intelectuais’ do Brasil Império.

Apesar de Oswaldo de Camargo destacar este importante papel exercido pelo nosso escritor, Nélson Werneck Sodré, estudioso da formação da imprensa brasileira, faz uma menção bastante panorâmica do jornal O Homem de cor, ressaltando, ainda que de forma não muito detida, a postura de ‘rebeldia editorial’ apresentada pelo periódico, mas opta em dar um maior destaque a outros dois momentos de atuação do jornalista na imprensa: “[Paula Brito] fundou o periódico A Mulher do Simplício, atacando Evaristo da Veiga; mas foi A Marmota a sua melhor atividade em jornal” (1966, p. 223). Cabe aí uma questão: por que Sodré, ao reconhecer o empenho jornalístico de Paula Brito, ressalta a atuação deste nos dois periódicos mencionados em detrimento àquela realizada em O Mulato ou o Homem de Cor, “o primeiro jornal brasileiro dedicado à luta contra os preconceitos de raça”, conforme ressalta a biógrafa do jornalista, Eunice Ribeiro Godim (apud CAMARGO, 1987, p. 41)?

Primeiro temos que nos ater à formação marxista de Nelson Werneck Sodré que condiciona o seu operador de leitura. Para essa corrente, a grande contradição da sociedade está na exploração do trabalho e não especificamente nas questões étnicas. O negro seria mais pobre e mais explorado devido à circunstância histórica do capitalismo brasileiro. Portanto, a centralidade no combate ao racismo nada mais é do que a luta contra o capitalismo. O problema desta posição é não considerar as especificidades já gestadas nos seios da sociedade, como o racismo, considerando-o apenas um sub produto das diferenças de classe. Deste modo, o periódico O Mulato foi percebido por Sodré como um veículo de comunicação que lutou contra a desigualdade imposta por uma sociedade submissa ao capital, a partir de práticas de exploração. Entretanto, este mesmo periódico, conforme alertam Oswaldo de Camargo e Eunice Ribeiro Godim, foi um instrumento de combate às desigualdades culturais incorporadas socialmente, com destaque ao racismo, denunciando-o como mecanismo de opressão.

O pertencimento étnico de Paula Brito, enquanto responsável decisivo para os seus posicionamentos ideológicos contra a “morte social” do negro, não foram levados em consideração por Sodré. A este interessava o combate do jornalista ao acerto hegemônico que pautava as relações pertinentes à economia política praticada no Brasil oitocentista. Paula Brito participou, como jornalista e tipógrafo, de forma decisiva, do “Sete de Abril”, em 1831, data reconhecida pelo historiador José Murilo de Carvalho (2001) como a verdadeira independência nacional: o início do governo do país por si mesmo. Naquele momento, a expressão partidária pautava a cobertura política feita pelos jornais da época. Conforme nos conta Sodré (1966, p. 142), os órgãos de imprensa se dividam em três áreas ideológicas: o primeiro grupo, constituído pelos conservadores de direita, eram ainda ligados às benesses obtidas no período regencial; o segundo, formado pelos liberais de direita, faziam o papel de centro; e o terceiro era constituído pelos liberais de esquerda. Neste encontrava-se, dentre outras personalidades, Paula Brito. Ele começava a sua carreira jornalística literária naquele momento, atacando em versos a figura central do liberalismo de direita, Evaristo da Veiga, no jornal A Mulher do Simplício, que ele mesmo imprimia, colaborava e era o editor responsável. A partir da imprensa panfletária, que inspiraria os pasquins, Paula Brito, na própria tipografia, fazia panfletos em favor do movimento de Sete de Abril.

Ao afirmar que “foi A Marmota a sua melhor atividade em jornal”, Sodré (1966, p. 223) quis destacar a figura de Paula Brito como o descobridor de talentos, acolhendo uma gama de escritores e dando-lhes a oportunidade de verem seus escritos publicados no periódico coordenado por ele. A linha editorial da Marmota buscava o entretenimento, isto é, distrair as sinhazinhas e os estudantes com romances e novelas anônimas. Foi naquele jornal que se deu a estréia, em 1855, daquele que viria a ser o maior escritor da literatura brasileira, Machado de Assis. Aliás, neste quesito, a fortuna crítica reconhece a generosidade de Paula Brito para com Machado, apadrinhando-o e oferecendo-lhe as primeiras oportunidades de emprego na sua tipografia. Lúcia Miguel Pereira oferece-nos um retrato cândido de Paula Brito. Vejamos:

 

Paula Brito, também mulato e pobre, começara a vida como tipógrafo na Tipografia Plancher, e, em 1831, estabelecera-se com oficina própria. Dentro em breve, tornava-se a sua casa o centro da vida literária. Tão bom homem quanto mau poeta, generoso, serviçal, sempre pronto a auxiliar os escritores com a sua bolsa e com grandiloquentes elogios na Marmota, por ele dirigida e editada. Francisco de Paula Brito foi realmente um grande animador.

Nos balcões de sua loja debruçavam-se para conversar todos os intelectuais do momento. (PEREIRA, 1988, p. 50).

Há distorções neste retrato de Paula Brito traçado por Lúcia Miguel Pereira. Ela aponta uma proporcionalidade entre a bondade do homem e a falta de qualidade em seus poemas. Suspeito que a crítica, para balizar a sua opinião, tenha se conformado em avaliar o livro Anôminas, uma coletânea de poesias de Paula Brito, publicada em 1859, deixando de fora os seus versos de ordem política. Revela-se aí um preciosismo estético que, necessariamente, não admite outras possibilidades de êxito literário, como a manifestação política que pode muito bem funcionar como parâmetro de qualidade textual. Em contrapartida, Sodré reconhece o potencial político dos versos de Paula Brito, no jornal A Mulher do Simplício, que foram combativos, em se tratando de um momento bastante turbulento da política brasileira que ajudou a consolidar formalmente o nosso processo de independência.

É preciso, neste caminho, ressaltar que o mérito de uma literatura que traga em seu bojo os anseios de grupos considerados minoritários, como é o caso dos afrodescendentes, é oferecer visibilidade política e artística a esta faixa da população. Se o cânone literário é marcado por uma natureza que vai além da política, em nome da estética, cabe dizer que esta ‘transcendência’ não é o único caminho de elaboração da expressão textual. Ou seja, os conflitos de ordem étnica, econômica, social, política, cultural e de gênero oferecem um material digno que posiciona a literatura como uma arte comprometida com o poder de transformação da humanidade, com vistas a se tornar uma comunidade mais solidária e menos sectária.

Além da problemática afrodescendente, a tipografia e a escrita de Paula Brito se comprometeram com a causa das mulheres, a partir da publicação do pasquim A Mineira no Rio de Janeiro, e com a defesa do entrudo, através do primeiro periódico do carnaval carioca, O Limão de Cheiro. Lembremos que o entrudo foi cercado por uma polêmica que marcou todo o século XIX. Por se tratar de uma diversão que consistia, dentre outras práticas carnavalescas, em os participantes arremessarem limões uns nos outros, o poder municipal, dentro de uma política higienista, buscou censurar aquela festa por considerá-la uma prática rústica e selvagem. Cronistas como José de Alencar endossaram este parecer. Em “Ao correr da pena”, de 14/05/1855, Alencar considerou o entrudo um “jogo grosseiro e indecente (...) que por muito tempo fez as delícias de certa gente” (1960, p. 722). Não se filiando à corrente anti-entrudo, Paula Brito entendia aquela festa como uma manifestação genuína dos ‘barrados no baile’: aqueles que não tinham acesso aos teatros e cafés pomposos, freqüentados pelos mais afortunados. Se considerarmos que “a cultura popular na cidade era, e ainda o é, fortemente marcada por manifestações de origem africana/afrodescendente”, conforme destaca o pesquisador Adélcio de Souza Cruz (2003, p. 23), podemos afirmar que Paula Brito revelou um dos mecanismos sutis de racismo no Império: um ataque mais endereçado do estamento dominante ao “espaço” ocupado por aquela população. Como vemos, o carnaval nem sempre foi sinônimo de alegria e de convivência pacífica entre os diferentes grupos étnicos e sociais neste país.

Ainda sobre a abordagem realizada por Lúcia Miguel Pereira a respeito de Paula Brito, cabe destacar o seu ‘ranço racista’ que prejudica uma melhor avaliação dos serviços prestados pelo nosso escritor à cultura brasileira. Ao dizer que ele era “bom” e “serviçal”, Pereira reforçou certos estereótipos construídos pelos brancos, quando se refere aos negros. Ergue-se a idéia do negro bom e prestativo, ciente do seu papel de subalterno e sempre à disposição para obedecer os mandos do sinhôzinho. Ela, em nenhum momento, reconhece Paula Brito como um intelectual e chega a chamá-lo de “animador”, isto é, um entusiasta da produção literária alheia, esquecendo-se (ou desconhecendo?) que ele foi também escritor. Cabe destacar que Paula Brito, além de jornalista, poeta e um dos precursores do conto no Brasil, conforme destaca Barbosa Lima Sobrinho (1966), foi tradutor das fábulas de Esopo e escrevia também peças teatrais, dramas e comédias, tais como O Triunfo dos Indígenas, Os Sorvetes, O Fidalgo Fanfarrão, que se perderam no redemoinho do tempo. Em seu esforço infatigável, criou o Arquivo Municipal, editou a Guanabara, redigida por Gonçalves de Magalhães, Porto Alegre, Joaquim Manoel de Macedo, Fernandes Pinheiro e Gonçalves Dias: a primeira geração romântica da literatura brasileira.

Se Lúcia Miguel Pereira enveredou pelo estereótipo do “negro bom”, marcado pela passividade e pela cordialidade deste perante a ordem escravocrata, retratando de forma distorcida Paula Brito, Machado de Assis, companheiro dele, atuou de maneira diferente, dedicando-lhe a crônica de 24 de dezembro de 1861, publicada no Diário do Rio de Janeiro, dias após a sua morte. Machado louva a bondade e a capacidade de Paula Brito em fazer amigos. Porém esta habilidade não parece isolada no comentário do cronista. Este, a seguir, reconhece enfaticamente a capacidade intelectual do amigo, manifestada de forma autêntica e coerente em suas posições políticas, jornalísticas e literárias. Para Machado, a generosidade de Paula Brito estava centrada tanto nos discursos ficcionais e reais que elaborou, como na ação de colocar à disposição dos escritores, principalmente dos jovens talentos, a sua tipografia, com o objetivo de estimular a produção e a publicação das obras destes. Por conta do seu espírito solidário e empenho intelectual, “deve-se chorar a perda de homens que, como Paula Brito, sobressaem na massa comum dos homens”, salientava Machado (1970, p. 96) na conclusão de seu texto.

Até o presente momento, foram ressaltados os feitos que projetaram Paula Brito como personalidade versátil do mundo das comunicações. Seu espírito empreendedor fez-se presente de maneira mais acentuada nos bastidores da atividade impressa, ao atuar como tipógrafo e editor, e nos jornais alternativos, emprestando a sua pena aos anseios daqueles que ficavam à margem dos holofotes do poder. Nesse último caso em especial, é necessário trazer à baila o ficcionista, que se fez presente no Jornal do Comércio, em 1839. A Edição Comemorativa do Primeiro Centenário daquele periódico indica que Paula Brito atuou por lá, de forma mais freqüente, “como tradutor de novelas e romances publicados em folhetins” (apud LIMA SOBRINHO, 1966:184) e também como redator em 1839 e 1840. Assinando P.B, ele, no Jornal do Comércio, foi autor de um conjunto de textos que foram destacados pelo jornalista Barbosa Lima Sobrinho (1966) como fundamentais para a formação do conto no país. São eles: “O Enjeitado” (28 e 29/03/1839), “A Mãe-Irmã” (10/04/1839) e “A Revolução Póstuma” (09/03/1839). Entre estes trabalhos de ficção, seguindo o critério de seleção, proposto pelo próprio Barbosa Lima Sobrinho em seu livro Os precursores do conto no Brasil, temos à disposição os dois primeiros contos anteriormente mencionados, que constituíram o nosso corpus de análise.

A mãe-irmã

Este texto de Paula Brito conta a história do casal negro, Alzira e Narciso, que, contrariando a moral e os bons costumes da época, tiveram o filho Guilherme, enquanto solteiros e sem o consentimento do pai da moça. O velho militar tinha outros planos para a filha, pois, ele buscava alguém de prestígio político e econômico, no caso, um militar, para casar-se com ela. Narciso não se enquadrava neste perfil, pois não era militar, ocupava a modesta posição de caixeiro viajante, além de ser propriedade do tio de Alzira. Atendendo a uma ordem dele, Narciso, a título de negócio, teve que embarcar para a Ásia, muito à contragosto, pois isto significaria separar-se de Alzira. Esta se vê diante de dois conflitos: o da gravidez indesejada e o da partida do companheiro. Ela resolve então dividir tais notícias com a mãe. Ambas simulam uma história para abafar o caso e não contrariar o militar. Para a felicidade dele, a esposa anuncia que está grávida, livrando a filha da “desonra”. Alzira, de mãe biológica de Guilherme, passa a ocupar o papel de irmã do menino. A avó ocupa o papel de mãe e o avô, o de pai. Deste modo, o militar realizava o seu velho sonho de ter um herdeiro. Em nome da ordem familiar, pautada pela dissimulação, tudo, até então, estava ajustado.

O script da trama apresenta a seguinte estrutura narrativa: apresentação, complicação, clímax e desfecho. No conto em questão, a apresentação é marcada predominantemente pela caracterização dos personagens. Paula Brito, por meio de Alzira, causou uma ‘reviravolta estética’ aos padrões de beleza da época, ao apresentá-la de maneira muito especial, vejamos:

Alzira tinha dezesseis anos; não era uma dessas fisionomias que tanta bulha fazem nos romances que nos vêm da velha Europa; era cá da América, e era bela quanto podia ser; não tinha essa cor de leite, que tanta gente faz entusiasmar, mas tinha um moreno agradável, próprio dos trópicos; suas faces não eram de carmim, mas de um pálido tocante, que convidava todas as afeições; seus olhos não eram azuis como o céu do meio-dia, mas eram negros como o azeviche; (...) seus cabelos não eram da cor do ouro, não lhe caíam em anéis sobre ombros jaspeados, mas eram finos, mui lisos, em muita quantidade, e mais pretos e luzidos que o preto ébano (....) (PAULA BRITO, 1966, p. 185, grifos nossos).

A descrição da personagem Alzira encontra-se relacionada ao campo semântico da natureza, como é próprio do Romantismo brasileiro. Porém, seus traços, que se contrapõem aos da estética dominante, são valorizados pelo escritor, através da voz narrativa. Não há no texto a reprodução do estereótipo comum da ordem senhorial, que ao caracterizar o afrodescendente, desenvolve comentários que ressalta uma série de atributos positivos, enquanto a cor é tida como um ‘defeito’. Paula Brito utiliza a conjunção adversativa (“mas”), de maneira a não inverter a polaridade do preconceito. Reconhece a beleza européia e loira, ao mesmo tempo em que ressalta a grandiosidade das mulheres de cor e de cabelos negros. Outro ponto que merece ser destacado é que o narrador utiliza a natureza como “cenário idílico” tanto para descrever as brancas como as negras, colocando-as em condição de igualdade aos olhos de quem as admira.

O conto traz em seu bojo a perspectiva de gênero. Enquanto o pai e o tio de Alzira são descritos como homens severos e rígidos, como rezavam as cartilhas do ‘bom’ militar e do ‘bom’ negociante, respectivamente; as mulheres, Alzira e sua mãe, são reconhecidas pela beleza e pela bondade. A denúncia da opressão feminina cometida pelos homens é um dos pilares temáticos do texto. Os desmandos da ordem patriarcal farão com que Alzira e sua mãe tenham que escamotear a verdadeira história que cerca o menino Guilherme, com o objetivo de não desagradar o velho militar. Ao advogar a favor da mãe de Alzira, Paula Brito destaca que, naquele contexto, a dissimulação é um dever quando a sinceridade é um perigo. Diante da hegemonia masculina, ou da “doxa falocêntrica”, no dizer de Eduardo de Assis Duarte (2002, p. 17), resta à mulher subalternizada a dissimulação1 como estratégia de sobrevivência.

Para tanto, em “A mãe-irmã”, o narrador, mesmo ciente da reprovação dos leitores diante da mentira, não se acanha em apoiar a esposa que enganou o marido, utilizando para isso o papel das circunstâncias na construção do veredicto moral de uma história. Como primeiro argumento, o contista recorre à Bíblia Sagrada para justificar o “direito de mentir”, quando a causa é nobre e/ou de sobrevivência. Rebeca engana Isaac para que este abençoe Jacó, ao invés de Esaú. Paula Brito resgata esta história cara à literatura universal para endossar a atitude da mãe de Alzira que mente para o marido a fim de salvar a reputação da filha e oferecer, por um outro caminho, o tão desejado “varão” ao esposo.

Além do aspecto religioso, o direito de propriedade é acionado pelo narrador para balizar a artimanha das mulheres da trama. Com a simulação feita, Guilherme passa a ser considerado filho do casal e Alzira, de mãe, é abordada como irmã dele. Neste caso, ela passa a ser a única herdeira da história, o que garante o sustento seu e do rebento. Não há a ameaça de terceiros que possam, portanto, se apoderar do patrimônio construído pela família. Diante destes motivos, o contista, na tentativa de convencer os seus leitores, pondera: “se estas razões não desculparem a boa mulher, não temos outras melhores para dar” (PAULA BRITO, 1966, p. 190).

A gravidez não-planejada de Alzira marca na narrativa o que Ulisses Infante (2001) chama de “complicação”, por se tratar da parte do enredo em que uma ação inesperada vai abalar o andamento normal da trama que, nos momentos iniciais, estava marcada pelos encontros românticos envolvendo a “feiticeira” dama e o escultural “mancebo”. Após adiantar que o relacionamento deles não seria bem assimilado pelo pai da moça e, por extensão, pela ordem social, o autor alerta que o sentimento amoroso abala as estruturas consideradas como racionais: “a razão pode muito, mas o coração pode mais que a razão” (PAULA BRITO, 1966, p. 187). Mais uma vez Paula Brito desloca um princípio filosófico ao arranjo cotidiano, ao parafrasear o pensador francês Pascal (1623-1662), que dizia que o coração tem razões que a própria razão desconhece.

Em decorrência do amor dos dois jovens, vários episódios se sucederam na trama, conduzindo ao clímax. São eles:

a ida de Narciso à Ásia, a mando do tio de Alzira, para tratar dos negócios deste;

o último encontro de Narciso e Alzira, que culminou na “inocência perdida” por parte da moça (PAULA BRITO, 1966, p. 189);

a decisão de Alzira em contar para a mãe que estava grávida de Narciso;

a “saída” encontrava pela mãe de Alzira ao dizer para o marido que era ela que estava esperando um bebê e não a filha, enchendo assim de orgulho o velho militar que finalmente teria um herdeiro para seguir os seus passos e administrar no futuro o patrimônio da família;

o nascimento de Guilherme, que se projetou na carreira militar a exemplo do pai-avô, apesar de dotado de alguns defeitos, “como o orgulho e irascibilidade pronta” (PAULA BRITO, 1966, p. 191);

o falecimento dos pais de Alzira, o que rendeu a Guilherme, como o novo chefe de família, o dever de governar os rendimentos e as ações da própria irmã (lembremos que o jovem, até então, não sabia que Alzira era, na verdade, sua mãe);

o retorno de Narciso ao Brasil, ainda encantado por Alzira, mantendo-se fiel ao amor nutrido por ela;

o reencontro de Alzira e Narciso que, solteiros, resolveram reatar os seus laços amorosos e afetivos;

a reprovação do relacionamento dos dois por parte de Guilherme, que estava com receio de Alzira querer se casar com Narciso. O jovem acreditava que Narciso, por ser pobre, poderia se aproveitar de Alzira, aplicando-lhe um “golpe do baú”, o que acarretaria em divisão dos bens.

Encadeados, esses acontecimentos levaram ao encontro ocorrido entre Narciso e Guilherme. No início, o pai quis poupar o filho da verdadeira versão dos fatos, desejando somente que lhe concedesse a mão de Alzira para casar-se. Nervoso, o jovem militar insistia em recusar, não restando a Narciso outro saída a não ser anunciar que ele era o seu verdadeiro pai e que Alzira, além de ser a sua mãe, se sujeitara a viver solteira para assegurar ao “filho-irmão” a fortuna da família. Este confronto entre pai e filho marca o momento crítico da narrativa, isto é, o “clímax”. Inesperado será o desfecho da história. Após o difícil e revelador diálogo entre Narciso e Guilherme, o contista toma a voz da narrativa para si com o intuito de dividir com o leitor as duas possibilidades que vislumbra para o desfecho da história:

De mim dependia agora fazer acabar tudo isto tragicamente; bastava mover o orgulho e irascibilidade do rapaz, e fazê-lo suicidar-se. Poderia descrever o suicídio à minha vontade, e mostrar depois o corpo do infeliz feito em pedaços, nadando em seu próprio sangue, e as lágrimas e desesperação da mãe e do pai. Mas, para que, se tudo isto não foi assim? Verdade primeiro que tudo (PAULA BRITO, 1966, p. 196).

Primeiro, Paula Brito, ao agir assim, rompe com aquele horizonte de expectativas que marca o universo romântico, não reforçando a idéia de que a morte é a única solução possível frente a um conflito que se apresenta como insolúvel. Tangencialmente, critica os contistas que se aproveitam do sensacionalismo para arrebanhar leitores, oferecendo-lhes um espetáculo banhado de sangue e marcado pelo desespero dos envolvidos. Tudo isso em nome de uma comoção pública generalizada, atendendo, assim, a porção mórbida presente nos leitores e os agentes envolvidos com a promoção de venda do jornal onde são publicados estes textos impactantes.

O contista encerra a história de maneira edificante, mostrando que a verdade e o amor triunfam sobre o medo e a hipocrisia social. Inicialmente abatido com a notícia que revelou os seus verdadeiros pais, Guilherme é reconhecido oficialmente como filho de Alzira e Narciso, que se casam. Vale a pena destacar que, fugindo à regra, este conto de Paula Brito, sob o ponto de vista étnico, finaliza-se com um happy end, ao possibilitar a concretização do casamento entre dois afrodescendentes, mesmo diante das dificuldades impostas pela ordem escravocrata.

Em se tratando do processo de composição do conto, Paula Brito apresenta sua narrativa de maneira breve, pois a brevidade facilita a manutenção do interesse; ao mesmo tempo, esta apresenta coerência e unidade entre as partes, do princípio ao fim, desenvolvendo-se no sentido de uma tensão crescente que se resolve no desfecho. A unidade relaciona-se, por sua vez, com a convergência de ações para o conflito único. Nesse modelo, o mais importante foi manter o interesse do leitor até o desfecho da narrativa, momento em que se resolve o conflito, de maneira surpreendente: a notícia bombástica de que Guilherme era filho de Narciso e Alzira, até então reconhecidos como alguém estranho e sua irmã, respectivamente, e o casamento dos pais do jovem militar. Agindo assim, em “A mãe-irmã”, Paula Brito tende muito mais ao modelo de conto sistematizado por Edgar Allan Poe (1809-1849) do que à estética do gênero proposta pelo russo Anton Tchekhov (1860-1904). Enquanto Poe (1985) ressaltava que o efeito do conto deveria ocorrer no final da narrativa, como se ela percorresse uma trajetória ascendente, em termos de tensão dramática, Tchekhov (apud ANGELIDES, 1995) desenha uma parábola, pois o meio do conto deve ser mais emocionante do que o final. A exemplo de Poe, Paula Brito pautou-se pela convergência de todos os eventos para o final da trama, organizando-os de forma hierarquizada, utilizando assim uma escala crescente no desencadeamento do conto.

O enjeitado

Em linhas gerais, o conto narra a história de Júlio, um jovem rapaz que desconhece as suas origens e que leva a vida atormentado pela necessidade de saber quem foram os seus pais. Júlio encontra na viúva Emília uma confidente, visto que ambos eram marcados pelo isolamento e pela melancolia decorrentes de suas histórias de vida. A jovem casara-se aos 14 anos: “não porque quisesse, mas porque assim lho havia ordenado os seus pais, e seu gênio demasiadamente dócil era incapaz de uma resistência” (1966, p. 203). O marido, que, à época, contava 25 anos, é descrito como tendo sido um homem grosseiro, marcado por uma “constante obscenidade e imundícia” (1966, p. 204), expressas em suas ações e palavras rudes. Já, viúva, depois de seis anos dedicados a um casamento marcado pela obediência ao marido, Emília adota um comportamento retraído semelhante àquele que lhe era imposto pelo marido.

Os primeiros encontros entre os dois, a princípio, são marcados pelo silêncio, que era uma necessidade do coração de ambos. Pouco a pouco, a aproximação vai ocorrendo, despertando-lhes o amor. Porém, o único obstáculo à concretização deste sentimento era a obsessão de Júlio em saber quem eram os seus pais. Depois da descoberta, o rapaz se sentiria digno do amor de Emília:

– (...) Se chegara a conhecer quem eles são; se a minha existência não tiver sido obra do crime, e por consequência não for para mim uma infâmia, correrei com a velocidade do raio; deitar-me-ei a vossos pés, donde só me levantarei para cair nos vossos braços; chamar-vos-ei minha, e nunca mais nos separaremos (1966, p. 203).

Sendo assim, Júlio parte em busca de informações a respeito dos seus pais, a fim de conhecer mais sobre si mesmo. Esta ausência faz com que Emília procure sua mãe para contar-lhe a respeito do amor que nutria pelo jovem. O diálogo entre as duas representa o momento de “complicação” do enredo. Sem saber, a jovem caminha em direção ao esclarecimento que Júlio tanto procurava. A mãe da jovem é a única testemunha viva dos fatos que envolveram no passado os pais de Júlio. Ela revela que a mãe de Júlio era a sua irmã, sendo assim Júlio e Emília eram primos.

O capitão-mor Mendonça havia tido vários filhos, sendo duas delas, Júlia e a mãe de Emília: “todos foram criados por seus pais, segundo os seus princípios, isto é, considerou-os a todos como seus escravos, e sobretudo a suas filhas, cujas vontades em coisa nenhuma foram consultadas” (1966, p. 208-209). O pai obrigara Júlia a casar-se aos 13 anos com o coronel Sousa – homem de meia-idade e endinheirado. Esta última característica era suficiente para que o pai de Júlia considerasse o pretendente como melhor partido para a filha: “sem dote! oh! esta razão é superior a todas” (1966, p. 209, grifo do autor). Revela-se aí o papel decisivo do patrimônio para determinar o casamento e a subalternidade feminina frente à ordem patriarcal. As mulheres chegam a ser consideradas escravas, e a vontade delas só fazem sentido se ecoar o desejo do homem, tido ali como senhor.

Deu-se o casamento conforme a vontade do pai. Júlia passou a viver em sua nova casa, suportando a embriaguez e as concubinas do marido. Para ele: “Júlia era apenas mais uma escrava que ia aumentar o seu serralho” (1966, p. 209). O capitão Sousa, depois de algum tempo, dedicado a resolver negócios particulares na Bahia, retorna ao lar, onde encontra uma criança que lhe foi apresentada como o “enjeitado”, fruto da traição conjugal de Júlia. Ao tomar conhecimento destes fatos, Mendonça, o pai de Júlia, apóia o genro na decisão de encarcerar a jovem esposa em um quarto localizado à parte da casa. Depois de descoberto o amante de Júlia, Sousa e Mendonça o matam na frente da jovem, com requintes de crueldade. Cinco anos depois de presenciar a brutal cena e ainda vivendo o cativeiro imposto pelo marido, Júlia morre.

Ao saber destes fatos descritos por sua mãe, Emília encontra-se em um impasse: revelar ou não o segredo a Júlio. Acreditando que os laços de sangue poderiam estreitar os laços amorosos, ela decide revelar o segredo. Depois de saber da triste história dos seus pais, Júlio desaparece da cidade onde vivia e da vida de Emília.

Oito anos depois, eles se reencontram de maneira inusitada. No leito de morte, Emília clama pela presença de um pároco. A ela é levado o religioso Santa Vitória, a fim de que possa conceder a extrema unção. Ambos frente a frente, reconhecem-se. Depois de saber os fatos que circundavam a sua família, Júlio converteu-se à ordem religiosa, “essa consoladora universal que tem remédio para todas as aflições da alma” (1966, p. 218). Depois disso, a tristeza e a revolta que o marcavam cedem lugar à melancolia. Emília, após receber as palavras de consolo, ditas por Júlio, falece. Poucos dias depois, os sinos da igreja dobram, anunciando o falecimento de Júlio de Santa Vitória, decorrente do abalo que lhe havia causado a morte de sua amada prima.

Faz-se importante destacar alguns aspectos da construção literária do conto. Primeiro deles é a teorização do gênero. Em “O enjeitado”, Paula Brito constrói o texto, localizando no meio da narrativa o seu ápice, já que o desenrolar do conflito dar-se pela revelação feita pela mãe de Emília. A revelação do passado desnuda o presente, marcado pelo desconhecimento de Júlio sobre a sua origem; assim como determina o fim da narrativa. Esta estrutura de composição foi posteriormente teorizada pelo russo Anton Tchekhov, dando a ela a representação gráfica de uma parábola. Deste modo, ele demonstra que na zona intermediária do conto deve-se concentrar o ponto culminante da trama.

O conto é narrado em terceira pessoa e se inicia por reflexões do narrador a respeito do seu próprio ofício. Enquanto a literatura européia pauta-se pelo relato do passado, a brasileira é marcada pela contemporaneidade. Enquanto historiador do presente, o narrador crer que a sua função seja contar aquilo que vê e ouve, “emprestando-lhe apenas alguns vestidos” (1966, p. 197). Sendo assim, o contista é tido como aquele que embute imaginação à realidade. O conto é marcado por inúmeras descrições que servem à caracterização das personagens e à contextualização histórica. Este narrador onisciente lança, em meio ao enredo, opiniões e julgamentos a respeito das ações do envolvidos na trama, configurando-se assim uma posição crítica por parte do contista sobre a realidade do seu tempo.

Conforme já foi dito, a dominação do homem sobre a mulher é um dos fundamentos caros à sociedade patriarcal do Brasil oitocentista e que, por vezes, recebe críticas por parte do narrador ao longo do conto. A união de Emília e o marido é um exemplo disto, sendo assim descrita:

Sofrivelmente orgulhoso, sua mulher era para ele mais que os seus escravos; e rigorosamente seria punido aquele que lhe fizesse a mais leve injúria; mas supunha sua mulher muito menos do que ele, e nem lhe era permitido levantar os olhos diante de seus olhos (1966, p. 204).

Esta passagem destaca, aos olhos do marido de Emília, a superioridade da mulher em relação ao escravo, apesar de ambos serem percebidos como propriedade sua e como dependentes seus. Mesmo tendo consciência deste caráter opressivo, Emília, em nome de sua ‘doçura’, obedece prontamente ao esposo. Tal conduta reforça a avaliação do pensador Rousseau que destacava ser a obediência e não a sinceridade a grande virtude feminina (apud DUARTE, 2002, p. 19), além de enquadrar a astúcia, os pequenos cuidados e a doçura insípida como características exclusivamente femininas, cabendo aos homens a inteligência, a sabedoria e o poder de decisão. Este caráter subordinado da identidade feminina já era combatido por Mary Wollstonecraft, primeira feminista inglesa, através do seu Vindication of the rights of woman, publicado em 1792. A personagem Júlia, do conto de Paula Brito, já era reprimida pelo marido e pelo pai, a exemplo de Emília, porém não teve o comportamento passivo desta. Conta o narrador que “Júlia não sofreu calada a sua nova posição; desde os primeiros dias uma guerra declarou-se entre o marido e a mulher, que com insultos pagava os insultos que recebia. Anos passaram-se nesta luta” (1966, p. 209).

A exemplo do conto “A mãe-irmã”, onde o contista defende Alzira e sua mãe, quando elas decidem esconder do velho militar a gravidez da filha, dizendo que o rebento na realidade era filho da mãe de Alzira, ele advoga também a favor de Júlia, quando esta resolve trair o coronel Sousa, digno de barbaridades que enervavam seus administradores, feitores e escravos:

Este homem, (...) todos os dias violava a fé conjugal com manifesto escândalo, levantou altos gritos contra a esposa infiel; este homem, (...) aliás perdera todo o direito de queixar-se, pois que o crime de sua mulher era uma consequência, ousamos dizer, natural e necessária de seus crimes (1966, p. 209).

Em um sistema opressivo como é o patriarcal, o oprimido vê na vingança uma oportunidade de pagar com a mesma moeda a opressão sofrida. Desta forma, o envolvimento extra conjugal de Júlia deve ser entendido como consequência do tratamento cruel que recebera do marido. Também pode ser vislumbrado como um acerto de contas diante das sucessivas traições do esposo. A outra casta, também oprimida, composta pelos escravos também exercem a vingança, conforme descreve o narrador:

Um quarto foi de propósito na casa de Sousa, e a infeliz delinquente foi encerrada nele; ali uma vez cada dia lhe era levada uma magra ração por suas escravas, que aliás tinham ordens positivas para lhe dirigirem os mais grosseiros e atrozes insultos, e elas satisfaziam bem a vontade de seu senhor, vingavam-se bem dos dias que foram obrigadas a servi-la. (1966, p. 210).

Nesta passagem o dever de servir, computado aos cativos, configura-se como forma de exercício de vingança, uma vez que Júlia é vista como extensão da ordem senhorial. Para estes que se encontram no último degrau da hierarquia, vingar-se daquela era uma forma concreta de atingir o estamento senhorial. Vale a pena ressaltar que as condições desfavoráveis em que se encontrava, somada à alimentação que lhe era oferecida – “uma magra ração” – apontam o olhar animalesco com que o marido percebia a esposa.

Paula Brito, pela voz narrativa, reflete sobre as identidades masculina e feminina, desvinculando-as de quaisquer essências imutáveis, e mostrando como o homem aproveita de sua superioridade física e de seu favorecimento hegemônico para reprimir a mulher. Ao mesmo tempo, denuncia as ações masculinas, que, por meio de artimanhas que beiram à infantilização e à reificação do ser feminino, fundamentam culturalmente a “verdadeira natureza” deste. Assim, o contista utiliza-se da ficção para denunciar o quanto a mulher era estrangulada pelo casamento, reconhecido pela ordem patriarcal como seu único meio de elevação social, pagando um preço alto para manter-se imbecializada e reduzida a miserável objeto de prazer.

Referências:

ANGELIDES, Sophia. A.P. Tchekhov: cartas para uma poética. São Paulo: Edusp, 1995.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sergio Miller. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito: apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira. São Paulo: Imesp, 1987.

CARVALHO, J. Murilo et al. Documentação política, 1808-1840. In: BRASILIANA DA BIBLIOTECA NACIONAL. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Nova Fronteira, 2001.

CRUZ, Adélcio de Sousa. Lima Barreto: a identidade étnica como dilema. 2002. 104 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2002.

DUARTE, Eduardo de Assis. Feminismo e desconstrução: anotações para um possível percurso. In: DUARTE, Constancia Lima; DUARTE, Eduardo de Assis; BEZERRA, Kátia da Costa (Org.). Gênero e representação: teoria, história e crítica. v. I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

INFANTE, Ulisses. Narração e narrativas. In: Do texto ao texto: curso prático de leitura e redação. 6. ed. São Paulo: Scipione, 1998.

JOSÉ DE ALENCAR. Diário do Rio de Janeiro, 14 mai. 1855. “Ao correr da pena”. In: Obra completa. v. IV. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1960.

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Diário do Rio de Janeiro, 24 dez. 1861. “Comentários da semana”. In: Obras completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: W.M. Jackson Inc., 1970. v. I, p. 95-102.

PAULA BRITO, Francisco de. A mãe-irmã. Jornal do Comércio, 10 abr. 1839. In: LIMA SOBRINHO, Barbosa. Os precursores do conto no Brasil. Rio de Janeiro; São Paulo; Bahia: Civilização Brasileira, 1966. p. 185-196.

_____. O enjeitado. Jornal do Comércio, 28 e 29 mar. 1839. In: LIMA SOBRINHO, Barbosa. Os precursores do conto no Brasil. Rio de Janeiro; São Paulo; Bahia: Civilização Brasileira, 1966. p. 197-219.

PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.

POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Rio de Janeiro: Globo, 1985.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

VELOSO, Caetano. Dom de iludir. In: VELOSO, Caetano. Totalmente Demais, LP Polygram 830 145-1, L. B, f. 11.

 

1 Gostaria de ressaltar, neste momento, a aproximação entre as questões de gênero levantadas por Paula Brito, em “A mãe-irmã” e por Caetano Veloso, na canção “Dom de iludir” (1986). Esta pode ser entendida como uma releitura atualizada da subalternidade feminina denunciada anteriormente por Paula Brito. Versos como: “Não me venha falar na malícia de toda mulher/(...) Você diz a verdade/ A verdade é seu dom de iludir/ Como pode querer que a mulher/ Vá viver sem mentir”, são capazes de demonstrar a aproximação entre a música e o conto. Repare que Paula Brito e Caetano Veloso, cada qual a seu tempo, revelam o comportamento abusivo de um sistema falocêntrico que recalca a diferença e cala a voz do outro, do “segundo sexo”, nos dizeres de Simone de Beauvoir (1980). No sistema opressivo, a Verdade, enquanto elemento estético, não é imparcial, e tende ao espectro masculino. Nesta escala, enquanto o homem é considerado o Sujeito, o Absoluto, à mulher compete ser o Outro, restando-lhe, enquanto ‘sexo fragilizado’, driblar o adversário, ludibriando-o se preciso for, em nome da preservação de sua integridade física e moral.

 

* Marcos Fabrício Lopes da Silva é poeta, jornalista, professor e Doutor em Literatura Brasileira pela UFMG. Autor de Deslokado (2010), Doelo (2014) e Aberto pra gente brincar de balanço (2017).

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Perfis do Brasil: representações do precário na ficção de Sacolinha

 

Thiago Antônio dos Santos*

Poeta, romancista e contista, Sacolinha integra a geração dos jovens escritores empenhados em trazer para a ficção elementos da cultura negra disseminados nos espaços urbanos da contemporaneidade. Desde o seu primeiro livro, Graduado em Marginalidade, publicado pela Editora Scortecci, em 2005, Ademiro Alves de Souza vem contribuindo para o crescimento intelectual de sua geração ao participar ativamente de diversas revistas, antologias e obras coletivas.

Suas produções mais recentes podem ser vistas nos Cadernos Negros, volumes 28, 29, 30 e 31, e nas narrativas de 85 letras e um disparo, publicado pela Ilustra em 2006 e reeditado em 2007 pela Global. O volume de contos consolida a literatura feita por um escritor que já não pode ser visto apenas como mais uma surpresa. O título do livro sugere a peculiaridade do fluxo poético exigido daqueles que vem circulando intencionalmente na contracorrente do campo literário instituído. A imagem presente na capa exprime a assimilação da velocidade das ruas, tão bem desenvolvida nos contos.

A reflexão sobre o que leu, digeriu, e o que o influenciou, presente logo no primeiro texto do livro, serve ao jovem escritor na explicitação de seus gostos – “Abri o romance do Graciliano Ramos” –, e na revelação das dificuldades existentes na vida da gente da periferia que vive no mundo do “não”: “...e quando estava me entrosando na leitura, o trem chega na estação Tatuapé” (SACOLINHA: 2007, p.19). Desde o inicio do conto, que tem o curioso nome de um prato japonês (Yakissoba), o autor revela o desespero que sentem os que vivem tentando vender seus livros e nada conseguem:

Cheguei cedo naquele dia.
As contas já estavam atrasadas e a geladeira, vazia, há muito vinha pedindo alimento.
Precisava vender no mínimo uns quatro exemplares do meu novo romance.
(SACOLINHA, 2007, p.13).

A constante tentativa de aceitação perpassa todo o texto:

Ensaiei algumas palavras e rumei para o escadão.
Trinta abordagens.
O resultado foi a minha saída de cabeça baixa daquele recinto. E, se elogio fosse dinheiro, sairia dali de bolso cheio. (ibidem, 2007, p.13).

O texto aborda as agruras de um escritor sem público. E nos faz compreender que ainda que o escritor seja capaz de produzir uma literatura múltipla e possuidora de diversos ângulos acerca das experiências humanas, ele não significa nada para muitos que, ao menos aparentemente, têm interesse pela cultura e pela informação:

Passando em frente à segunda universidade, abordo três estudantes. Apenas um deles me dá atenção, enquanto os outros dois se entretém tirando fotos com o celular.
[...]
Uma nova abordagem:
– Licença e boa noite. Podem contar no relógio, não irá passar de um minuto. Eu não quero encher o saco de vocês.
A recepção nada me alegrou, mas continuei:
– Sou o fulano de tal e sou escritor, autor deste romance... (ibidem, 2007, p.14).

Embora haja uma resistente negação presente nas respostas das pessoas – “Nenhum deles dava atenção ao que eu dizia. Um outro desistiu de continuar folheando e deu um gole na cerveja” –, o jovem escritor se mostra apenas momentaneamente desesperado, e consegue se manter tranquilo, sem se exaltar:

Pensei comigo: “Vendas, que vendas?”
Segui cantando: “Ando devagar porque já tive pressa e levo o meu sorriso, porque já sofri demais...” (ibidem, 2007, p.15).

Uma das questões que se levanta aqui é a da tomada de consciência que emerge nas lembranças do homem que parece viver, no limiar das suas produções literárias, uma crise motivada pelo fato de se encontrar fora do contingente de escritores ligados aos setores mais valorizados da cultura local. No entanto, essa problemática, visível em nosso cenário editorial, é capaz de criar nesse mesmo homem um sentimento de respeito por si mesmo e pelo seu sonho. Ela contribui para a exibição de valores que podem ser assimilados em situações como essas, tais como a integridade pelo muito que já foi feito – fruto do desejo de mostrar ao mundo o preço real de sua produção artística:

Tinha que pensar numa nova estratégia; já menti, usei do exagero, aumentei os fatos e nada. Nem no cheque consegui venda.
E a fome a bailar em meu estômago. (ibidem, 2007, p.16).

Nesse ponto do texto, podemos levantar a questão de que apesar da distração causada por um grande número de desejos, impulsos e imagens, a mente do escritor não se afasta da urgência representada pela fome.

O negócio é persistir.
E lá fui eu, rumo aos vários “não”, sentindo o fracasso daquela noite calorenta.
Agora andava devagar, parecia estudar os passos. A minha situação não me deixava avançar como antes. As pessoas que passavam por mim seguravam seus pertences. Comecei a cantar procurando desviar a atenção de tudo: da fome, das pessoas com medo de serem roubadas, da polícia que passava na viatura e me encarava, dos mendigos que se preparavam para dormir e dos “não” constantes. Só não conseguia desviar a atenção de uma coisa: daquele macarrão que os japoneses produziam na beira da calçada. (ibidem, 2007, p.17).

Na medida em que vamos nos aproximando do final do conto, tomamos consciência de que um ser humano que vive em circunstâncias semelhantes às descritas em “Yakissoba” tem uma tarefa dupla: primeiramente é preciso eliminar a fome, para em seguida poder vislumbrar algo melhor:

Num certo momento da minha caminhada comecei a ter ilusões. Via barracas e barracas lotadas de orientais. Esfreguei os olhos e sentei por um instante. Acho que a fome está me deixando louco, preciso de algum alimento urgente.
Levantei e andei sem parar, com a mochila cheia de livros castigando as costas.
[...]
Esse deu para mastigar e amenizar a fome. Até que é bom o macarrão japonês.
Terminei de mastigar e resolvi ir embora. Lá na periferia eu vendo mais livro do que aqui. (ibidem, 2007, p.18).

E é então, no ponto em que uma das problemáticas vividas pelo escritor – a fome, parece tema já resolvido e o personagem pode, por um momento, sentir-se satisfeito, que uma dilacerante realidade intervem. O homem da periferia segue mostrando passo a passo a confusão de um cotidiano injusto em que há sempre uma quantidade enorme de problemas e infelicidades:

Passei meu último bilhete na catraca do metrô. O dinheiro na carteira ó não havia zerado por causa dos 50 centavos de troco do amendoim. Troco que gastei na baldeação no Brás (metrô/trem) comprando um suco feito com água do banheiro feminino. Sei disso porque trabalhei três anos ali e via as mulheres entrarem e saírem do banheiro com baldes de água; além disso, todas as barracas daquela estação não são abastecidas com água encanada.
Sentei na escada, num local onde dava pra ver a chegada do trem. Na hora em que o danado encostar
vou me agarrar à porta, tenho que sentar de qualquer jeito, o meu corpo está dolorido ao extremo.
[...]
O trem chegou. Desci a escada quase quebrando as canelas e fiquei em frente a uma porta aguardando a sua abertura. Odeio fazer isso, mas hoje eu preciso.
Corri, mas só sobrou um banco que é destinado aos velhinhos. Olhei para as cabeças procurando a branquidão dos cabelos. Não vendo nada parecido, sentei-me e disse em pensamento: “Ninguém tasca”.
Dei mais uma olhadela para me certificar. Tudo gente nova; os idosos já estavam sentados. Se entrar algum tiozinho ou tiazinha numa outra estação eu levanto. Não quero encrenca, odeio gente barraqueira, e no trem está cheio delas. Inclusive quando o vagão está lotado e eu estou de pé. Procuro ficar de frente pra porta e de costas pros passageiros. É você se encostar na traseira de alguém e ser acusado de estuprador. Aí, tome porrada. (ibidem, 2007, p.18-19).

Mas, se é verdade que a história é feita pelos homens e mulheres que nela estão presentes, veremos como ainda é possível a um simples cidadão, depois de passar por tantas situações indesejáveis, atribuir a si mesmo um papel social de relevo, contrariando uma visão negativa enraizada em nossa cultura:

Sem grana, e a essa hora, sem ônibus, vou a pé pra casa. No caminho tenho a infelicidade de ser abordado pela polícia. Intimamente dou risada; lá na Paulista eu é que abordava, aqui me abordam.
O policial que olhou dentro da mochila perguntou se eu era livreiro:
– Sou livreiro, editor, escritor, vendedor, modelo da capa do meu livro...
Ele deu risada. Perguntou o que eu fazia àquela hora na rua:
– Estou vindo da labuta. Estava em São Paulo tentando vender algum livro.
– E conseguiu? – perguntou um outro policial.
– Que nada, lá só tem leitor de rótulo de cerveja. (ibidem, 2007, p.20).

O final do conto confirma a disposição de resistência: “Cheguei em casa e me aliviei do peso da mochila [...] O sono está igual galinha sendo cercada no terreiro: vem, não vem”. E o jovem escritor, embora exausto, tem ainda forças para a leitura – “Deito no sofá e volto ao Graciliano Ramos” – até que a realidade e a ficção se confundam no desejo transformado em sonho:

Minutos depois adormeço com o livro em cima da barriga e o pensamento no macarrão da Paulista. (ibidem, 2007, p.21).

A invenção literária de Sacolinha deixa-se impregnar pelos dramas anônimos vividos na periferia da megalópole. Ainda em 85 letras e um disparo, não podemos deixar de afiar nossa sensibilidade ao observarmos com atenção o perfil de um retirante nordestino tão bem traçado em “Sulfato Ferroso”. Nesse pequeno conto, o autor nos surpreende com a história de um capoeirista que, ao despertar do cochilo tirado num trem do metrô de São Paulo, descobre que ali, naquela cidade, solitário e sem visibilidade, não conseguiria viver livre dos tropeços e desilusões:

Despertou do cochilo limpando a saliva que escorria do canto da boca. Lembrou que estava num trem. Teve uma grande surpresa ao perceber que tudo estava escuro e que estava só no vagão.
Levantou e olhou para o outro carro do trem através da janela interna. Não viu ninguém, tudo escuro. Olhou para fora e só aí percebeu que havia dormido demais. (ibidem, 2007, p.105).

O autor confere dignidade às vítimas da desigualdade social. Sua matéria prima é a trajetória do homem que está à margem e vê sua resistência chegar ao fim. Alguém que, desafiando fronteiras territoriais e sociais saíra da Bahia com “25 anos de idade e nunca mais voltara” e agora “com 38 anos [...] se encontra desiludido com a vida. Casou duas vezes, mas não teve sorte...” Sulfato Ferroso, alcunha dada ao capoeirista em sua infância vivida nas ruas e praias de Salvador, se encontra impossibilitado de desenvolver suas qualidades: “os verdadeiros ensinamentos da capoeira e o dendê clássico dos passos e golpes da cultura popular”, e precisa então trabalhar de quase tudo para permanecer na grande cidade:

Em São Paulo fez quase de tudo que se refere a trabalho; pintor, ajudante de pedreiro, panfleteiro, cobrador de lotação, empacotador de supermercado, padeiro, vendedor de porta em porta, e mais uma dezena de profissões que não exigem experiência. (ibidem, 2007, p.106).

E é aqui nesse ponto do texto que Sacolinha bate direto em conceitos consagrados pela sociedade de consumo e, deixando transparecer a criatividade presente nas linguagens da arte urbana, subverte as imposições consagradas pela mídia – dadas como ideais:

Só não evoluiu porque se negou a acompanhar o mundo moderno:
– Celular, computador, emeio, sait, internet. Tudo besteira. Onde é que fica o olho no olho em tudo isso?
Acreditava mesmo é na capoeira. Só não sabia que em São Paulo ela não é tão valorizada quanto na Bahia. (ibidem, 2007, p. 106-107).

E a provocação de Ademiro Alves de Souza não acaba por aqui. Mostrando o deslocamento, a exclusão e o inconformismo presentes no personagem, o texto os confronta com aquelas que eram suas grandes motivações iniciais:

– João Peitudo, vô mimbora pra Sum Paulo ensinar capoeira. Levantar uma casa e criar uma família por lá.
Por aqui passou por vários lugares ensinando capoeira, mas quase não ganhava dinheiro. Na maioria das vezes era por amor. Adorava ver aquela criança sorrindo por ter aprendido um primeiro golpe. (ibidem, 2007, p. 107).

E segue o texto sintonizando, com irreverência, seu anseio por justiça e pela valorização daqueles que se empenham dia-a-dia em favor da arte popular, mas ainda assim permanecem invisíveis e necessitados de uma atenção muito mais direta de nossa sociedade:

Ficava aborrecido quando recebia convites de ONGs que movimentavam muita grana e diziam que não tinham dinheiro:
– Poxa vida, mestre Sulfato Ferroso, é pela molecada da periferia, tudo gente humilde e carente.
Logo cedia ao convite, seu coração era mole demais para dizer “não” diante de uma fala dessas. O ruim mesmo era quando o aluguel atrasava.
– É, nessas zoras não tem ninguém de ongue e nem de entidade pra pagar as minhas contas, muito menos essa tal de humildade e carência.
Há muito tempo estava pensando em voltar. Era livre, não tinha nenhum dependente. É só chegar em Salvador, pular no mato e levantar um barraco. Melhor que ficar nessa cidade ingrata e mal agradecida. (ibidem, 2007, p. 107).

A maneira como Sacolinha escreve certamente tem a ver com a recuperação do falar corrente de um determinado grupo da sociedade. A apresentação de algumas palavras em sua forma mais econômica é um meio que encontra Ademiro Alves de Souza para sustentar o registro da fala popular, numa preciosa medida de subversão. Existe, portanto, todo um trabalho de assumir na forma de literária a expressão e linguagem do excluído, assim como a representação do problema. Tomando o lugar do personagem Sulfato Ferroso, o autor mostra que a vida e a linguagem dessas pessoas não deve ser ignorada ou destruída, mas reinventada, tendo a sua existência recriada a cada dia:

A sobrevivência por aqui judiou de Sulfato Ferroso. Preocupação lhe dava olheiras. Até barriga aqui ele criou:
– Magine só, um capoeirista feito eu, cum barriga sobrando...
Talvez podia ser a idade, pensou. Teve muitas desilusões por aqui, inclusive entrou em crise num momento de conflito interno. Ficou com aquela história de copo cheio e copo vazio na cabeça.
– Prumodequê será que na Bahia eu me sentia tão bem, hein?
Devia ser o sol, o ar, o tempo, as pessoas, os passos descalços nas ruas de terra, o ritual de Oxum na casa de Mãe Terta.
– Ô axé que acarma a alma.
[...]
O melhor mesmo é voltar para sua Bahia. Lá sim dá para viver sossegado. O custo de vida é suportável.
E além do mais não tem nada melhor do que jogar capoeira na areia da praia e depois tomar água de coco com uma baiana do lado. Nada com que se preocupar. (ibidem, 2007, p. 108).

Interessa-nos, portanto, no final das conclusões acerca de “Sulfato Ferroso”, informar que nosso capoeirista, depois de um delírio em que constavam um jogo de capoeira na areia da praia, água de coco e uma bonita baiana, adormeceu no chão do trem usando uma sacola como travesseiro e acordou na próxima estação, em cuja plataforma um relógio marcava 4:30 h. da manhã.

Referências

SACOLINHA. “Yakissoba”, In: 85 letras e um disparo. 2.ed. São Paulo: Global Editora, 2007.

SACOLINHA. 85 letras e um disparo. 2.ed. São Paulo: Global Editora, 2007.

* Thiago Antônio dos Santos é graduando em Letras na FALE-UFMG.

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Pobre, mulata e mulher: a estigmatização de Clara dos Anjos

 

Marcos Hidemi de Lima

 

Em seu artigo “Literatura e consciência” (1988) Octávio Ianni aponta Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto como “fundadores da literatura negra”, ou seja, autores que se inscrevem na chamada literatura afro-brasileira, terminologia atualmente utilizada, a fim de evitar ambiguidades e imprecisões. Ianni não titubeia em afirmar que os três escritores de ascendência negra efetivamente pertencem ao cânone da literatura brasileira, bem como ressalta que possuem qualidades singulares, possibilitando ao leitor reconhecer em suas obras um envolvimento com a causa do negro, menos explícita nos dois primeiros e de maneira bastante pungente no último.

Entretanto, para que seja reconhecidamente literatura afro-brasileira, não basta que exista um sujeito de enunciação afirmando-se negro – conforme Zilá Bernd (1988) preconiza e ao que Luiza Lobo (2007) criticamente se opõe – fato que tiraria os méritos que Ianni observa em Machado e Cruz e Souza, porque na produção literária de ambos são poucas as figurações de um sujeito afro, e mesmo as alusões dos dois à problemática negra não são tão explícitas, naquele sentido de um discurso de preocupação racial, sociológica ou ideológica no corpo de seus escritos.

O caso de Machado é emblemático, porque a negritude e a escravidão ocorrem no seu texto por meio da sutileza, da ironia e da sátira, armas das quais lança mão o escritor para promover uma crítica contundente à classe senhorial, com o intuito de mostrar a anulação do negro pelo discurso escravagista do branco, o que não inviabiliza que o negro figurando como o ‘outro’ componha o retrato da bancarrota dos donos do poder. O negro também está praticamente ausente da obra poética do simbolista Cruz e Souza, todavia não deixa de estar tão dolorosamente presente em “O emparedado”, um texto que oscila entre a prosa e a poesia, no qual este escritor deixa o protesto contundente contra todos aqueles que julgam a criação do artista pela cor de sua pele.

Deste trio de fundadores da literatura afro-brasileira, vai ser Lima Barreto o escritor mais emocionalmente marcado pelo estigma de ser afrodescendente, deixando transparecer tanto em suas obras quanto na sua própria existência seu mal-estar diante de uma sociedade recém-saída da chaga da escravidão, ainda mantendo velhas práticas extremamente preconceituosas contra os ex-cativos. Em conflito com este estado de coisas, o escritor lança mão da literatura para explicitamente denunciar a impostura da democracia racial brasileira, valendo-se de uma “‘literatura militante’, inclusive no que se refere à luta pela expressão” (IANNI, 1988, p. 6), que se opõe a uma escritura esvaziada de sentido, mais preocupada com um vocabulário precioso, tal qual praticada pela grande maioria de seus contemporâneos de letras.

Em sua prosa fluente, Lima Barreto dá voz à silenciada gente dos subúrbios do Rio de Janeiro, num momento em que a elite carioca – vexada – tentava esconder, qual sujeira, essa população embaixo do tapete, isto é, empurrava-a para os lugares mais recônditos da cidade, com a justificativa da necessidade de modernizar a cidade. Em Os bestializados, José Murilo de Carvalho argumenta que o saneamento e o decalque de Paris sobre a parte central do Rio de Janeiro antigo explicavam-se pelas políticas públicas de reformas que visassem atender às expectativas da elite local com os olhos voltados para as estéticas europeias, envergonhada pela presença de pobres e negros circulando pelas ruas da então capital do país. O principal efeito dessa prática saneadora foi:

a redução da promiscuidade social em que vivia a população da cidade, especialmente no centro. A população que se comprimia nas áreas afetadas pelo bota-abaixo de Pereira Passos teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou de deslocar-se para a Cidade Nova e para os subúrbios da Central. Abriu-se espaço para o mundo elegante que anteriormente se limitava aos bairros chiques, como Botafogo, e se espremia na rua do Ouvidor (CARVALHO, 1987, p. 40).

Contra essa situação humilhante e prepotente, espécie de marca registrada das autoridades públicas dos princípios do século XX, levantou-se a escrita denunciadora de Lima Barreto, reação aliás esperada desse escritor que passou sua vida no subúrbio e foi permanentemente excluído da relação de igualdade que marca o cidadão. Pode-se afirmar que ele edifica sua obra com um olhar que perscruta “de dentro” a realidade da pequena classe média suburbana, na qual também estava inserido.

Suas criações ficcionais refletem o abandono, o sofrimento e a ausência de perspectivas dessa camada proletária, também estigmatizada etnicamente, no momento em que as elites que se assenhoraram do poder andavam namorando as ideologias racistas europeias, dando livre curso ao acirramento do preconceito racial e social contra negros e mestiços, estes mudados pela lei de 13 de maio da condição de escravos para homens livres, todavia, sem o reconhecimento da sociedade de sua nova condição de cidadãos, em decorrência da estreiteza mental produzida pelos quase quatrocentos anos de cativeiro.

Em virtude disso, Lima Barreto modulou sua voz de maneira dissonante em relação às oligarquias que, mesmo após a abolição e a proclamação da república, insistiam em manter intactas práticas segregacionistas, fechando as portas da inserção social à população negra, nem que fosse preciso recorrer a teorias raciais que estabeleciam a supremacia do homem branco em relação ao homem negro.

À margem da sociedade devido à cor de sua pele e, paradoxalmente, dentro dela por ser escritor, Lima Barreto não se constrange em ser tanto um suburbano quanto um homem assumidamente de ascendência negra, num momento histórico em que era regra ocultar a afro-descendência, na crença pueril de que os sucessivos cruzamentos raciais transformariam a população mestiça brasileira, no decorrer de um século, numa população homogeneamente branca, sem contar que a alta mestiçagem existente no Brasil constituía, nessa época, “uma pista para explicar o atraso ou uma possível inviabilidade da nação” (SCHWARCZ, 1993, p. 13), reforçando o preconceito de alta voltagem de uma minoria supostamente branca contra a miscigenação racial ocorrida aqui.

Observa-se que Lima Barreto assume abertamente a problemática negra, havendo em sua obra, em maior ou menor grau, a presença de elementos como temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público, considerados as principais constantes configuradoras de uma produção literária afro-brasileira, conforme observa Eduardo de Assis Duarte (2009). Portanto, é possível perceber que há em Clara dos Anjos (1948) – romance analisado neste artigo como representante da escritura afrodescendente – uma temática voltada para questões como preconceito racial e exclusão social; um autor cuja fala assim como seu ponto de vista originam-se dos oprimidos; uma linguagem que permanentemente denuncia as humilhações impostas à mulher de ascendência negra; em síntese, um texto literário que, ao mostrar o papel de meros objetos sexuais das mulheres de cor na sociedade brasileira, pretende despertar no seu público leitor uma reação contra estes valores estereotipados.

De acordo com suas anotações sobre a protagonista e a primeira versão incompleta da história, ambas existentes na segunda edição de seu Diário íntimo (1961), Lima Barreto começou a trabalhar em Clara dos Anjos por volta de 1904, à mesma época em que o escritor via-se às voltas com a redação de Isaías Caminha (1909) e com o desejo de escrever um painel da sociedade escravagista do século XIX. A retomada ocorreu em 1920, quando o esboço de romance foi transformado em conto, publicado em Histórias e sonhos (1920). A conclusão da escrita da história da mulata Clara ocorreu entre dezembro de 1921 a janeiro de 1922, no ano em que o romancista faleceu, sendo publicada postumamente pela Revista Sousa Cruz em forma de folhetins, entre janeiro de 1923 e maio de 1924, só obtendo a impressão em livro em 1948 pela Editora Mérito.

Pelo longo tempo que o escritor dedicou a essa história, é possível inferir que este romance tivesse uma grande representatividade não só para sua produção literária, bem como para exorcizar os fantasmas do preconceito que se debatiam no seu íntimo. Se tivesse sido levado a termo, como explicita em algumas páginas do Diário íntimo, de fato a obra seria capaz de proporcionar um quadro da sociedade brasileira, desde meados do século XIX até as primeiras décadas pós-abolição. No entanto, mesmo que Lima Barreto tenha mantido a estrutura fundamental da história, que é o “de uma moça pobre e mulata seduzida por um valdevinos de boa família” (BARRETO: 1948, p. 14), segundo Lúcia Miguel Pereira, percebe-se que suas variadas versões de Clara dos Anjos apontam para a frustração de possivelmente não ter feito seu grande romance sobre o dilema da mulher afrodescendente diante do preconceito racial, da exploração sexual e da miséria socioeconômica.

A temática de Clara dos Anjos centra-se justamente no preconceito de cor e no drama íntimo da protagonista homônima que, na expectativa de um casamento que não acontece, deixa-se seduzir por um moço inescrupuloso. Grávida e abandonada pelo namorado, ao procurar a família do rapaz ela acaba sendo humilhada, devido à sua condição de pobre e mulata. Segundo José Ramos Tinhorão, a história de Clara busca ressaltar “o problema do tradicional desrespeito sexual por parte dos homens das classes economicamente mais elevadas em relação às moças do povo (principalmente as negras e mulatas)” (2000, p. 35).

Dessa maneira, a fim de “acentuar o caráter odioso da sedução se seu autor fosse branco e de condição social superior à da personagem, a humilde mulatinha filha do modesto carteiro suburbano” (TINHORÃO, 2000, p. 35), Lima Barreto carrega nas tintas ao criar Cassi Jones, um moço de família pequeno-burguesa, pintado com todas as más qualidades possíveis, evidenciando, em chave antitética, a aviltada e ingênua Clara, cujo papel na trama é o de instrumento de crítica à hipocrisia da sociedade brasileira, que insistia, anos depois da abolição, em manter no corpo da mulher de cor as sevícias que os senhores brancos perpetraram durante a vigência da instituição do cativeiro contra suas escravas.

Além disso, mesmo sentindo um grande complexo de inferioridade, a pobre moça aposta na própria virgindade para tentar galgar os degraus de um mundo de valores brancos e burgueses, supondo que Cassi represente os valores da metrópole higienizada e embranquecida, suficientemente branqueadores para apagar as nódoas de sua raça e de sua miséria econômica e social, sem perceber que por ser mulata, vigora um velado (pré)conceito “que a torna inadequada à normalidade de um casamento tranquilo e durável” (QUEIROZ JÚNIOR, 1982, p. 85), inscrevendo moças como Clara no âmbito de uma conduta social pautada pela amoralidade.

Embora disponha de melhores condições econômicas que Clara, o próprio Cassi Jones também não passa de uma figura esfacelada, mais próxima de uma cópia deturpada da ordem masculina, que mal consegue reproduzir os valores sociais, econômicos, culturais, etc., existentes nas classes superiores. Ao tentar imitar estes padrões de conduta que julga aceitáveis, sua realidade suburbana acaba traindo-o: sobressaem-se seus gestos, sua maneira de vestir-se, mostrando sua perceptível incompatibilidade com o centro da cidade, reduzindo seu horizonte de expectativas e existencial à esfera da periferia da metrópole, onde convive naturalmente com companheiros integrados à marginalidade e onde unicamente consegue seduzir moças pobres, analfabetas e mal instruídas.

Ao longo da narrativa, observa-se que Cassi procura obstinadamente aproximar-se de Clara, com o único objetivo de obter satisfação sexual, na qual não entra nenhuma demonstração de verdadeira afetividade pela moça, ou seja, “seu sentimento ficava reduzido ao mais simples elemento do Amor – a posse. Obtida esta, bem cedo se enfarava, desprezava a vítima, com a qual não sentia mais nenhuma ligação especial” (BARRETO, 1948, p. 102). Esse tipo de ação confirma sua confusa associação entre amor e ardor sexual, impelindo-o a agir não só movido pela concupiscência, mas tomado de um “estado de semiloucura” (BARRETO, 1948, p. 103), como se pode caracterizar seu desenfreado desejo de possuir Clara.

Em suma, fica evidente que o amor apaixonado que aparentemente Cassi nutre por Clara não passa de simulação, todos os movimentos do rapaz fazem parte de um jogo muito bem arquitetado, pensado friamente, sem alterar seu dia-a-dia, cujo único objetivo é possuir o corpo de Clara, valendo-se de estratagemas e de pessoas conhecidas para aproximar-se da moça. O jovem tem consciência da necessidade de seduzi-la o mais rápido possível, pois um caderno com “indicações de datas e a narração dos fatos de suas complicações com a polícia e a justiça” (BARRETO, 1948, p. 105) que insistentemente chegava pelo correio ao conhecimento da polícia e de outros causa suficiente temor no moço, a ponto de deixá-lo permanentemente alerta para empreender uma fuga.

No prefácio da edição de 1948, Lúcia Miguel Pereira comenta que Lima Barreto era “um romancista que tomava partido, que tinha preferências e antipatias” (BARRETO, 1948, p. 20), levando estas qualidades para a criação de suas personagens. Em razão disso, a ensaísta julga defeituosa a construção de Cassi Jones, retratado como vil, asqueroso, assassino, etc., contaminando negativamente até a apresentação de seus galos de briga, designados também com adjetivos bastante desfavoráveis. Todavia, a despeito desse ressentimento contra o sedutor de Clara, cabe frisar a coerência de Lima Barreto em encerrar seu romance sem puni-lo, mesmo com o evidente mau-caratismo do moço, o que esvazia um pouco a crítica acima, além de demonstrar fidelidade do escritor à realidade da maioria das moças suburbanas.

Com o intuito de pôr termo a essa falta de punição, Esmeralda Ribeiro escreveria, anos mais tarde, “Guarde segredo” (1991), um pequeno conto no qual a atual Clara narra, por intermédio de uma carta dirigida a uma presumida amiga, como acabou com a impunidade de Cassi Jones matando-o a facadas. Nessa retomada intertextual, essa ação redime, de certa maneira, a resignada Clara limabarretiana, além de representar um novo desfecho para o romance, trazendo satisfação ao próprio Lima Barreto, transformado em personagem ficcional dessa história, marcando sua presença no enredo por meio de uma fotografia ou por aparições fantasmagóricas.

Na literatura brasileira, a importância de Clara dos Anjos decorre do fato de ser o primeiro romance a trazer os dramas da personagem feminina pertencente ao mais distante dos círculos concêntricos que envolvem o núcleo, naquele sentido dado por Roberto Reis, em a Permanência do círculo (1987)1, de que a circunstância de ser mulher inseria-a automaticamente na esfera da nebulosa, obedecendo à rígida hierarquia desse conceito que permite apenas ao homem ocupar o centro. A protagonista dessa obra apresenta-se triplamente marcada pelo pertencimento à esfera da nebulosa, por ser mulher, ser mulata e ser pobre. Entretanto, diferentemente de outros textos ficcionais que retrataram figuras femininas, Clara não somente dá título à obra, como também é sua principal heroína, mesmo que, no decorrer de sua história, seja retratada de modo insignificante, aliás descrição bastante verossímil, em se tratando de uma jovem suburbana excessivamente protegida pelos pais do contato com o mundo.

Evidentemente existem vários romances brasileiros que buscam apreender as agruras de personagens femininas diante de uma ordem predominantemente masculina, todavia neles elas ocupam papéis secundários ou estão bastante próximas do núcleo, a ponto de confundirem-se com ele. Além disso, boa parte delas é branca. Quando se trata do negro focalizado pelos escritores antigos e modernos, as nódoas do passado escravagista brasileiro facilmente fazem-se notar, seja pelo seu retrato infantilizado e erotizado, seja pelo encobrimento de sua pigmentação, disfarçado por adjetivos menos evidenciadores da cor da pele (moreno, trigueiro), seja pela negação de sua afrodescendência, com a finalidade de integrá-lo com menores dificuldades no mundo branco.

A trama da história da queda moral de Clara constrói-se mediante teias quase imperceptíveis que ligam sua sorte à de alguns personagens, emaranhando-se de tal forma para resultar no drama final da moça, que acaba sendo aviltada pela comunidade em que vive e pela hipocrisia da sociedade, acostumada a condenar e justificar os erros dos pobres, com o intuito de esconder suas próprias falhas por detrás de uma máscara farisaica, como é possível ler nas entrelinhas desse incômodo romance.

Ao longo de todo esse romance articula-se e funciona uma espécie de complô contra os sonhos de amor e casamento da jovem Clara, em que algumas personagens tomam posição ativa e outras agem passivamente, desencadeando o ocaso final da moça, mesmo considerando-se que a obra seja a princípio “uma acusação mordaz do preconceito dos brancos e do complexo de superioridade do homem branco em relação à mulher de cor” (BROOKSHAW, 1983, p. 166).

O núcleo familiar também conspira contra as deturpadas aspirações românticas e idealizadas de Clara, esta descrita como semelhante à cor pardo-claro do pai e de cabelos lisos tais quais os da mãe, o que, segundo Gregory Rabassa, entre os mulatos de classe média (aonde a moça mulata deseja chegar via casamento com Cassi) “era muitas vezes desejável estar o mais próximo possível da raça branca. Clara seria considerada mais afortunada pelas características herdadas dos pais que, em cada caso, fossem mais próximas de sua ascendência branca” (1965, p. 366), revelando um processo de embranquecimento já perceptível nos pais de Clara, e que representaria para a moça, com o possível casamento com o violeiro branco, uma espécie de trilha natural de apagamento das marcas de sua ascendência negra.

Na responsabilização imputada à família, o narrador atribui o excesso de mimos com que a moça foi criada como mais um motivo para que seja facilmente enganada pelo filho de uma família próspera, cujos agrados excessivos também avariaram-no moralmente. Além disso, a simplicidade e a passividade dos pais de Clara inviabilizam um diálogo sem as peias do pudor com a jovem, transformando imprópria a educação da moça, abrindo flancos por onde a obstinação de Cassi pôde alcançar seu intento lúbrico, visto que a “educação que [Clara] recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca de seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente...” (BARRETO, 1948, p. 200), como a própria moça constata, depois de sair totalmente humilhada da casa dos pais de Cassi.

O demasiado desvelo da mãe em relação à filha procurando “protegê-la e elevá-la acima de sua posição” (RABASSA, 1965, P. 367) surte o efeito contrário das expectativas, e traz à tona, oculta sob a atitude passiva de dona Engrácia, alguns resquícios inaproveitados de elevação social herdados da família patriarcal na sua educação: mesmo sendo filha de escravos, na mudança do campo para a cidade, sua condição alterou para o de agregada, levando-a a ser educada quase do mesmo modo que os filhos dos antigos senhores, privilégio talvez devido à possibilidade de ser filha bastarda de algum dos filhos brancos da casa.

A crítica do narrador refere-se ao fato de ela ter sido “educada quase como uma dama, na casa de uma família de alta posição social” (RABASSA, 1965, p. 370), estendendo à sua filha procedimento semelhante, embora com sérias omissões, por não “mostrar que uma mera imitação ou observação dos modos dos brancos não é suficiente, seus filhos devem estar conscientes de sua posição particular na vida, de modo a evitar situações que podem ser desagradáveis, ou mesmo destrutivas quando nascidas de uma completa ignorância ou inocência” (RABASSA, 1965, p. 371).

De certa forma, subsiste uma tentativa de dona Engrácia de conciliar o “modo dos brancos”, que lhe foi legado pela família patriarcal e senhorial que a criou e educou, sem a consciência de que a realidade dos antigos senhores nunca foi exatamente a sua, muito pelo contrário, havia algumas prerrogativas, por conta de sua situação de agregada e por certa simpatia de seus ex-donos, que deixaram de existir após seu casamento, como se depreende da leitura do romance.

Ademais, embora sua condição econômica e social negue a todo momento esses valores, absorvendo deles apenas seus elementos ornamentais, sua adequação aos parâmetros da família burguesa mostra-se deficiente porque o que possui de esposa exemplar ocupando-se como os afazeres domésticos é posto a perder com seu deficiente papel de mãe conselheira. Isso sucede quando dona Engrácia revela-se totalmente incapacitada de oferecer exemplos e fatos que “iluminassem a consciência da filha e lhe reforçassem o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria” (BARRETO, 1948, p. 85). Além disso, a mãe pressupõe que sua estrita vigilância quantos aos movimentos da moça e o “proceder monástico em relação à Clara” (BARRETO, 1948, p. 85) seriam suficientes para evitar quaisquer aborrecimentos.

O enclausuramento de Clara que, em vez de “fazê-la fugir aos perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade” (BARRETO, 1948, p. 85) reflete mais alguns resquícios da velha família patriarcal e acaba atuando de maneira inversa ao que os pais esperavam, levando-a a entregar-se a Cassi por uma série de motivos, figurando entre os principais a ausência de informações claras a respeito de sua sexualidade; um sentimentalismo bebido nas modinhas e poemas, que desata no seu íntimo a correspondência de seus sentimentos com uma visão romantizada do amor; certo temor de ficar solteira, justamente num momento em que o casamento, entre a classe dominante, constituía-se na única via legítima de unir o homem e a mulher.

Além disso, pode-se inferir que a pobreza material e a ascendência negra entram em jogo conspirando contra as veleidades da moça em contrair um casamento nos moldes burgueses, não só devido à existência de outros padrões morais nos meios suburbanos, menos propensos ao casamento formal, por ser geralmente inviabilizado por questões burocráticas e monetárias, bem como devido à permanência dos valores patriarcais, circunscrevendo o horizonte da jovem mulatinha à exploração sexual, não mais aos senhores e feitores das casas-grandes de outrora – afinal os tempos parecem ser outros – mas doravante aos jovens das cidades, renovados nhonhôs gulosos de sexo replicando velhas práticas senhoriais.

Observa-se que esse pequeno núcleo familiar endossa valores pertencentes à família pequeno-burguesa: a castidade funcionando como passaporte para um casamento formal para a filha, o espaço privado da casa como ambiente da intimidade, a administração dos assuntos do lar a cargo da mulher, etc. Todavia, ao serem deslocados para a órbita suburbana, em que ainda pesam formas de relacionamento de caráter popular e grupal, além do distanciamento físico do centro da cidade, esses mesmos valores revelam um falseamento da realidade ali existente, porque a filha tão cercada de proteções pelos pais acaba “ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira” (BARRETO, 1948, p. 200). Isso vem comprovar que os “valores errados da família mulata que aspirava à pequena burguesia, mas inconscientes de sua vulnerabilidade, são, assim como o perverso sedutor, as causas da desgraça de Clara” (BROOKSHAW, 1983, p. 166) e, também, a de Quincas dos Anjos e Engrácia, por agirem submissamente, reforçando o caráter de marginalidade daqueles que vivem na órbita da nebulosa.

Esta subalternidade da família de Clara deve-se ao complexo de cor de pele, permanentemente estabelecendo referências com as marcas ainda frescas da escravidão, em que a sujeição ao mundo do homem branco configurava-se como o padrão de comportamento mesmo depois do fim da escravatura, obrigando aos libertos e a seus descendentes uma adequação aos valores burgueses, com uma cobrança muito maior de toda a sociedade para que não incorressem em falhas e erros que maculassem o branqueamento a que se sujeitavam. Portanto, não bastava o endosso aos valores da sociedade branca, era preciso mais do que se comportar como branco, na verdade tornava-se imprescindível negar-se como afrodescendente, buscar o branqueamento da pele por meio de sucessivos casamentos miscigenados.

Num meio social em que negras e mestiças continuavam a gozar de má reputação, devido a uma cultura patriarcal e escravagista que havia submetido, através de uma violência explícita ou implícita, milhares de mulheres de cor a um permanente estado de prostituição, os pais da jovem mulata, conscientes desse perigo da maior exposição da filha ao assédio sexual, julgam que os excessos de zelo podem protegê-la de uma pretensa superioridade que o homem branco tem em relação, principalmente, às mulheres de ascendência negra, conforme ambos acreditam e endossam como um discurso verdadeiro. Entretanto, como essa “atitude da família de Clara perante os valores da sociedade branca é de humildade, [...] falta-lhe a força moral e o espírito prático para opor-se a atos prejudiciais impostos a eles por esta sociedade devido à sua cor” (BROOKSHAW, 1983, p. 166), constituindo, pois, a cor da pele um sério entrave para Joaquim dos Santos, Engrácia e a própria Clara para possuírem suficiente autoestima que lhes permitisse um senso de valorização em relação aos outros.

Fortemente marcada por esse complexo de inferioridade, Clara anseia por um casamento caracterizado por uma espécie de remédio para sua vida de reclusão da qual quer a todo custo libertar, e a moça age de acordo com o figurino bastante disseminado do conceito de família burguesa, na qual há grande importância à sensibilidade, ao amor e à intimidade. Além disso, casar com um homem branco está próximo do pensamento bastante difundido nessa época, porque esse tipo de matrimônio avaliza positivamente a ideologia científica de cunho racial em voga, com livre curso nos meios republicanos e nacionais, da constituição da família brasileira via apagamento dos traços mestiços denunciadores do estigma da escravidão, efetuado pelo cruzamento com as raças brancas – ditas superioras – com a finalidade de promover um futuro "melhoramento racial".

Em virtude disso, Clara pressupõe que o jovem violeiro aparentemente cheio de méritos, delicado e modesto seja a representação exata do homem que pode retirá-la da mesquinhez em que vive, ainda mais por ser o rapaz branco e presumidamente relacionar-se com coronéis, políticos, doutores – representantes da nata da sociedade – o que se lhe afigura como uma espécie de conquista de um status superior em relação ao meio pobre e periférico no qual ela circula. E se por um instante, por força das raras observações que certamente havia feito, a dúvida lhe sobrevém: “ele era branco; e ela, mulata” (BARRETO, 1948, p. 87), ela acaba espantando essa má ideia, por estar totalmente tomada pelo espírito do amor romântico, a ponto de, mais tarde, totalmente enleada por Cassi, indagá-lo com tanta franqueza e ingenuidade: “_ Por que não me ‘pede’ a papai?” (BARRETO, 1948, p. 179), supondo ser possível o casamento de ambos, sem perceber o artificialismo do sentimento amoroso do namorado, armando-se de torpes artimanhas com o único objetivo de possuí-la e vilipendiá-la.

Enfim, Clara vive sobre o imperativo de uma ordem urbana e burguesa, impedindo-a de perceber a incoerência dessa forma de pensamento no espaço suburbano e proletário, onde o matrimônio não tem as mesmas significações que possui nas classes superiores, tratando-se mais de uma cópia que só em sua exteriorização iguala elites e classes inferiores. Portanto, na lógica do favor, o casamento burguês é um instrumento que presumidamente promove para a mulher a ascensão a um status mais elevado.

Nessa elevação via matrimônio, as contraprestações que a mulher oferece – maternidade, dedicação ao marido, ambiente doméstico acolhedor, capacidade de educar os filhos e ser boa anfitriã – perdem facilmente seu reconhecimento e seu valor, por diversas causas e fatores, mas notadamente pela pouca importância do sexo feminino numa esfera em que as decisões são regidas pela ala masculina, o que também pressupõe arbitrariedade nas relações. No reduzido mundo de expectativas de Clara, onde o casamento representa a solução de inúmeros problemas, sua virgindade transforma-se na única contrapartida, nessa ilogicidade da lógica do favor, que ela pode oferecer para tentar ingressar num círculo mais próximo ao núcleo, podendo resultar, como efetivamente ocorre, no seu ocaso.

Nota 

1. Os conceitos centro ou núcleo e periferia ou nebulosa são utilizados por Roberto Reis como uma espécie de tipologia de personagens e de romances do século XIX e XX, em que o quadro senhorial e patriarcal está presente. Obedecendo a uma forte hierarquia, no núcleo ou centro está a figura masculina (o patriarca, o senhor); na nebulosa ou periferia, outras categorias étnicas (índio, negro), sociais (sertanejo, jagunço), mas sobretudo as figuras femininas. 

Referências

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______. Diário íntimo. Pref. Gilberto Freyre. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961.

______. Histórias e sonhos. Pref. Lúcia Miguel Pereira. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961.

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BROOKSHAW, David. A tradição do escritor negro. In: Raça & cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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IANNI, Octavio. Literatura e consciência. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Edição comemorativa do centenário da abolição da escravatura. N. 28. São Paulo: USP, 1988.

LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

PEREIRA, Lúcia Miguel. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Mérito, 1948.

QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo. Fundamentos da persistência do estereótipo de mulata – contribuições do carnaval. In: ______. Preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. São Paulo: Ática, 1975, reimp. 1982.

RABASSA, Gregory. Lima Barreto. In: ______. O negro na ficção brasileira: meio século de história literária. Trad. Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1965.

REIS, Roberto. A permanência do círculo: hierarquia no romance brasileiro. Niterói: EDUFF; Brasília: INL, 1987.

RIBEIRO, Esmeralda. Guarde segredo. In: Cadernos negros, n. 14, contos. São Paulo: Quilombhoje, 1991.

SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: ______. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1992.

TINHORÃO, José Ramos. Lima Barreto e os romances de crítica social. In: ______. A música popular no romance brasileiro: século XX (1. parte). V. 2. São Paulo: Editora 34, 2000.

Pertencimento étnico e transgressão em Viola de Lereno, de Domingos Caldas Barbosa

Eduarda Rodrigues Costa*

Tu és Caldas, eu sou Caldas;
Tu és rico, e eu sou pobre;
Tu és o Caldas de prata;
Eu sou o Caldas de cobre.
Domingos Caldas Barbosa

Poeta causador de polêmica em seu tempo, Domingos Caldas Barbosa agitou a corte lisboeta com suas modinhas e lundus em pleno século XVIII. Apesar disso, seguiu, em grande medida, os moldes preconizados pela alta literatura e teve grande receptividade entre a nobreza, tanto que pertenceu à Nova Arcádia, adotando o pseudônimo Lereno Selinuntino. É necessário, porém, que se procure salientar o quanto este poeta foi avançado em seu fazer artístico, buscando demonstrar o pertencimento ao Brasil e o vínculo com a tradição africana. Esta identificação pode ser percebida tanto nos temas como na linguagem impregnada pela cultura afro-brasileira, quanto no ritmo do lundu que acompanhava suas cantigas.

Tomando como base para análise seu livro publicado em dois volumes Viola de Lereno, pretende-se focalizar os elementos identitários presentes em muitos de seus poemas. Para tanto, deve-se levar em conta as dificuldades impostas a esse escritor, um mestiço que se encontrava em Portugal, país colonizador de sua terra de origem, vivendo de favores no palácio do Conde de Pombeiro. A respeito de Domingos Caldas Barbosa, o escritor Oswaldo de Camargo acrescenta:

Um mulato que volta seu olhar para sua cor e escreve sobre isso. Não é a toa que Manuel Bandeira cita-o como precursor da poesia brasileira. Ele, um mulato, que foi chamado de orangotango por Bocage e de macaco por outros. Foi ridicularizado e humilhado por ter ousado entrar nos palácios, recitando e cantando o lundum, um ritmo de negros. Os intelectuais da época zombavam dele. Ele era satirizado pelos outros escritores. Tudo isso por assumir sua cor e ascendência. (CAMARGO, 2000).

A partir da compreensão do quanto o negro ou mestiço era estigmatizado naquele contexto pode-se reconhecer a ousadia de Domingos Caldas Barbosa em assumir sua etnicidade perante a corte metropolitana. E, deste modo, levando-se em conta a consciência possível da época, pode-se considerar parte da obra do autor como pertencente à literatura afro-brasileira. A abordagem do universo africano pode ser percebida em casos como este, no qual o ritmo utilizado para acompanhar os versos serve de título à cantiga:

Lundum

Eu tenho uma Nhanhazinha
A melhor que há nesta rua;
Não há dengue como o seu,
Nem chulice como a sua.

Ai céu!

Ela é minha iaiá,

O seu moleque sou eu.

Eu tenho uma Nhanhazinha
Muito guapa muito rica;
O ser fermosa me agrada,
O ser ingrata me pica.

Eu tenho uma Nhanhazinha
De quem sou sempre moleque;
Ela vê-me estar ardendo,
E não me abana c'o leque.

Eu tenho uma Nhanhazinha
Por quem chora o coração;
E tanto chorei por ela,
Que fiquei sendo chorão.
(BARBOSA, v. 2, 1944, p. 27).

No lundu acima, o eu lírico se refere à amada como “Nhanhazinha”, que se origina de iaiá, que por sua vez vem de sinhá, forma de tratamento dada às moças brancas daquela época, porém eram os escravos que faziam uso de tal alcunha. E colocando-se como “moleque”, termo que geralmente designava os escravos mais jovens, o poeta assume sua cor e declara-se cativo da amada. Além disso, apesar do tema tratar da dor de amor, percebe-se um tom de brincadeira utilizado pelo eu lírico perante o sofrimento causado pelo desprezo da sinhá. Outro elemento que caracteriza a escrita deste poeta é o ritmo dado pela disposição das palavras e, sobretudo pelo acompanhamento musical, fator imprescindível para a apreciação de sua arte.

Na mesma linha, em “Lundum de cantigas vagas”, o eu lírico se dirige a um “Xarapim”, que em tupi significa camarada, para novamente cantar o sofrimento amoroso. Trata-se, portanto de um lundu de lamento em que o homem chora por não ter o seu amor correspondido.

Meu Xarapim já não posso
Aturar mais tanta arenga,
O meu gênio deu à casca
Metido nesta moenga.

Amor comigo é tirano
Mostra-me um modo bem cru,
Tem-me mexido as entranhas
Q’estou todo feito angu.

Se visse o meu coração
Por força havia ter dó,
Por que o Amor o tem posto
Mais mole que quingombô.
(BARBOSA, v. 2, 1944, p. 14).

Diferentemente de seus contemporâneos, Domingos Caldas Barbosa faz uso de um vocabulário impregnado de oralidade, extraído da linguagem cotidiana brasileira, repleta de termos oriundos da língua tupi, como o já citado “xarapim”. Sua atenção é voltada, sobretudo, para o universo afro-brasileiro quando, por exemplo, utiliza as palavras “angu” e “quingombô”, o mesmo que quiabo, próprias da culinária africana. Tais palavras são deslocadas de seu uso habitual para o discurso amoroso metaforizando a fragilidade do coração do eu lírico.

Além da temática amorosa recorrente em seus poemas, percebe-se também uma exaltação de sua nacionalidade no texto “Lundum em louvor a uma brasileira adotiva”, de modo que a musa desses versos é uma portuguesa que encantou o eu poético por possuir um “jeitinho brasileiro”. O eu lírico parece observar a moça que lava roupas nas margens do rio e, como num devaneio, relaciona os gestos da lavadeira ao molejo do corpo que dança o lundu. Nota-se, deste modo, que o elemento que caracterizava o “jeitinho brasileiro” para o poeta era esse ritmo africano comum no Brasil entre as camadas populares negras e que, em Portugal, ele levava aos salões da corte.

Eu vi correndo hoje o Tejo
Vinha soberbo e vaidoso;
Só por ter nas suas margens
O meigo Lundum gostoso.

Se o Lundum bem conhecera
Quem o havia cá dançar;
De gosto mesmo morrera
Sem poder nunca chegar.

Ai rum rum
Vence fandangos e gigas
A chulice do Lundum.

Quem me havia de dizer
Mas a coisa é verdadeira;
Que Lisboa produziu
Uma linda Brasileira.

Tomara que visse a gente
Como nhanhá dança aqui;
Talvez que o seu coração
Tivesse mestre d’ali.

Ai companheiro
Não será ou sim será
O jeitinho Brasileiro.

Um lavar em seco a roupa
Um saltinho cai não cai;
O coração Brasileiro
A seus pés caindo vai.

Ai esperanças
É nas chulices de lá
Mas é de cá nas mudanças.

Este Lundum me dá vida
Quando o vejo assim dançar;
Mas temo que continua,
Que Lundum me há de matar.
(Viola de Lereno, p. 51, v. 2).

Mesmo escrevendo em Portugal, o poeta não hesita em reconhecer o lundu como melhor que o fandango e a giga, ritmos europeus muito conhecidos, além de se dirigir à moça portuguesa com o tratamento “nhanhá”, assim como eram chamadas as brasileiras pelos escravos. Por fim, Caldas Barbosa assume a saudade das “chulices” ou dengues de seu país, mas reconhece poder encontrar tudo isso na figura da “brasileira adotiva” e, envolvido em sua fantasia e lembranças, parece confundir a portuguesa com o próprio lundu.

A partir de uma observação atenta é possível perceber duas vozes distintas presentes em Viola de Lereno. Uma é a encontrada nos lundus que, escritos sob influência do vocabulário das línguas africanas, eram cantados e declamados pelo poeta, revelando sua identificação com a cultura negra. A outra é encontrada nas cantigas cujo eu lírico é “Lereno de Selinuntino”, predominantemente construídas sob os moldes árcades reveladores dos ideais europeus, mas que, em casos especiais – como “Retrato de Lucinda” –, se distingue pela valorização não da mulher de pele alva ou rosada como seus contemporâneos cantavam, mas da mulher trigueira, de pele escura:

Não tens nas faces
Jasmins de rosa,
Cor mais graciosa
Nas faces tens.

Todas t’a invejam,
E há quem ser queira,
Assim trigueira
Como tu és.
(BARBOSA, 1944, v. 2, p. 10).

Nesse poema, a mulher afrodescendente se configura como objeto de desejo do eu lírico. Ela é exaltada como portadora de uma beleza suprema, provocadora de inveja nas demais moças da sociedade. O que se percebe é uma inversão de valores na qual os elementos comumente vistos como inferiores adquirem caráter elevado frente aos olhos do poeta.

Nesta mesma linha, “Retrato da minha linda Pastora” também faz remissão a uma estética feminina diversa da escolhida como padrão daquela época:

Engraçada por morena,
Tem redonda a face bela;
Não há boca como aquela,
Nem melhor, nem mais pequena.

São as mãos também morenas
As que à graça aumento dão;
As validas de Amor são
Podem tanto tão pequenas.
(BARBOSA, v. 1, p. 174).

Embora o livro se intitule Viola de Lereno, percebe-se a representatividade da voz que fala em seus lundus, voz de um audacioso inovador a quem não bastou utilizar a temática e o estilo clássico como seus contemporâneos. Caldas Barbosa foi além, trazendo para a poesia o seu caráter oral e musical, ressaltando a importância de elementos constitutivos de sua cultura, a afro-brasileira. Porém, mesmo nas cantigas em que é visível a postura do membro da Nova Arcádia – o poeta do amor e da beleza feminina –, podem-se reconhecer traços que diferenciam Domingos Caldas Barbosa dos demais escritores da época. Ao louvar os encantos da mulher afrodescendente e a beleza do seu país de origem, através da valorização vocabular, da culinária e da dança, o poeta registrou o universo africano como elemento constitutivo e não apenas influenciador da cultura brasileira num período ainda regido pelas leis escravocratas.

Referências:

BARBOSA, Domingos Caldas. Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. 2v.

Entrevista com Oswaldo de Camargo, realizada por Milton César Nicolau em 10/12/200. Disponível em: <http://www.portalafro.com.br/literatura/oswaldo/oswaldo.htm>, acesso em: 19 ago 2005.

* Graduada em Letras pela UFMG.

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Política e religiosidade nos escritos de D. Silvério Gomes Pimenta

 

O pobre filho de Antônio Alves Pimenta e Porsina Gomes de Araújo é hoje o Bispo de Mariana. Altos juízos de Deus

Carta pastoral comunicando aos diocesanos sua eleição, 
confirmação e posse, como Bispo de Mariana.
Cartas pastoraes, 9.3. 1897

 

Elisângela Lopes*

 

A produção intelectual de Dom Silvério Gomes Pimenta iniciou-se por volta de 1860, quando retornou da Europa e passou a publicar artigos de natureza religiosa e política. Uma das suas maiores preocupações, enquanto Vigário Capitular, foi a extinção da escravidão no Brasil, pois antes mesmo da aprovação da Lei do Ventre Livre, em 1871, o sacerdote “vinha esclarecendo o assunto e preparando a opinião pública para o fim, coligindo (sic) vários escritos, discursos, memórias, representações, programas, projetos de notáveis brasileiros.” (SOUZA, 1927, p. 50).

Dado o primeiro passo para a libertação dos escravos, com a aprovação da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro de 1871, Silvério dedica uma página do livro A vida de Dom Viçoso, a “patentear bem ao vivo os males da nefanda instituição que nos humilhava à face do mundo civilizado” (Idem). Neste texto, ele apresenta em tom incisivo a condenação do regime escravocrata através da descrição de seus males, aos quais se juntavam, segundo o arcebispo, “as tentações contínuas entre senhores e escravas, achando aqueles no domínio azo para o abuso e a violência, e diminuindo nestas a sujeição as forças para a resistência; ajuntem-se a cobiça dos donos interessados, e talvez empenhados nas desordens das escravas, porque com frutos criminosos aumentam a fazenda e a riqueza, e faremos ideia de quão poderosa agente é a escravatura para estragar os costumes de um povo.” (In: SOUZA, 1927, p. 51)

O direito de propriedade que irá reger as relações entre os senhores e os escravos era o pensamento que promovia e, ao mesmo tempo, justificava o abuso sexual e a punição física dos cativos. Como denuncia Silvério, a violência contra as escravas tinha como objetivo principal o aumento da mão-de-obra e, além disso, reforçava a dominação e a dependência desta em relação à casa senhorial, pois com um filho nos braços, a fuga e o sustento próprio se tornariam mais difíceis.

Comenta-se que, durante as aulas, o arcebispo fazia uso de anedotas e alusões capazes de prender a atenção dos distraídos e estimular o aprendizado, e que promovia discussões a respeito da escravidão e do mal que causava para a sociedade. Dessa forma podia fazer proliferar o discurso político, que saía do papel para as salas de aula.

Em 1873, a conselho de D. Viçoso, o padre Silvério funda o periódico religioso O Bom Ladrão, espaço onde derramava a doutrina cristã, desfazia mentiras e calúnias que eram direcionadas à Igreja, refutava erros, arrancava as máscaras daqueles que, sob o pretexto de servir aos católicos, desviavam da Igreja os incautos ou ignorantes. O nome do periódico, que durou quatro anos, alude ao fato de que se destinava não somente à publicação de artigos escritos por religiosos brasileiros, mas à tradução de publicações de outros países – textos dos quais o padre se apropriava, como bom ladrão, para melhor difundir o catolicismo.

Suas Cartas pastorais, escritas entre 24 de novembro de 1890 e 10 de fevereiro de 1922, dirigidas aos párocos e fiéis da diocese, são marcadas pela variedade temática e permitiam ao Arcebispo explanar suas idéias e sustentar suas doutrinas. A respeito da produção literária de Dom Silvério Gomes Pimenta, destacamos o seguinte comentário:

A personalidade literária de Dom Silvério ficou marcada por seus livros e cartas pastorais, gozando o arcebispo acadêmico da fama de poliglota [...] Publicou poesias em latim. Sua obra maior é a Vida de Dom Viçoso. Como jornalista, Dom Silvério fundou e dirigiu, em Mariana, O Bom Ladrão, O Viçoso, O Dom Viçoso e o Dom Silvério, editados sob sua orientação e dirigidos pelos padres Severiano de Resende e Luís Espechit. (camaracongonhas.mg.gov.br/dom_silverio.htm).

 

Referências

SOUZA, D. Joaquim Silvério de. (Primeiro Arcebispo de Diamantina). A vida de Dom Silvério Gomes Pimenta: Primeiro Arcebispo de Mariana. São Paulo: Lyceu Coração de Jesus, 1927.

CASTRO, Fernando Pedreira de. Dom Silvério Gomes Pimenta. Rio de Janeiro: 1954.

<camaracongonhas.mg.gov.br/dom_silverio.htm>

Nota

* Elisângela Lopes é Mestre em Estudos Literários pela UFMG, Doutora em Letras - Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e professora de Língua e Lliteratura do IFSULDEMINAS.

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