Prefácio a Histórias De Negro

João José Reis*

 

Ubiratan Castro de Araújo, mais conhecido como Bira, é um admirável narrador de histórias. Até agora sua fama como tal se restringia à narrativa oral na sala de aula, na mesa de bar e restaurante, em todo lugar onde um papo se instituísse. Bira gosta de contar histórias, piadas e incidentes do cotidiano, aos quais acrescenta um tempero especial de graça, irreverência, inteligência e imaginação. Para nosso deleite, o contador resolveu agora colocar o preto no branco, e nos oferece o banquete dessas Sete histórias de negro, onde consegue transferir o talento de sua oralidade para o exercício da escrita.

Bira é também palestrante e professor de História inspirado e provocador. Nesse ramo seu prato predileto é a história do negro, em particular a história de suas lutas no tempo da escravidão. Mas nosso autor é daqueles que têm opinião formada sobre um leque muito grande de questões do passado e do presente, e, portanto, seria difícil enquadrá-lo como especialista de algum assunto. É um intelectual humanista. Mas, claro, sabe mais sobre certas coisas. Como pesquisador, tem publicado a respeito da abortada Revolta dos Búzios (ou dos Alfaiates) na Bahia, em 1798, e sobre a participação do negro no movimento da independência e outros episódios de rebeldia popular baiana. Já publicou ensaios sobre história econômica, seu principal interesse no início da carreira, e sua alentada tese de Doutorado na Sorbonne, onde cobre muitos temas sobre a Bahia no século XIX, aguarda tradução para ser publicada entre nós.

Nos contos agora reunidos combinam-se o contador de histórias e o historiador. Em todos eles sobressaem episódios e personagens que, quando não são “verdadeiros” no sentido estrito, são verossímeis porque podem perfeitamente ter existido (inclusive os espíritos da sessão mediúnica no último conto), ou têm no mínimo um sopro de autenticidade no contexto em que foram colocados. Se os arquivos estão cheios de ficção, como sugeriu a historiadora Nathalie Davis, a literatura tem muito de realidade.

Os contos de Bira apresentam personagens que a máquina do escravismo e do racismo tentou triturar com maior ou menor intensidade e sucesso, mas o leitor não vai encontrar aqui um mero rosário de lamentações. Tal como aparecem na historiografia recente da escravidão, os personagens deste livro não se deixam vencer facilmente, não se apresentam como vítimas absolutas, mas também não são heróis imbatíveis. São homens e mulheres que reagem, negociam, resistem, atacam, se juntam solidários, às vezes vencem, outras perdem, raramente desistem.

Nesse sentido é exemplar a sabedoria do escravo africano Satu diante do senhor desonesto, uma jóia rara de tradição oral que tenho certeza será doravante citada com freqüência nos livros e aulas de História. A idéia geral é bastante conhecida da historiografia da escravidão no Brasil e alhures – o escravo que se finge de bobo pra fazer o senhor de bobo --, mas aqui encontramos um caso refinado, perfeito, desse estilo sutil, debochado e inteligente de resistência escrava. Já no conto seguinte acompanhamos o sofrimento dos homens vitimados pelo tráfico transatlântico de escravos, que transportou poucas mulheres que eles pudessem amar, casar (ou se juntar) e formar famílias. Como nosso autor sugere, o banzo masculino pode em grande parte ser esclarecido por aí: saudade das mulheres africanas. Através da ficção abre-se uma pista importante para os historiadores da escravidão.

Terminada a escravidão, a história da opressão do negro se desdobraria em tentativas mais ou menos sistemáticas de sua exclusão da cidadania, tema explorado nos demais contos. Barrados na entrada de uma guarda cívica republicana, não sem o protesto veemente do sapateiro Manuel Firmino, os negros entrariam na Força Expedicionária Brasileira contra o nazi-fascismo, vencendo os loiros alemães para dissabor dos vizinhos racistas de Irineu, o hábil pedreiro e bravo soldado.

Uma guerra mais difícil de vencer – e ainda em curso -- seria aquela contra o desemprego, o subemprego, a fome. Nesse caso a derrota era muitas vezes evitada por mecanismos de solidariedade familial. Mas nem sempre. Seguindo um enredo comum, o medo da fome fez a família de Dona Maria enviá-la ainda pequena do interior para servir a uma família na capital. Depois de usar a menina, a família transfere sua posse – num caso típico de prolongamento da escravidão após a abolição -- para um português avaro, que usufrui do trabalho de Maria sem remunerá-la, abusa dela sexualmente e depois a abandona por uma patrícia que havia deixado pra trás em sua terrinha.

Os personagens de Bira não se congelam na linha justa de uma narrativa politicamente pragmática. Se quiserem mais história, agora cultural, ei-los se movimentando no ambiente animado de ruas, becos, bairros, cinemas, candomblés, igrejas e centros espíritas de Salvador, ei-los enquanto meninos a desfrutar da sexualidade criativa dos subúrbios, outros a falar a linguagem original dos baianos, ou a envergar brim cáqui inglês e portar bigode finamente aparado com navalha alemã, ou ainda a comer do melhor e do pior.

Esses pedaços de vidas de negros pobres e remediados, recriados por Bira, lhe chegaram como parte de narrativas ouvidas dos mais velhos de sua família, ou como coisas que testemunhou na infância, ou então foram extraídas de encontros e experiências que teve já adulto. São, como ele diz, parte de suas memórias mais e menos remotas, memórias que ele sugere sejam incorporadas a um repertório mais amplo do acervo narrativo do negro brasileiro. Aqui assoma o compromisso com a luta contra o racismo que faz parte da biografia do autor há algumas décadas. A militância, no entanto, não controla o resultado literário. O historiador que relativiza a experiência humana, sua personalidade atrevida e seu engajamento político convergem com desenvoltura na sessão mediúnica que encerra este livro, um memorável encontro entre o caboclo Ypiranga e o espírito de Castro Alves. Esse encontro simboliza bem o aspecto da experiência do autor mais saliente neste volume saboroso: sua circulação desenvolta entre o popular e o erudito, entre cultura oral e escrita.

*João José Reis é historiador, professor da Universidade Federal da Bahia. Autor, entre outros, de Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835 (1986), A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX (1991) e Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX (2008). Levemente revisado, este texto reproduz o prefácio escrito para o livro de Ubiratan Castro de Araújo, Histórias de negro (Salvador: Edufba, 2009).

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