Cruz e Souza, inquietude e presença

Gilfrancisco1

Cronologicamente é o maior dos nossos grandes poetas simbolista. Negro filho de escravos teve educação esmerada proporcionada pelos antigos donos de seus pais. Dedicou-se ao magistério, ao jornalismo, à literatura e à causa abolicionista, mas teve uma vida trágica; a esposa enlouqueceu, três filhos morreram tuberculosos, ele próprio acabou tísico, completando o ciclo da privação e da desgraça. Este poeta negro de luminoso rastro, mergulhado no imenso desconhecido, alma angustiada e presa a soluçar nas trevas, permanentemente em busca de essência das coisas, nos deixou uma obra agônica como sua própria vida.

O termo simbolismo foi empregado pela primeira vez no manifesto de Jean Moréas, publicado em Paris no Le Figaro Litteraire em 18 de setembro de 1886, na busca de uma nova poesia, francamente antiparnasiana, liderada principalmente pelos poetas Verlaine, Mallarmé, Rimbaud e Claudel. O simbolismo afirma-se entre 1890/1915, como um movimento de caráter poético nitidamente antipositivista, aproveitando como teoria formal toda uma imagística de símbolo, a caminhar na direção de vacuidades musicais, plásticas, religiosas e metafísicas. Os novos poetas do final do século XIX lideravam uma revolução (temática e formal) que se opunham quase todos os aspectos da tradição que começava a dominar a Europa. O movimento simbolista trouxe novidades importantes como: a descoberta do subconsciente e do inconsciente; a reabilitação artística da fantasia e a redescoberta do sentido lírico da realidade. A descoberta do subconsciente e do inconsciente abriu à intuição poética os abismos nebulosos em que se agitam os fatos mais misteriosos e as forças mais profundas da personalidade; e sondagem desses abismos, realizada em nossa literatura principalmente por Cruz e Souza, Augusto dos anjos e Alphonsus de Guimarães, revelou uma estranha e desconcertante psicologia humana.

Este movimento não nos deu apenas sentidos e dimensões novas do mundo interior e do mundo supra real, deu-nos também um sentido diferente da realidade objetiva. Procurou expressar a poesia no conteúdo e correspondeu profunda renovação formal, além de descobrirem que as palavras não têm apenas sentido semântico e sim sentido mais complexo e profundo, pois tem em nós um poder de desencadear todo um estado psicológico, estados emocionais: morais e mentais. Contudo o Simbolismo não fugiu de apresentar a inevitável contradição entre a mensagem contida nas obras e a doutrina como tinha sido elaborada e defendida, quer pelos próprios partidários do movimento, quer por críticos coevos.

Em busca de todas as novidades sugeridas pelo novo movimento artístico e espiritual, empenhado na renovação total da poesia, Cruz e Souza luminoso, musical, introspectivo e social, viajando num mundo de luzes e sombras, delineia impressões, sugere sensações e emoções profundas, ultrapassando o lirismo amoroso e épico que tanto marcou o romantismo. Embora trilhando outra configuração estética, voltada para outras preocupações, os simbolistas mantiveram muitos elementos de versificação dos poetas parnasianos. Como também, fascinado pelo mistério e pelo caráter fluídico dos seres e das coisas, aprofundaram o universo das sugestões, da ambiguidade, da abstração mística e do sentimento sensorial do mundo, criando um universo vocabular próprio. Voltando para o onírico, o lactescente, as brumas, o luminoso, o errante, o soluçante e o encantatório transcendente.

Este é o caso de Cruz e Souza, que recebeu muitas influências em sua formação, convivendo com a poesia parnasiana não só de europeus (Eugênio de Castro e Antônio Nobel), como também de brasileiros (Raimundo Correia, Alberto de Oliveira e Olavo Bilac). Desta forma, o poeta do Desterro deu a cada poema o devido cuidado aos seus elementos constituintes, tais como o esmero das rimas, da métrica e o tratamento da palavra poética, com a utilização de certos vocábulos bastante usados pelos parnasianos. A arte poética de Cruz e Souza pertence à escola simbolista, que historicamente começou a se manifestar entre nós, com a publicação de Canções da Decadência em 1889, de Medeiros e Albuquerque (1876-1934). Contudo a verdadeira introdução do movimento, somente se verifica em termos de autêntica expressão poético simbolista, com a publicação em 1893 (melhor fase de sua carreira) de dois livros Missal e Broquéis. Apesar de não ser bem recebido pela crítica, o poeta torna-se bastante conhecido nos meios literários e fora apelidado por Alphonsus de Guimarães como o Dante Negro.

João da Cruz e Souza nasceu em Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis a 24 de novembro de 1861, num ambiente caracterizado pelo costume colonial das festas religiosas e tradicionais entre elas a Festa do Divino Espírito Santo e A procissão dos Passos. Desterros era uma cidade pequena, com seus poucos chafarizes e sem luz a querosene. Filho de escravos, o mestre de pedreiro Guilherme da Cruz e Carolina que foram alforriados pelo Marechal Guilherme Xavier de Souza, aristocrata catarinenses, antes de partir para a Guerra do Paraguai. João teve a sorte de poucos escravos, fora educado pelo Marechal e sua esposa D. Clarinda, como seu próprio filho. Aprendeu as primeiras letras em casa, e durante o curso primário já lia e escrevia e aos oito anos recitava versos. Em 1871, Cruz e Souza ingressa no Ateneu Provincial Catarinense, de renome nacional e tem os melhores mestres, lá aprende latim, grego, inglês e francês, destacando-se entre os melhores do colégio. É de se notar que no Brasil, Santa Catarina era e ainda é o reduto onde se concentra o maio número de alemães, e o poeta teve entre seus maiores mestres o alemão Fritz Muller, e sofrera forte influência dos filósofos germânicos, em particular Schopenhauer, da mesma maneira que o sergipano Tobias Barreto.

Dez anos mais tarde, ingressa no movimento literário da província ao lado de Virgílio Várzea, que redigem entre 1882-1889 a Tribuna Popular, de orientação republicana e abolicionista, e colabora nos jornais: Folha Popular, Novidades e Cidade do Rio, e passa a lecionar no Ateneu. Durante este ano apareceu na província várias companhias teatrais e uma destas convidou-o para fazer parte do grupo e juntos percorre todo litoral brasileiro. Este é um período em que o poeta escreve inúmeras poesias e retorna à terra natal dois anos depois, onde é nomeado promotor público de Laguna, mas fica impossibilitado de assumir o cargo aos preconceitos de alguns políticos da época. Hostilizado e desiludido o poeta vai para a casa da praia e reuni-se com o grupo Escola Nova, que contava com Araújo Figueiredo, Horácio de Carvalho, Firmino da Costa e outros. Em 1885 apareceu seu primeiro livro Tropos e Fantasias, breves narrativas, cromos e poemas em prosa, em colaboração com o amigo Virgílio Várzea, que juntos fundam o jornal O Mosquito. Este livro, fruto das novas ideias, possuía um conteúdo naturalista e parnasianista, mas nele já anunciava o simbolismo. Três anos mais tarde, viaja para o Rio de Janeiro a convite de Oscar Rosas e estabelece residência em 1890, na busca de novas esperanças fez novos amigos e inimigos, mas não se deixa levar toma parte das campanhas abolicionistas empenhada na igualdade de condições sociais do branco.

Cruz e Souza trouxe para o movimento simbolista em formação, além de qualidades invulgares de poesia, a ânsia de ascensão social e moral pela arte, única via possível de sua libertação do estigma racial. Possuídos de inspiração por vezes delirante, sobretudo pra os elementos plásticos, deu-nos uma poesia densa e de intensidade dramática, uma imagética simbolista estranha, preciosa e exotérica. Suas obras são faróis nebulosos invadindo os charcos, o esterco e as brumas, que transmite pela intensidade sensorial de sons e cores das imagens que compões sua criação, o invisível que dominou o seu espírito. Por isto é incontestavelmente um poeta autêntico, dos maiores em língua portuguesa, e porque não dizer um dos grandes do simbolismo europeu. Missal, poesia em prosa, que até então só era feita por autores europeus, como Charles Baudelaire. Este livro trazia uma linguagem inédita, mais fluída, mais cheia de matiz, um clima abstrato que fundia com o romance realista e a prosa naturalista, e por tudo isto não poderia ter recebido os aplausos da opinião acadêmica da época. O próprio título já indicava não apenas um novo estilo, mas principalmente de uma nova visão de mundo, que iria abrir um caminho completamente diferente. Os aspectos mais frequentes nesta obra são presença de circunstâncias mística, templos e atmosfera religiosa, sonoridades variadas, como também a presença de elementos luminosos, além superfícies terrenas, aspectos noturnos relacionados ao sonho e a fantasia.

Aproveitando o pequeno espaço editoria que lhe foi aberto, quase que de um único fôlego ele escreve mais um livro de poemas, Broquéis. Apesar de cada texto possuir a semelhança fisionômica do outro, cada um reflete por si um espírito próprio das sensações tão bem expressadas pelo poeta. Um dos traços constantes nesta obra é a presença marcante do branco (brancura, alvura, luminosidade, neve, neblina e outras variações), conduzindo o leitor ao universo essencialmente simbolista. Em ambas as obras, manifestam um poeta integrado de corpo e alma na estética simbolista, com seu dinamismo incessante e expressivo, a pintar as paisagens naturais das inquietações cósmicas e traduz tudo isto num mergulho dramático para equacionar seu conflito torturante. Com a perda do filho, vítima da tuberculose, a do pai e o enlouquecimento da Gavita, sua mulher, a situação agrava-se e o poeta inicia-se numa nova produção, fase das mais infelizes, são versos mergulhados no mais profundo sofrimento e desprezo do homem e tais poemas, viriam a constituir dois volumes Evocações, poemas em prosa de 1898, é a realização mais livre da sua radical extroversão. Faróis, poemas em verso de 1900, são versos que pulsam e sugere uma expressão maior, superadora do imediatismo pessoal, é na verdade um livro ilustrado misteriosamente por soluções, risos de ironia, ambos foram publicados depois de sua morte, por intervenção de amigos principalmente Nestor Vitor e possuem os mesmos estilos e temáticas.

O historiador literário José Veríssimo, não colocou o simbolismo na importância que merecia, nem deu a Cruz e Souza o merecido lugar em nossas letras e muito menos na literatura universal. Seu valor na história da poesia ocidental é descrito pelo sociólogo francês Roger Bastide num extraordinário ensaio sobre o poeta negro (A Poesia Afro Brasileira, 1943), situa-o de maneira magnífica na poesia universa, no momento em que define o Movimento Simbolista e ao lado de Stefan George o coloca juntamente com Mallarmé. Cruz e Souza é o maior poeta afro descentente, a musicalidade de seus versos, a vida árdua do poeta, humilhado e desprezado, sem ascensão muito alta, foi tentado pela sociedade da época rebaixá-lo a todo custo, era repelido pela sua raça, mas, rebaixar sua criatividade era impossível, tudo isto por ter sido na infância criado e educado por uma família aristocrata. Em dezembro de 1897 a tuberculose o persegue e em busca de melhores ares segue para o Sítio, Minas Gerais, onde morre a 19 de março do ano seguinte. Seu corpo foi enterrado no Rio de Janeiro.

Em 15 de fevereiro de 1915 morre João da Cruz e Souza, último filho do poeta, de tuberculose pulmonar, com seu pai, sua mão e seus irmãos.

1 Jornalista, professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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Desvelando o racismo no conto “O pecado”, de Lima Barreto

Priscila Cardoso de Oliveira Silva*

 

RESUMO: Pretende-se com este artigo analisar como questões raciais estão articuladas com a ficção a partir da análise do conto O Pecado de Lima Barreto, pois entende-se que sua composição ideológica e literária tinha como principal meta a instância social. Antes, porém se trata um pouco da vida e obra do autor, em seguida aponta-se aspectos intrínsecos à sua linguagem, levando em consideração sua forma de conceber a literatura. Posteriormente discute-se acerca do racismo brasileiro a partir dos estudos teóricos de CUTI (2003); Edward Telles (2003); Kabengele Munanga (2006). Então desenvolve-se a análise do conto, propriamente dito, concluindo-se assim a afirmativa de há coerência no que diz o autor e a relação ao seu projeto literário, que era o de utilizar a escrita como arma de denúncia para revolução da consciência nacional.

 

PALAVRAS-CHAVE: Lima Barreto, Racismo, Desigualdade Social, Literatura.

 

 

Merecidamente apresentamos um pouco da vida e obra de Afonso Henriques de Lima Barreto, nascido no dia 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro. Era filho de um tipógrafo e de uma professora, ambos mulatos. Perdeu a mãe aos 7 anos. Aos 16, ingressou na Escola Politécnica, mas cinco anos seu pai enlouqueceu e o rapaz teve de abandonar os estudos para sustentar a família. Em 1903, com 22 anos, conseguiu um modesto cargo na secretaria de Guerra e passou a desenvolver uma produção literária sistemática.

Em 1904, começou a escrever o romance Clara dos Anjos e, no ano seguinte, iniciou a elaboração de Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicado em Lisboa em 1909. Também passou a trabalhar como jornalista e fundou, em 1907 , a revista Floreal. Quatro anos depois, o Jornal do Comércio publicou em folhetins seu romance Triste fim de Policarpo Quaresma.

Em 1914, Lima foi internado por alcoolismo no Hospício nacional. Apesar disso, continuou a colaborar com o Jornal Correio da manhã e a revista Careta, entre outras publicações, e viu o Jornal A noite publicar em folhetins, em 1915, seu romance satírico Numa e Ninfa. Em 1916, foi internado mais uma vez no hospício para tratamento de saúde. Em 1917, teve sua candidatura à Academia Brasileira de letras sumariamente ignorada. Nessa ocasião, escreveu textos em apoio a greves e colaborou na imprensa socialista. 1919 é o ano de publicação do romance Vida e Morte M.J. Gonzaga de Sá. Candidatou-se ainda por mais duas vezes a Academia Brasileira de Letras, sem nenhum sucesso. Em 1º de novembro de 1922, com 41 anos, falece Lima Barreto, vítima de gripe e infarto.1

 

 

A Linguagem de Lima: tradição e/ou Ruptura!?

 

Lima Barreto escreveu em linguagem despreocupada com o cânone, para ele o mais importante era ser compreendido pelas pessoas mais humildes, pois via seus contos e romances como uma arma contra os mecanismos de dominação social. Seus textos apontavam o dia-a-dia dos subúrbios cariocas e as formas de controle e opressão que a sociedade exercia sobre os indivíduos.

Segundo Cuti(2011) a obra literária de Lima Barreto apresenta uma multiplicidade de abordagens, trata-se de uma obra aberta que possibilita o leitor preencher os espaços vazios, com interpretações concretas. Neste sentido, é uma obra estimuladora, com características flexíveis e permeáveis. Um texto sem forma fixa que migra por todos os gêneros textuais, que foge de qualquer norma pré-estabelecida, seja na escrita ou através das ideias apresentadas.

Sua linguagem é denunciadora, pois seus textos desmascaram situações em que a liberdade de viver é limitada por preconceitos de cor e de classe, suas ideias diferem do senso comum, pois possui uma visão social diferenciada. Por conta disso, é possível fazer analogias com seus textos entre o passado e presente. Sua obra nos provoca um incômodo intelectual e emocional, agradável ou não, pois desnuda ocultas intenções nos gestos e atitudes dos grupos que detêm o poder. Investiga com olhar crítico temas polêmicos tais como: racismo, corrupção na política, violência contra mulher, futebol, depressão e loucura, entre muitos outros que por muito tempo foram proibidos de se falar e/ou questionar.

Segundo Nicolau Sevcenko (1999), todo universo temático da obra de Lima Barreto é composto tendo como ponto central o exercício discriminatório e a marginalização social. Assim passou a denunciar e divulgar a ideologia das classes dominantes e suas pressões sobre os dominados.

Os textos barreteanos por apresentar mudanças nas sociedades e nos indivíduos, às vezes profundas, às vezes superficiais, marcaram a memória nacional brasileira, isso fez com que seu trabalho ficasse por muito tempo emm plano secundário, porque seus escritos tinham e têm força de mudar o senso crítico daqueles que os leram e/ou leem.

Porta-voz dos excluídos, seu principal laboratório de pesquisa, foi o cotidiano dos menos favorecidos. A cidade em que nasceu foi para ele um cenário aberto de exclusão, onde ele captava todos os elementos necessários para produção de suas obras literárias.

[...] eu, apesar de ser um sujeito sociável e que passo, das vinte e quatro horas do dia, mais de quatorze na rua, conversando com pessoas de todas as condições e classes, nunca fui homem de sociedade: sou um bicho do mato. (BARRETO, 1956, v. x III, p. 55).

Com ideias bem definidas, o autor imerge no cotidiano urbano da cidade e passa a observar seu contexto social, a fazer sua cidade, apreende os detalhes encontrados, personificando-os em suas obras como verdadeiros personagens. Notadamente, também descreveu como um observador crítico que era, as novidades urbanas e constantes alterações no campo da construção civil. Podemos observar a descrição do Rio de Janeiro pela ótica do seu primeiro personagen-narrador no Romance Recordações do escrivão Isaías Caminha na seguinte passagem:

[...] Subia a rua. Evitando os grupos parados no centro e nas calçadas, eu ia caminhando como quem navegava entre escolhos, recolhendo frases soltas, ditos, pilhérias e grossos palavrões também. Cruzava com mulheres bonitas e feias, grandes e pequenas, de plumas e laçarotes, farfalhantes de sedas: eram como grandes embarcações movidas pelo vento brando que lhes enfunasse igualmente o velame. (BARRETO, 1956, v1, p. 83).

A criação literária para Lima Barreto está internamente ligada ao meio no qual é produzida. O autor deixa claro que para escrever bem, é necessário, antes de tudo ser um bom observador, não apenas dos atos individuais, mas de toda a sociedade. Para ele a literatura deveria ser um instrumento de diálogo entre os homens, sendo assim um meio de fácil compreensão que aliasse personagem e leitor, com o objetivo de comunicar ideais fazendo surgir sentimentos críticos.

Aliado a essas concepções, podemos nos remeter ao que afirma Walter Benjamim, no que se refere à ideia de narrador. Para ele o autêntico narrador é aquele que possui “a faculdade de intercambiar experiências”, e aproximá-las da concepção de literatura, assim como fez Lima Barreto, através dos narradores criados por ele, que em sua maioria estabeleceram uma comunicação direta com que os leram/leem. Para Benjamim: “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos ouvintes” (BENJAMIM, 1993, p. 2011).

Podemos relacionar o que diz o escritor acima citado, aos escritos de Lima Barreto, pois, embora tenha vivido em um período de vasto apreço ao progresso e as novidades urbanas, manteve em sua literatura a essência do autêntico narrador, apresentado por Benjamim. Acreditava na possibilidade do entendimento e da solidariedade humana, assim lutava contra a desigualdade social. Seu principal objetivo era utilizar a literatura como forma de participação social, fazendo desta um elemento unificador que aproximasse os indivíduos uns dos outros.

Portanto a leitura dos textos produzidos por Lima Barreto em especial o conto O Pecado que veremos a seguir, nos possibilita observar que o autor vai além do biógrafo ou do desejo de ser aceito pela crítica intelectual. Sua obra ultrapassa todas as fronteiras do subjetivo e cruza com a crítica cultural. Utiliza sua linguagem politizada como instrumento de cunho social que possui propósitos e objetivos concretos, em que o principal deles é mostrar que existe um outro ângulo da história.

 

Concepções raciais e o conto O Pecado

 

Com abolição da escravatura no Brasil surgiram muitas discussões em torno da inclusão social do negro. Nesse contexto, muitos intelectuais e abolicionistas dividiam opiniões e tratavam esse tema como uma questão nacional. Observando esses debates Lima Barreto travou uma verdadeira “guerra” com as diversas correntes intelectuais da época, pois começou a problematizar questões raciais, questionando assim, ideários científicos estruturados e incontestáveis, em que muitos deles afirmavam a ideologia da inferioridade do negro em relação ao branco. A respeito disso, vejamos o que afirma Edward Telles:

A eugenia incluía ideias científicas sobre raça que na época consideravam os negros inferiores e os mulatos, degenerados. Afirmava também que climas tropicais como o Brasil enfraqueciam a integridade biológica e mental dos seres humanos. Assim sendo os eugenistas do séc. XIX estavam convictos de que a população brasileira exemplificava a degeneração biológica. (TELLES, 2003, p. 43).

O autor afirma que boa parte dessas ideias se sustentava em argumentos biológicos e conceitos raciais que inferiorizavam o despreparo dos negros libertos. Para isso, utilizavam de argumentos científicos na tentativa de validar a dominação racial, sustentando a ideia de que a miscigenação condenaria o Brasil à degeneração. Nesse contexto a presença da população negra era considerada um obstáculo que precisava ser combatido.

Munanga (2006) afirma que o fato dos negros terem sido libertos por força da lei não garantia aos mesmos os direitos de fato e de todas as oportunidades dadas ao branco em nosso país, sobretudo às camadas mais ricas. Por conta disso, após a abolição da escravatura, proclamada na Lei Áurea, os negros brasileiros tiveram que implantar um longo caminho de construção de igualdade e de acesso às camadas sociais.

No Brasil, os grupos mais pobres, e afrodescendentes, apesar da abolição, continuaram a vivenciar a realidade da desigualdade. Contudo é necessário lembrar que mesmo com toda a opressão vivida neste período, existiram movimentações, resistência e luta que marcaram parte da história do negro brasileiro. Como exemplos dessas lutas pela construção da cidadania dos negros temos: a Revolta da Chibata, movimento liderado por um negro, que se opôs ao modo como eram tratados os marujos na marinha brasileira início do século XX; A Frente Negra Brasileira (1931), organização política que surge a partir da ação de militantes negros paulistas pós-abolição; O Teatro Experimental do Negro -TEN (1944), cujo projeto pedagógico destaca a educação como forma de garantia a cidadania do povo negro; e o Movimento das Mulheres Negras que destaca a articulação entre raça e gênero dentro dos movimentos sociais específicos.

No que se refere a questões raciais e literatura podemos incluir Lima Barreto como principal representante, pois enfoca com bastante propriedade temas como preconceito e racismo associado à escravidão no Brasil. O autor descreve o tratamento dado ao negro em relação ao branco, apontando diversas situações discriminatórias dirigidas aos mesmos. Além disso, ele também se preocupa em questionar a estrutura do discurso biológico do projeto do embranquecimento nacional. Cuti (2003, p. 92) dispõe que “a hipocrisia racista no Brasil, sendo muito refinada, dificilmente se expõe. Lima Barreto puxa-lhe o véu ao construir seus personagens humanizados no racismo”. Notadamente esses temas são abordados de forma bem abrangente em suas obras. Para entendermos um pouco sobre isso vejamos análise do conto “O pecado”, publicado na Revista Souza Cruz, em agosto de 1924 que revela com bastante clareza o preconceito a brasileira.

“O pecado” conta de forma bem humorada a história de uma alma que sobe ao céu, a qual é bem recebida por São Pedro. Ao ler uma “ficha explicativa do ex-vivo”, o Santo acredita que esta alma é digna e casta e por isso deve sentar-se a direita do trono celestial. Porém ao final de toda análise de sua vida terrena, descobre-se um detalhe: era negro e então deveria ir para o purgatório.

Podemos fazer analogias com algumas passagens do texto e a coibição da afirmação social do negro no final do século XIX, pós-escravatura. Pois ao negar a entrada do negro no reino celestial, o texto remete ao período em que todas as portas foram fechadas para os “recém-libertos”, confirmando assim a falta de oportunidade e o descaso com todos aqueles que foram os principais formadores da nossa sociedade.

Logo nas primeiras linhas da narrativa observa-se que o autor traça, revela o processo de crendice racial no Brasil, apresentando assim problemas relacionados com a intolerância racial. Mais uma vez Lima Barreto quebra barreiras e fala sobre o que é considerado tabu. Ele utiliza dados do cotidiano, neste caso a religiosidade para problematizar. E o faz num tom de denúncia. Vejamos a passagem a seguir: “Dessa vez ao contrário de todo o sempre, São Pedro, antes de sair, leu de antemão a lista; e essa sua leitura foi útil, pois que se a não fizesse talvez, dali em diante, para o resto das idades - quem sabe? – o Céu ficasse de todo estragado”.(Barreto, 2004, p. 64).

Observe como o autor demonstra compromisso com a realidade social, se apropriando de elementos do catolicismo para denunciar a ideologia do embranquecimento do Brasil, defendida pelas teorias eugenistas. A crítica também se estende às instâncias católicas que tanto contribuíram para a escravidão no Brasil, pois em nome de Deus justificavam que, para os negros serem salvos, libertos dos pecados, era necessário passar pela “redenção” do cativeiro. Neste caso o purgatório terrestre.

O próprio termo “estragado” pode ser comparado ao “degenerado” muito utilizado para desqualificar e/ou silenciar os negros. O céu por sua vez é uma referência ao Brasil, se assim levarmos em consideração que aqui é o paraíso das relações. Antonio Siqueira foi um dos pensadores mais convictos do branqueamento do Brasil. Ele dizia que:

Como o Brasil deve ser povoado da raça branca, não se concedam benefícios de qualidade alguma aos pretos que queiram vir habitar no país depois de abolida a escravatura, esta faculdade é só concedida aos que já foram escravos. E, como havendo mistura de raça preta com branca, a segunda ou terceira geração ficam brancas, terá o Brasil em menos de 100 anos todos os seus a habitantes da raça branca. (SIQUEIRA, apud CUTI, 2011, p. 96).

No cenário brasileiro em que se vivia esse tipo de pensamento, um negro ou negrodescendente jamais poderia ser escritor. Se fosse, estaria condenado a expectativa errante, sem brechas. Além do mais, se ele rompesse com o silêncio sobre assuntos que envolviam a realidade do Brasil. Nesse contexto, a vida e obra de Lima Barreto foram consideradas como verdadeiras anomalias para a crítica, surgiram várias tentativas de desqualificar seus trabalhos. Porém nem mesmo a doença e rejeição conseguiram silenciar sua voz denunciadora, questionadora.

O conto se revela em torno de dois eixos o poder e seus efeitos discriminatórios. Pode-se fazer analogia da repartição celestial e as ordens supremas apresentadas na narrativa, aos mandos e desmandos dos governantes políticos, os quais o autor tanto criticou. Remete também à divisão de classes e à exclusão social que tanto atinge pobres e enjeitados. Através de uma abordagem simples, aparentemente cômica, o autor revela a situação vivida pelo negro no Brasil. O sarcasmo em determinado momento da narrativa, é uma forma encontrada por ele para denunciar o preconceito e o seu repúdio pelas desigualdades sociais. Suas armas são a ironia e ousadia com que pronuncia seus descontentamentos. Lima, mesmo diante de fortes resistências no plano da recepção a seu tipo de escrita, trata sem nenhuma intimidação a respeito de problemas da esfera racial e também política dando ao leitor uma dimensão crítica da violência dessas práticas.

São Pedro, como de costume, passa no departamento burocrático que seleciona as almas que entrarão ou não no céu naquele dia. Conferindo a lista dos “aprovados”, ele observa os seguintes dados: “P.L.C., filho de…, neto de…, bisneto de… _ Carregador, quarenta e oito anos. Casado. Casto. Honesto. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo”. São Pedro afirma ao escriturário que é pena, pois tal alma merecia permanecer ao lado de Deus para sempre. Ao que o escriturário pergunta intrigado por que “merecia”? “Levando o dedo pela pauta horizontal e nas ‘Observações’, deparou qualquer coisa que o fez dizer de súbito:

- Esquecia-me… Houve engano. É! Foi bom você falar. Essa alma é a de um negro. Vai para o purgatório”. (Barreto, 2004, p. 65)

Quando lemos essa passagem podemos imaginar a figura de “São Pedro” frente ao “candidato” que preenche perfeitamente todos os requisitos, mas cometeu um único “pecado”: o de ser negro. Imperdoavelmente será enviado ao purgatório, já que não é permitida a entrada de negros no reino celestial. O autor é categórico em sua avaliação e “abraça as teses de solidariedade humana, solapa o racismo em sua base irracional primitiva, que é considerar apenas os brancos dotados de humanidade.” (Cuti, 2011, p. 91).

Nesta produção literária tensões são refletidas em diferentes dimensões: a primeira, diz respeito à temática das instituições de poder e de suas consequências, no que se refere à divisão de classes, a segunda é a contrapartida, realça a tentativa de reconhecimento à dignidade e a honestidade dos excluídos. Tomando para si o dever de combater os males da sociedade, Lima Barreto utiliza sua inteligência aliada à sátira para tornar visíveis aqueles que o cotidiano cruel insiste em deixar na margem social.

A obra barreteana não revela apenas um sofrimento individual, vivido pelo negro sem acesso, mas o sofrimento de uma coletividade. Com a escrita deste conto, Lima demonstra sua consciência em relação aos problemas de seu tempo. Ele manifesta uma profunda preocupação com aqueles excluídos e por isso faz tornar público todo seu ressentimento em relação aos prejuízos causados pelo racismo.

Em uma mesa longa, larga e baixa, em grande livro aberto se estendia e debruçado sobre ele, todo entregue ao serviço, um guarda-livros punha em dia a escrituração das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e noticiosos traziam de toda extensão da terra. Da pena do encarregado celeste escorriam grossas letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor talhar outro caráter caligráfico. (Barreto, 2004, p. 64).

A narrativa, quando, por exemplo, utiliza a expressão “encarregado celeste” revela o esforço do autor em mostrar a superficialidade do comportamento dos poderosos e o exagero destes últimos em lidar com títulos e cargos públicos. A descrição da mesa “larga e longa” faz referência a burocracia brasileira em lidar com assuntos sociais, e aos luxuosos gabinetes em que muitas vezes eram decididos os destinos de muitos brasileiros. O grande livro pode ser considerado às leis que insistiam em usurpar os direitos dos negros libertos.

O que se nota com este texto é que o escritor optou por uma obra de contestação das dificuldades sociais, as quais ele também pôde vivenciar durante sua curta e intensa passagem na Terra. É um conto que mostra a coerência do autor em relação ao seu projeto literário, que era o de utilizar a escrita como arma de denúncia para fomentar a consciência nacional. Isso é perfeitamente explícito nesta curta narrativa, mas tão bem elaborada e clara na mensagem que queria transmitir.

Portanto, pode-se dizer que Lima Barreto fez revolução com seus textos e o conto O Pecado foi uma de suas armas. O Autor visava o bem e a união entre os povos, queria despertar a consciência crítica dos brasileiros no tratamento às injustiças. Apesar de muitas vezes parecer melancólico e apresentar complexo de inferioridade, por ser também vítima da discriminação, tinha profunda esperança na humanidade, lutou sozinho sem medo do bombardeio que veio da contrapartida literária.

A tentativa de camuflar o preconceito no Brasil não achou brechas nos escritos barreteano. Segundo João Antonio, apud Cuti (2011, p. 115), “sua obra até hoje é uma bordoada, seca e rente, na nossa apatia, malemolência, calhordice, omissão, indiferença, farisaísmo, relapsia e macaqueação dos modelos estrangeiros”.

Assim muitas são as abordagens temáticas de Lima Barreto, fazendo dele um autor atualíssimo, mesmo após quase um século de sua morte. Sua ficção permeia todas as circunstâncias da realidade nacional, principalmente no que consiste a educação brasileira que insiste em permanecer se enxergando sobre a ótica ocidental.

 

Referências

 

BARRETO, Lima. “O pecado”. In: O homem que sabia javanês e outros Contos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1956.

BENJAMIM, Walter. O narrador. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1993.

CUTI. Lima Barreto. São Paulo: Selo Negro, 2011.

MOURA, Samara Loureiro de. Lima Barreto: um mulato intelectual na Bruzundanga. Porto Alegre, 2010. http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/26398/000758256.pdf. Acesso 13 de setembro de 2013.

MUNANGA, Kabengele; Nilma Lino Gomes. Para entender o negro no Brasil de hoje: Historia, realidades, problemas e caminhos – São Paulo: Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, 2006, 2ª ed. ver. E atualizada- (Coleção Viver, Aprender).

REVISTA Nova Escola. Contos para Jovens e Adultos. Edição Especial. Editora Abril: Dezembro, 2005.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1999.

TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003.

 

1 Dados retirados da Revista Escola: Contos para jovens e Adultos, aliados aos estudos de Cuti (2011) em Cronologia da Vida de Lima Barreto. Para mais informações acerca da vida e obra do autor consultar os escritos de BARBOSA, Francisco Assis em A vida de Lima Barreto. 8ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

* Priscila Cardoso de Oliveira Silva é graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual da Bahia, professora de Língua Portuguesa e Literatura no ensino médio e mestranda em Crítica Cultural pelo Programa de Pós-Graduação da UNEB-Alagoinhas.

 

 

ANEXO

 

O Pecado

Lima Barreto

 

Quando naquele dia São Pedro despertou, despertou risonho e de bom humor. E, terminados os cuidados higiênicos da manhã, ele se foi à competente repartição celestial buscar ordens do Supremo e saber que almas chegariam na próxima leva.

Em uma mesa longa, larga e baixa, em grande livro aberto se estendia e debruçado sobre ele, todo entregue ao serviço, um guarda-livros punha em dia a escrituração das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e noticiosos traziam de toda extensão da terra. Da pena do encarregado celeste escorriam grossas letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor talhar um outro caráter caligráfico.

Assim páginas ia ele enchendo, enfeitadas, iluminadas em os mais preciosos tipos de letras. Havia no emprego de cada um deles, uma certa razão de ser e entre si guardavam tão feliz disposição que encantava o ver uma página escrita do livro. O nome era escrito em bastardo, letra forte e larga; a filiação em gótico tinha um ar religioso, antigo, as faltas, em bastardo e as qualidades em ronde arabescado.

Ao entrar São Pedro, o escriturário do Eterno, voltou-se, saudou-o e, à reclamação da lista d’almas pelo Santo, ele respondeu com algum enfado (endado do ofício) que viesse à tarde buscá-la.

Aí pela tardinha, ao findar a escrita, o funcionário celeste (um velho jesuíta encanecido no tráfico de açúcar da América do Sul) tirava uma lista explicativa e entregava a São Pedro a fim de se preparar convenientemente para receber os ex-vivos no dia seguinte.

Dessa vez ao contrário de todo o sempre, São Pedro, antes de sair, leu de antemão a lista; e essa sua leitura foi útil, pois que se a não fizesse talvez, dali em diante, para o resto das idades – quem sabe? – o Céu ficasse de todo estragado. Leu São Pedro a relação: havia muitas almas, muitas mesmo, delas todas, à vista das explicações apensas, uma lhe assanhou o espanto e a estranheza. Leu novamente. Vinha assim: P. L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... – Carregador, quarenta e oito anos. Casado. Casto. Honesto. Caridoso. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo.

Deveras, pensou o Santo Porteiro, é uma alma excepcional; como tão extraordinárias qualidades bem merecia assentar-se à direita do Eterno e lá ficar, per saecula saeculorum, gozando a glória perene de quem foi tantas vezes Santo...

— E porque não ia? deu-lhe vontade de perguntar ao seráfico burocrata.

— Não sei, retrucou-lhe este. Você sabe, acrescentou, sou mandado...

— Veja bem nos assentamentos. Não vá ter você se enganado. Procure, retrucou por sua vez o velho pescador canonizado.

Acompanhado de dolorosos rangidos da mesa, o guarda-livros foi folheando o enorme Registro, até encontrar a página própria, onde com certo esforço achou a linha adequada e com o dedo afinal apontou o assentamento e leu alto:

— Esquecia-me... Houve engano. É! Foi bom você falar. Essa alma é a de um negro. Vai para o purgatório.

 

(In: Revista Souza Cruz, Rio, agosto 1924).

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Dicionário de forquilhas:1 a poesia de Edimilson de Almeida Pereira

Maria José Somerlate Barbosa*

A obra poética de Edimilson de Almeida Pereira revela a preocupação de registrar e analisar o universo cultural afro-bra­sileiro, desafiando essencialismos nacionalistas que desprezam diferenças regionais e diversidade cultural. Para Edimilson, se­ria impossível falar de uma identidade afro-brasileira, por ser ela um palimpsesto que registra inúmeras inscrições históricas, geográficas e socioculturais. Por isso, pluraliza-a, considerando-a um macrocosmo fraturado em que tradição e cultura não formam absolutos: “[A 'tradição afro-brasileira] não é aquele tambor que soa com ritmo harmônico dos ancestrais, É um tambor meio quebrado, meio rompido, com uma série de fraturas, de fissuras” (PEREIRA, 1998, p. 101).

Em Águas de contendas (1998), título inspirado no nome de uma cidade mineira, Pereira utiliza a metáfora das águas revoltas, indicando a tensão, o conflito, a ambigüidade e a ambivalência que caracterizam as relações humanas. Para o poeta, o título representa

[...] os choques que existem nas relações amorosas, nos vínculos afetivos, onde nem tudo é harmonia e o conflito é parte da convivência. [...] No caso, é como se o senti­mento amoroso fosse as grandes águas por onde nós circulássemos sempre, mas em estado de permanente contenda, seja com o outro, seja conosco mesmo, seja com o sentimento. (PEREIRA, 1998, p. 115).

A representação simbólica das águas em estado de con­tenda pode também aplicar-se ao imaginário afro-brasileiro e à própria literatura, representados nos debates, nas diferenças de opinião e nas diversidades regionais - as fraturas e fissuras a que se referira Pereira anteriormente.

O poema “Três Tambores Sagrados”,2 publicado no livro Árvore dos Arturos (1988), é uma amostra de como Pereira exa­mina a diversidade cultural afro-mineira. Nesse texto, ele discu­te o significado dos tambores (Santana, Santaninha e Jeremia) no ritual do Candomblé,3 considerando-os como símbolos da tra­dição, das vozes dos ancestrais e do espaço sagrado. Os tambo­res registram momentos de alegria, celebração, mas também apon­tam para a necessidade de “tomar sentido” e de se agarrar ao significado das palavras. Como o poema indica, é na linguagem, e através dela, que a tradição se reinventa e se conserva viva.

Três tambores sagrados

São três os tambores, como

três são os fogos: no passado

ensinam os antigos. Hoje

os meninos que ouvem. São dois

e o terceiro é o tempo mordido.

 

o santana, o santaninha e o

são três os tambores sagrados!

 

Ô menino, toma sentido! Se o

dia é de preceito, toma sentido!

Os antigos riscam o silêncio

e as caixás batem no escuro.

Ô, nego! A festa é dos antigos!

 

o santana, o santaninha e o

são três os tambores sagrados!

 

No Candomble furam o medo

e o chão se veste de calos.

“ô, menino, você aprende a rezar!”

Auê, nego, não perde o sentido não.

São três mil os tambores.

 

o santana, o santaninha e o

são três os tambores sagrados!

(PEREIRA, 1998, p. 95).

O terceiro tambor é absorvido e transformado nos mo­mentos do corpo político. Talvez por isso, ou porque esse tam­bor receba nomes variados nas comunidades afro-mineiras, o autor tenha omitido a referência ao nome dele (“o santana, o santaninha e o / são três os tambores sagrados!”), substituindo o nome de Jeremia por um tempo sempre em mutação, apreendido pela linguagem, pela história e pela tradição constantemente em transformação: “São dois / o terceiro é o tempo mordido” (PEREIRA, 1998, p. 95).

Esse poema também exemplifica a riqueza semântica da poesia de Pereira quando usa palavras que iluminam inúmeras facetas culturais e desdobram-se como um leque de significa­dos. Por exemplo, a palavra “sentido”, que aparece nos versos “Ô menino, toma sentido!” e “Auê, nego, não perde o sentido não”, explora quase todos os significados que os dicionários re­gistram para o vocábulo (bom senso, propósito, cautela, razão de ser, atenção e rumo). Exprime ainda a perspectiva de busca e a capacidade de conhecer a realidade tanto de um modo calcula­do e apreendido através do real, quanto de maneira intuitiva. Ainda que o autor não se refira aos sentidos, pode-se inferir que se tornam o veículo através do qual a experiência humana, o processo histórico e o tempo construído são aceitos, ingeridos e “canibalizados” (no sentido que Oswald de Andrade atribuiu a essa palavra). Como “Três Tambores Sagrados” indica, o toque de Jeremia/Tempo, para os membros da família da comunidade afro-mineira d'Os Arturos e as mudanças no presente. Também mostra como seus rituais estão ancorados no passado histórico e na tradição cultural.

No poema “Missa Conga”, de Árvore dos Arturos, Pereira discute o sincretismo cultural e religioso que existe nessa comu­nidade e apresenta aspectos rituais que se encontram num pro­cesso de demarcação de novos significados. Pereira joga com a mobilidade cultural dos Arturos, descrevendo os aspectos da identidade social deles. O texto inscreve um momento histórico catalisador e, paradoxalmente, partitivo, pois tempo e espaço tanto se complementam como apresentam um jogo suplementar de contenda.

Esse conflito se estende ao poeta. Como estudioso dos rituais dos Arturos e ligado às suas raízes afro-mineiras, Pereira insere-se no contexto da comunidade. No entanto, como antropólogo, está consciente do distanciamento que precisa existir para que haja uma observação empírica. No poema “Missa Conga”, o eu lírico afasta-se do espaço dos Arturos e distancia-se do pro­cesso ritual quando cede lugar à voz do antropólogo. Confronta­do com a mobilidade e adaptação das tradições afro-brasileiras e surpreso com os deslocamentos de identidades culturais e religi­osas, o eu lírico se mostra inseguro na sua posição ambígua. Assim, a articulação da experiência individual com a coletiva é mediada pela voz poética que interroga:

Missa Conga

Para que deuses se reza

quando o corpo aprendeu

toda a linguagem do mundo?

 

Que orações se entoa

quando a alma se entregou

a todas as dores do mundo?

 

Onde se deitam os olhos

quando o altar dos antigos

se ocultou nas sombras?

 

Para que deuses se reza

quando as palavras se velam

para invocar seus nomes?

 

Que sacrifício se oferta

nos dias em que os antepassados

ainda se escondem?

 

Por que não entregar a vida

ao deus com olhos de plumas

que vive no fundo dos tempos?

(PEREIRA, 1988, p. 105).

Pereira descreve e analisa o espaço cultural híbrido da co­munidade dos Arturos, poetizando o que Homi Bhabha discute em O local da cultura (1998) como “[...] a estratégia discursiva do momento da interrogação, um momento no qual a demanda pela identificação torna-se, primariamente, uma resposta a outras questões de significação e desejo, cultura e política” (1998, p. 84). O poeta examina a tensão, o conflito, o espaço do autoquestionamento que encontra na comunidade dos Arturos, em outros grupos afro-mineiros e, por extensão, no imaginário cultural e simbólico afro-brasileiro. Salienta também a sua pró­pria interrogação ao dialogar com a cultura, a história e a litera­tura brasileiras.

O espaço e o momento de inquirição nesse poema (repre­sentado graficamente por pontos de interrogação) também se inserem no discurso pós-moderno e metapoético em que ele­mentos reflexivos e de reflexão sobre o texto examinam a pala­vra como veículo de produção de significado. O autoquestionamento da linguagem se torna mais óbvio na quarta estrofe, em que o eu lírico expressa incerteza quanto à legiti­midade da sua prece e das suas escolhas ao perguntar a que deu­ses deve orar. Considera que palavras são entidades autônomas e voláteis que se prestam a um discurso lúdico e à volubilidade do significado (no sentido que lhe atribui a teoria desconstrucionista). O discurso polissêmico do poema se proje­ta em palavras como o verbo “velar” (quando as palavras se velam), que transmite a ideia de cobrir, encobrir, mas que tam­bém significa estar alerta e vigiar.

O eu lírico poetiza o sincretismo religioso do ritual da Missa Conga e a tolerância excêntrica do “deus de olhos de plumas”. A leveza e a suavidade do olhar desse deus contradizem a visão judaico-cristã em que Deus (escrito com maiúscula) é represen­tado como aquele ser de olhos penetrantes que intimidam, desa­catam e se impõem. Talvez seja por isso que o poeta tenha escolhido representá-lo graficamente com letra minúscula, apontando para a dessemelhança entre o Deus da tradição judaico­-cristã e a entidade do poema. Deus - o infinito, o começo bíbli­co, o paradigma de toda criação, o logos - torna-se menos aterro­rizador e mais tangível nesse poema e, por isso, mais apto a con­viver com o sincretismo da cerimônia religiosa.

Em “Tiradentes”, publicado em Águas de Contendas, Pereira utiliza os detalhes arquitetônicos da igreja de Nossa Senhora do Rosário, da cidade mineira, para ressaltar o passado histórico e o sistema escravista brasileiro. Impossibilitados de construí­rem igrejas para seus santos padroeiros durante os dias úteis, os escravos trabalhavam aos domingos e feriados e muitas vezes à noite, utilizando a luz da lua. O poema apresenta a lua como uma cúmplice do logro dos escravos, pois costumavam enfeitar o altar principal com ouro tirado das minas, escondendo-o nas roupas e no cabelo.

Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edimilson de Almeida Pereira discutem esses fatos históricos na análise do simbolismo do altar principal da igreja de Nossa Senhora do Rosário em Tiradentes:

No altar-mar desta igreja, nota-se que a meia-lua encimada pela coroa de Nossa Senhora do Rosário e os quatro anjos que a contemplam têm os olhos cerrados. [...] Os anjos de olhos fechados são a representação iconográfica da realidade do trabalho escravo, que só à noite - exausto e invadido pelo sono - poderia dedicar-se à construção de seus templos. (PEREIRA; GOMES, 1988, p. 39).

Como a história e a literatura atestam, os escravos, às ve­zes, conseguiam lograr as leis estabelecidas ao articular e implementar mecanismos através dos quais podiam criar espa­ços sociais, religiosos e políticos para si mesmos. Tais fatos es­tão poeticamente representados no poema:

Tiradentes

Lua de olhos cúmplices

com o furto que a doura.

Serviço feito à noite

esmerado na carpina.

 

Olhos fechados até

os anjos

em sono ou desculpa

para não ver

o vistoso.

 

Com o dia esclarecido

os burlados contemplam

sua burla.

(PEREIRA, 1998, p. 42).

Em “Avisos de Praça”, também de Águas de Contendas, Pe­reira refere-se às estratégias de repressão social e às práticas exis­tentes durante o período anterior à abolição da escravatura no Brasil, em que os africanos e seus descendentes eram tratados como bens alienáveis. Baseando-se em documentos da época, o poeta refere-se a um leilão (escravos, gado, mobiliário e melho­ramentos feitos na fazenda) em que se efetuou a venda dos bens de Matheus Herculano Paiva. Os nomes de bois e escravos (Sabina, Mimoso, Francez, Joaquim, Velludo, Hipólito, Adão e Eva) são colocados no mesmo patamar e misturados de forma a não se saber exatamente os que se referiam aos escravos ou aos bois.

Esse aspecto do relatório de venda, registrado no poema, enfatiza quão cruel e desumano era o Código Penal do Brasil-­colônia e o aparatus ideológico da época que negava ao escravo o status de cidadão e, conseqüentemente, o de pessoa jurídica. Tal passagem do poema reitera a afirmativa de que a mobilidade e a fluidez do sistema social em Minas Gerais foram, de muitas maneiras, um mito criado por aqueles que detinham o poder eco­nômico e político. Documentando sua pesquisa em material en­contrado nos arquivos de várias cidades de Minas Gerais e nos documentos deixados por viajantes estrangeiros da época, Núbia e Edimilson posicionam-se contra o argumento de que a ascen­são social dos escravos na Minas Gerais colonial era facilmente obtida. Acreditam que a aparente mobilidade social que as esta­tísticas parecem confirmar nada mais era que uma forma disfarçada de controle, estabelecida pelos senhores de escravo, pois deve-se considerar que a liberdade era condicional, uma vez que podia ser revogada por mau comportamento. Portanto, existia mais como uma potencialidade:

O escravo inseria-se nas transações do mercado co­mercial como fonte intermediária geradora de lucros. Sua condição de objeto não lhe permitia participação efetiva no processo social, tornando-o receptáculo das decisões promulgadas por essa sociedade.

Na prática, isso correspondia à situação do escravo que é arrolado no espólio de seu falecido proprietário, juntamente com outros bens alienáveis [...] Descartado em leilão, desagregam-se não apenas os sentidos da sua individualidade, mas a própria família. É o que relata o edital de liquidação do espólio deixado por Matheus Herculano de Paiva, em sua parte referente a escravos. (PEREIRA; GOMES, 1988, p. 44-45).

“Aviso de Praça” refere-se tanto à documentação histórica de transações econômicas como à biografia de um juiz da época, Affonso Henriques Assis de Aguiar, que morou e trabalhou em Juiz de Fora. O seu titulo, “Juiz de Órfãos”, era semelhante ao de “Juiz de Fora”, árbitro que podia tanto dispensar justiça como presidir um distrito policial. Era encarregado de liquidar espóli­os e leiloar crianças desamparadas de pais escravos, pois não havia interesse em conservar tais crianças, que constituíam um peso econômico e um investimento sem retorno a curto prazo para os senhores de escravos. Assim,

[...] era mais eficiente selecionar, pelo seu vigor e resis­tência, dentre os jovens africanos do sexo masculino, re­cém-chegados da África, nos leilões de escravos do por­to da cidade de Salvador [...] do que se preocupar em cuidar de crianças nascidas de pais escravos no Brasil. (LEVINE, 1997, p. 15).4

Quando perguntei a Pereira (numa entrevista por telefo­ne) sobre o que servira de motivação para escrever o poema “Avisos de Praça”, ele me explicou que se inspirara em docu­mentos históricos que registravam a venda de escravos. Ao examiná-los ponderou se, durante a época da escravidão, todas as pessoas envolvidas nas transações de compra e venda de es­cravos lidavam com tal assunto de maneira absolutamente fria e calculada. Imaginou que houve momentos em que algumas pes­soas que compravam, vendiam e castigavam escravos, bem como aqueles que documentavam transações comerciais, estavam ci­entes dos seus atos, sentiam-se culpados ou tinham dúvidas quan­to ao aspecto moral dessas transações. As referências biográfi­cas que encontrara sobre o juiz Assis de Aguiar e algumas infor­mações e referências que acumulara da sua pesquisa histórica são elementos de composição do poema.

Em “Avisos de Praça”, a voz poética apresenta uma reali­dade que, apreendida e reinventada pela linguagem, permanece em constante diálogo com a cultura, a história, a tradição literá­ria e o leitor:

Vende-se um piano; em casa de Carlos

Montreuil, na rua Direita, n. 25.

Pharol, Cidade do Juiz de Fora, 1882

 

O Dr. juiz de orphãos ainda que pouco saiba

faz saber

que o maior lanço arremata

 

2 marquezas velhas

Sabina, e seus filhos

bois de carro

Mimoso e Francez

Joaquim quebrado

Velludo

Hipolito e Adão

 

& mais bem feitorias

1 monjollo

1 moinho

Eva solteira

1 casa começada

 

Outro sim, eu, escrivente

juramentado

Affonso Henriques Assis

de Aguiar escrevi.

 

*

 

Eu escrivente juramentado

invento a juros

o que pretendo.

 

Não há mercadoria

sem mercado.

Não há palavra

sem preço.

 

Assino o variável serviço

do significado.

Recomendo lupa

martelo também

pois que sólido muro

o texto.

 

Eu mesmo não sei

o lado esclarecido.

Cada escravo em anúncio

anunciado me vejo.

Eu escrivente a juros

assino o que escrevi.

O texto me desconcerta.

 

*

 

Escrivente juramentado

comenta

e argumentando mente.

 

Affonso Henriques Assis

a guiar reino dúbio

oratório de outros dias.

 

Affonso Henriques assiste

à incomerciável certeza

miserere miserere.

 

Affonso ex-enriquecido

proprietário sem posse

da letra que inventou.

 

Escrivente perjuro afonso

a juros condena

o ofício de si mesmo.

(PEREIRA, 1998a, p. 45-47).

O poeta tece dois níveis “narrativos” (em terceira e pri­meira pessoas) ao alternar a voz que retoma os fatos com a do próprio “escrivente”. A primeira e terceira partes do poema apre­sentam narradores de terceira pessoa e a segunda parte é narrada pelo próprio juiz. Permite-se assim que a voz histórica se mani­feste e que o leitor conheça o dilema moral do Juiz de Órfãos. No processo de documentar fatos, o “escrivente” interroga a si mesmo e questiona os valores morais, econômicos, sociais e culturais do seu tempo-espaço. Disputa também a veracidade daquilo que registra, indicando assim um preço moral para suas ações e palavras. À medida que anuncia e anota as palavras e as “peças” leiloadas, deixa também marcado um autoquestionamento no livro de “escrivente” juramentado.

Na última parte do poema, o poder jurídico e econômico do juiz diminui numa escala de valores proporcional ao aumen­to do seu conflito e dilema moral. Tal proporção diametral está simbolicamente representada por seu nome. Quando, inicialmen­te, é apresentado no poema, ele é Affonso Henriques Assis de Aguiar. Depois que seu dilema moral toma corpo, seu nome di­minui gradualmente até se tornar a forma moderna e simplificada, escrita com um único “f” e em letra minúscula (“afonso”). Sua importância social e jurídica diminui para si mesmo à medida que reconhece que sua função, e até mesmo a sua identidade pessoal, são produtos da reificação de seres humanos. A letra minúscula e a simplificação fonética do nome do juiz são artifí­cios literários usados tanto para evidenciar o conflito interno do “escrivente”, como para desmistificar o lado “humano” da sua profissão (Juiz de Órfãos).

Portanto, o eu poético utiliza as mudanças mencionadas como artifícios narrativos para analisar o passado, determinar o dilema moral do “escrivente” e desestabilizar a centralização do significado, já que, também nesse poema, há um número subs­tancial de palavras que podem ser lidas com várias significações. A palavra “letra” (“Affonso ex-enriquecido / proprietário sem posse / da letra que inventou”), por exemplo, pode referir-se tanto à escrita quanto à nota promissória. As conotações poten­ciais da palavra “monjollo”5 estão registradas em dicionários da língua portuguesa. Significa engenho tosco movido a água, es­cravos de certas nações africanas e novilhos. As associações provocadas pelo verso “e argumentando mente” podem signifi­car tanto “ao apresentar seu argumento, não diz a “verdade”, como “seu raciocínio ou seu dilema moral levanta dúvidas e questionamentos”. O mesmo tipo de raciocínio se aplica ao ver­so “Outro sim, eu, escrivente”. Ao criar a palavra “escrivente” - em vez de usar o vernáculo “escriba” ou “escrivão” –, e ao esta­belecer a conexão com criatura viva (“vivente”), o poema desig­na uma nova voz e um novo papel ao juiz: o de julgar seus pró­prios atos, analisar suas ações e profissão, a ponto de sentir que se torna “escrivente perjuro afonso” que “a juros condena / o ofício de si mesmo”.

Apesar de a herança cultural afro-brasileira manifestar-se tematicamente na poesia de Pereira, a preocupação com a pala­vra - sempre em diálogo com a sua tradição cultural e literária ­tem um lugar de destaque na sua produção poética. Para ele, as palavras e suas múltiplas significações, como água ou vento em constante movimento, são geradas pela potencialidade existente no infinito fluxo e refluxo de significados e no ludismo polissêmico das palavras faladas e escritas. Como “Avisos de Praça” exemplifica, o eu lírico assinala o “variável serviço do significado” e recomenda ao leitor usar lupa e martelo para pe­netrar “no sólido muro do texto” e ver além da miopia histórica. Essa parte do poema contém ecos literários que o aproximam de “Procura da Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade, em que o eu lírico interroga o leitor: “Trouxeste a chave?” Esse diálogo entre o texto de Pereira e o de Drummond faz parte de uma teia de referências e de um tecido de citações que exigem a atenção e a participação do leitor para que o significado se manifeste de maneira multidimensional.

A ênfase na pluralidade das palavras e na liberdade que o leitor tem de redirecionar os significados é uma das características mais marcantes da estética de Pereira. Por exemplo, no poe­ma “A Pessoa e o Termo” do livro Dormundo (1991), na expres­são “verbo devoluto” (1991, p. 254), ele teoriza a versatilidade da palavra - tanto como sujeito operacional quanto como obje­to receptivo do significado. O logos se torna vago, inocupado, terreno devoluto, que pode expressar e designar diferentes significados históricos, culturais e linguísticos.

No prefácio de O homem da orelha furada (1995), além de colocar em pauta a tematização de elementos africanos na poesia de Pereira, Iacyr Anderson Freitas aponta algumas estratégias poéticas utilizadas. Menciona “os deslocamentos sintáticos, as repetições, as assonâncias, as aliterações e os alargamentos semânticos”, bem como “a oposição à frase e ao discurso regular”, “as referências metalinguísticas” e os “determinantes linguísticos” que se tornam “agentes de indeterminação”. Refere-se também aos elementos autobiográficos do poeta (“os casos da infância, o trato da linguagem”)6 e à presença religiosa que grava “a profunda unidade do texto” (1995, p. 5-7).

O poema “Lapassi”,7 publicado em Águas de contendas (1998), configura algumas das características apontadas por Freitas. Por exemplo, notam-se referências a perdas pessoais, à ausência da “grande dama”,8 e a repetição de vocábulos como baile e dança, que se tornam um leitmotiv na poesia de Pereira:

Não vingou a sorte

aberto o coração.

Há muito não circula

a grande dama.

 

Sou de ver o baile.

Não danço

não compreendo

a coisa rara

devorada.

(PEREIRA, 1998, p. 105).

A tentativa de fugir do estigma de que existe uma possível “evolução” ou maturidade do seu material poético se materiali­za nos versos de “Lapassi”, que combinam o concreto da escrita (sinal gráfico) com a qualidade etérea do simbolismo da manhã/ tempo se esvaindo:

Não escrevo melhor que antes.

Escrevo.

Coleciono vírgulas

manhãs em fuga.

(PEREIRA, 1998, p. 105).

A escolha de vírgulas - um sinal de pontuação menos importante na escala de valores, muito mais singelo, por exemplo, do que um ponto final, uma exclamação, interrogação ou até mesmo um ponto e vírgula ou dois pontos - aponta para a dimensão imensurável das coisas simples e miúdas. As “manhãs em fuga” mostram a flutuação do significado, sempre adiado, sempre em movimento, em transformação, em “setecentas perguntas” que continuam a se multiplicar depois de descoberto o “sétimo véu”, a tessitura transparente das palavras, as camadas impermeáveis do significado:

Depois do sétimo véu

Setecentas perguntas.

Um só sentimento

ilude a fortuna.

(PEREIRA, 1998, p. 105).

O paradoxo desconstrucionista se manifesta na última es­trofe em que o poeta discute o enigma das palavras e uma certa impotência diante da impossibilidade de se encontrar em vocá­bulos para explicar o que é indefinível e “incapturável”. “Quem respira ao lado Não sabe o eterno enigma. O que sei está aqui incapturável”. (PEREIRA, 1998, p. 105).

Tal impossibilidade é demonstrada através de uma das marcas poéticas de Pereira: a ruptura, o estranhamento e os des­locamentos linguísticos que refletem também os conflitos gera­dos pela “devo ração da coisa rara”.9

Estudos teóricos sobre poesia costumam descrever “fe­chamento poético” como os modos e técnicas estilísticas utilizadas pelo poeta para garantir ao leitor a formulação de uma hipótese sobre o texto, derivar conclusões ou conceber o poema como uma estrutura total. De acordo com essa teoria, um “fe­chamento poético” bem-sucedido ocorre quando o leitor chega ao final do poema sem “expectativas residuais”,10 pois suas hipóteses foram confirmadas. Contrariando tais formulações, a poesia de Pereira, como exemplificada no poema “Lapassi”, cultiva o anticlímax, a ausência de fechamentos, de respostas e de expectativas residuais. Semelhante ao processo descrito na análise de “Missa Conga”, é uma poesia de interrogação, de busca do aprofundamento do significado poético que se manifesta através de deslocamentos, de abertura vocabular e das muitas “dic­ções”11 poéticas.

Numa conversa sobre o livro Ô lapassi & outros ritmos de ouvido, perguntei a Pereira por que a frequente dissociação entre o título e o corpo dos seus poemas, pois os títulos raramente cumprem a função esperada de resumir tematicamente o poema ou de se referir diretamente às manobras semânticas e linguísticas dos textos. Explicou-me que tem interesse exatamente em mostrar as fraturas e fissuras que existem no universo cultural afro-brasileiro e no mundo em geral: “[...] procuro em todos os textos, sempre, um pouco de desconcerto, de ruptura, de quebra” (Barbosa, 1998, p. 102). De modo que o deslocamento e a quebra - que Pereira chama de “caleidoscópio” dos sentidos - são muitas vezes gerados pela distância entre os títulos e os cor­pos dos poemas. Tal separação provoca um estranhamento e evita um roteiro ou um guia de interpretação para o leitor. Esses desdobramentos linguísticos indicam também a tensão que a poesia de Edimilson capta entre a densidade do mundo material - re­presentada no grifo, na parte mecânica da escrita, nas letras enfileiradas como formiguinhas12 - e a leveza poética transmutada na qualidade etérea do significado, sempre dançari­no, camaleônico e dissimulado nas dobras vocabulares.

No poema “Monjolo e Pilão”, também de O homem da ore­lha furada (1995), as referências botânicas, as citações zoológi­cas e as alusões à área rural (monjolo, pião, boi, ervas, melros, rosmanim, alecrim, sambaíba, milho, gameleira, águas e vespa) são usadas como metáforas e metonímias do processo da escrita e da própria biografia do poeta, enquanto escritor.

Não é pela cinza de um boi que pára o carro.

Não saí monjolo, mas as ervas-verbo me

disseram lição de sua senhora minha.

 

Sei a caligrafia da fome, os melros, cosias dos

homens? E as quê?

 

O rosmanim, o alecrim miúdo, a sambaíba? E

o milho plantado no gato? A gameleira em que

o espírito diamba especula?

 

Não nasci monjolo nem pilão: as herbas-verbo

Iluminaram. Montei e desmontei quimeras de

Meu pai, o que não sabia intuí pensando.

 

O tempo no dos sonhos e a senhora amou das

Águas. Digo instruído: menos careço mudar

bastão em vespa, mais me estrago nas mudas da palavra.

 

Eu morador desse lugar, sabedor de sabedoria,

filho da bênção.

Fome escrita de deus e do homem.

(PEREIRA, 1995, p. 14).

Refletindo sobre o processo de tornar-se escritor, a voz poética descreve o seu encanto com as palavras, ao mesmo tempo que se apresenta como aquele que é aprendiz e instrumento da poesia (“monjolo e pilão”). Sente-se abençoado por ter ido além dos sonhos que a tradição lhe legara, ao “montar e des­montar quimeras” e intuir o que não sabia, iluminando-se pelo encanto com as palavras. Sentindo-se instruído (“sabedor de sabedoria”), o poeta harmoniza-se com a procura do veio poéti­co: “Fome escrita de deus e do homem”. Aqui também, o mesmo jogo vocabular já mencionado torna-se evidente. Quando se pensa que o poema vai-se resumir, equiparando a escrita de “deus” com a do ser humano (e vice-versa), o verso omite a preposição, deslocando o sentido e deixando a palavra solta. Não é a semelhança que se instaura; antes, o que fica é a suspensão da analogia e o distanciamento, pois a escrita é “de deus” e o ser humano aparece como uma adição ao processo da inspiração.

“Santo Antônio dos Crioulos”, de Águas de contendas, apresenta um poema que analisa o seu labor e a sua arte. A voz textual discursa sobre a intangibilidade da essência poética enquanto síntese, apresenta a capacidade quase metafísica da poe­sia de captar “o rastro de carros indo, sem os bois”, descreve o desejo de agarrar o momento estético e reconhece que o poeta também tem que lidar com a concretude das palavras:

Há palavras reais.

Inútil escrever sem elas.

A poesia entre cãs e bichos

é também palavra.

 

Mas o texto captura é o rastro

de carros indo, sem os bois.

A poesia comparece

para nomear o mundo.

(PEREIRA, 1998, p. 2).

A definição de poesia como força motriz e autônoma - tal qual descrita no verso “o rastro de carros indo, sem os bois” ­- refuta conceitos normativos e canonizados que costumam relacioná-la ao sublime e à inspiração, discuti-Ia à luz da teoria da emoção e da expressividade, analisá-la como mero sistema catalisador de sentimentos ou explicá-la em termos de pureza ou essência. A poesia existe numa posição “entre”, é aquilo que separa, mas também une. Esse estar/ser preposicionalmente colocado, a posição intermediária da poesia (“entre cãs e bichos”), indica uma ambivalência, uma relação entre estado e lugar, tempo e espaço, presença e ausência, apontando também para evasão, mobilidade e intervalo.

Contrariando posições conservadoras, o poema aponta para a impossibilidade de se formularem definições palpáveis de poesia, pois esta é apreendida nos rastros das palavras, nas entrelinhas, nos rasgos, nas dobras da decifração, tornando-se um empreendimento de descoberta que se manifesta na dicção poética que o escritor escolher e na leitura que o leitor lhe der. Nesse caso, toda leitura torna-se uma leitura do processo ontológico do poema. É nas entrelinhas, nos entremeios, nos traços, nos rasgos e nas dobras que o momento poético “comparece para nomear o mundo”. O próprio título do poema remete o leitor ao estado de ser/estar no meio de raças, pois o Santo Antônio não é patrono dos pretos, nem dos brancos, mas dos crioulos.

Na primeira parte do poema “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”, publicado em O homem da ore­lha furada, há a mesma preocupação em assinalar os vãos e as brechas da poesia. É exatamente nos intervalos e nos entremeios das palavras que a poesia brota insurgente e obstinada, revelando-se acima de tudo rebelde e mutante. Por isso, Pereira associa a ambivalência da poesia com os Di-Kishis, figuras mitológicas de duas cabeças do folclore angolano.13

1

o nome diquixi se arrumou na sombra. É de

sua natureza habitar os vãos as eiras: entre o

que há-de-ser.

 

o lápis, mais que a vontade, quer o nome e

a coisa, a família da palavra num corpo. Esclarecido.

 

E se desejarem que eu testemunhe o viso visto,

só de meus olhos? Erma campanha. Eu e o

intervalo das coisas com outras onças por

dentro.

 

O diquixi dorme com uma cabeça. Se o escrevo

ganha tantas de resto. E se nunca o escrevo

terá deveras uma cabeça?

 

O engaste é de manhã, quando perguntarem. O

visto era vivo, visagem de carne e osso? Ou

liames de sua letra e sua vista mal cordatas?

 

Se diquixi nem fosse, mas coisa reles: fio e

pavio, tecido e teia - ainda assim, como furtá­-

lo em sua mudança.

 

Melhor escritura a que revela revel.

(PEREIRA, 1990, p. 29).

As perguntas que o eu lírico faz ao leitor implícito se assemelham às que apresenta em “Missa Conga”. A inquirição serta­neja/ metafísica que esse poema estabelece também se parece com o monólogo de Riobaldo em Grande sertão: veredas de Gui­marães Rosa. A semelhança não se manifesta apenas no uso das interrogações insistentes, nas dúvidas instauradas ou no questionamento de fundo ontológico. As similitudes aparecem ainda na escolha vocabular e na organização das sentenças, aspectos mais aparentes na terceira e na quinta estrofes.

Em Grande sertão, Riobaldo se desdobra num autoquestionamento que se manifesta através das perguntas inumeráveis que ficam sem respostas. Tenta também esclarecer o inextricável mistério do bem e do mal e as interseções da vida e da morte, do masculino e do feminino, do certo e do errado. Em “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho” vê-­se um desdobramento semelhante ao de Riobaldo, pois a voz poética tenta testemunhar a veracidade da sua experiência pes­soal, mas acaba questionando o que vira: “[...] o viso visto, / sóde meus olhos? Erma campanha”. Como Riobaldo, que se debate em dúvidas, que se serve da ambiguidade e da polissemia dos significados e que se ancora na decifração sempre questionada e adiada, a voz poética de “Instrução do homem” também busca rumos e estratégias de decifração.

A busca epistemológica analisa os mistérios e interrogações que se desdobram em forquilhas e apresentam enigmas indecifráveis. Esse processo hermenêutico, sentido na insistência do eu lírico em desvendar o sentido das palavras, estabelece uma relação dialética com a transmutação do significado e joga com a polissemia da palavra, o aspecto trickster do significado, representado no nome diquixi, “O diquixi dorme com uma cabeça. Se o escrevo ga­nha tantas de resto. E se nunca o escrevo terá deveras uma cabeça?” (PEREIRA, 1990, p. 29).

A segunda parte do poema “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho” também exemplifica a estética de Pereira ao apresentar uma voz poética debruçada sobre o desejo de analisar seu próprio labor e definir as características polissêmicas das palavras e dos significados deslocados.

2

Porém escrevo. Para cem cartas mil lagartas.

Quando a dúvida imagina sentidos a terra já se

viu madrinha de meus provérbios.

 

Verbos provados, de camisa, colete e sapato.

Assim como no ir à missa à procissão para ser

mais amado do que o santo.

 

Quem não risca não sabe os rios da palavra, o

labirinto de haver escrito sem estremecer. Eu

mesmo me avio: parceiro da chuva, do capim

cebola preparo um livro de cortar.

 

E se me perguntam: ainda não é manhã? É quando

eu no verbo faço manhã ou noite. A treva é

a escrita nem mais, nem pois. Deus não entortou

linhas porque escrevia canhoto?

 

Medo só o da escrita com leitor viajante. Mas

se há leitor de lidas, a e b são histórias infernas.

 

Com modos e truques de ouvir.

(PEREIRA, 1995, p. 30).

Nessa parte do poema, Edimilson usa uma das suas marcas poéticas (subverter conotações já estabelecidas para certas palavras e expressões) para questionar significados estáveis na língua e no imaginário cultural e religioso. Ancorando-se no provérbio “Deus escreve certo por linhas tortas”, a voz poética transporta o verso “Deus não entortou linhas porque escrevia canhoto?” Para o nível simbólico ao questionar a ideia de Deus como escritor ou artesão absoluto.

A dúvida inscrita leva o leitor a reexaminar a infalibilidade de Deus. Transmite também a ideia de uma divindade mais próxima à condição humana, um Deus mais capaz de compreender e simpatizar com os erros humanos, porque também se desvia da norma, é uma divindade canhota, inábil e desajeitada. Assim, ao questionar a perfeição atribuída a seres celestiais e dialogar com a tradição literária brasileira, a voz poética de “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho” estabelece um paralelo com o “anjo torto” de Drummond (“Poema de sete fa­ces”), que também não se conforma aos parâmetros canônicos e bíblicos.

Há outros diálogos intertextuais e outras ressonâncias para esse deus “imperfeito”. No capítulo “A Ópera” de Dom Casmur­ro, Machado de Assis descreve um narrado que acusa Deus de ter contribuído para que haja catástrofes na natureza, injustiças sociais, discriminações raciais e outras desigualdades no mundo. O narrado considera que, por Deus não se ter comprometido a velar por sua criação e por não ter supervisionado os projetos do Diabo, acaba contribuindo para a existência de grandes calamidades no mundo. Ainda que o texto de Pereira e o de Machado sejam diferentes tanto em estrutura quanto em conteúdo e gênero, os dois autores criticam e questionam a ideia de um Deus onipotente, absolutamente perfeito, destro, ancorado no conceito do “referente supremo”.14 Ao reescrever o provérbio (“Deus escreve certo por linhas tortas”) e transformá-lo numa pergunta de tom irreverente e audaz, mas também brincalhão (“Deus não entortou linhas porque escrevia canhoto?”), o eu lírico de “Instrução do homem”, como o narrador de Dom Casmurro, subverte significados linguísticos canonizados e transgride normas teológicas.15

A voz poética de “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho” convida o leitor viajante a embarcar no processo de criação com o autor e a pontuar o poema com a sua própria intenção semântica. Enquanto a invocação de elementos naturais (lagartas, terra, chuva, capim cebola, manhã e noite), o uso de provérbios populares e a preocupação com a escrita constituem poderosos sintagmas, a interação que o poema se esforça por estabelecer com o leitor gera uma outra rede de significados flutuantes. O eu lírico reconhece o leitor como um participante na produção de significados do texto, delegando-lhe o status de co-criador da manifestação estética do texto. Por isso, a palavra “lidas” (“Se há leitor de lidas, a e b são histórias infernas”) pode ser analisada tanto como particípio do verbo ler, quanto como leituras mais ou menos ligeiras ou, ainda, como ato e efeito de lidar e trabalhar o texto.

Na terceira parte do poema, o poeta polemiza indireta­mente a teoria estruturalista, ao apontar para a arbitrariedade da relação significante/ significado e enfatizar a pluralidade de significados que o vocábulo diquixi invoca.

3

O nome diquixi escrevo e diquixi não é. Mas

cutelo e cutelo também não fica sendo.

 

O tudo ponho em lápis, fileira formiga de

letras certas. E não me alegro porque não

chegam miúças na terra pós-chuva.

 

Escrevo diquixi e não vinga: outra coisa é

diquixi escrito. Tudo somemos.

 

Entorto linha bem procedo e a escrita morde.

E se escrevo com letra de não grafar: o ledor

resolve?

 

Com Antão em sua caverna tento.

 

O bicho no entanto.

(PEREIRA, 1995, p. 31).

Nessa parte, o poeta escolhe o termo “ledor” (forma me­nos usada de leitor). Semelhante ao “escrivente” de “Avisos de Praça”, por associações semânticas e fonéticas, “ledor” transmite, de uma maneira mais enfática, o ato de trabalhar a interpretação do texto. A posição do poeta é a de “entortar a linha” e deixar que a “escrita morda”. Cabe ao “ledor” encontrar a polissemia dos significados no que for escrito com “letra de não grafar”. Esse constante renovar-se do logos é reiterado em “Sumi­douro”, pequeno poema publicado em Águas de contendas (1998, p.32). À medida que o poeta vai somando a poeticidade da linguagem, os “alargamentos semânticos” (a que se referira Iacyr Freitas) vão-se desdobrando. Os sentidos das palavras surgem entre os traços ortográficos antigos (“griphos”), que representam o passa­do e a contemporaneidade do presente em que tudo é adicionado:

Tudo somemos.

 

O gripho16

Escolhe arreios de viagem.

Esse poema dialoga também com a segunda estrofe da primeira parte de “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”, em que se conferem uma independência e uma autonomia à escrita, à criação poética, metonimicamente representada pelo lápis:

O lápis, mais que a vontade, quer o nome e a coisa, a família da palavra num corpo. Esclarecido.

Primando pela busca da pluralidade de sentidos, nutrindo­-se na ambivalência que a escolha de palavras se encarrega de criar, a voz poética brinca com as potencialidades conotativas que a palavra “esclarecido” estabelece. Ao separá-la do resto do verso, colocando-a entre dois pontos, o poeta enfatiza que “esclarecido” tanto pode referir-se ao labor da escrita, representado pelo lápis, quanto pode significar claro, iluminado, explicado, elucidado, desvendado, dotado de ilustração, ligando-se assim ao penúltimo verso do poema: “Com Antão em sua caverna tento”.

A referência a Antão - herói religioso, eremita/cenobita do século IV, protótipo do ser recluso que vivia em ermidas primitivas, espírito ébrio de mistério - tem na palavra “esclareci­do” um elo de ligação, pois os chamados “padres do deserto” eram considerados seres iluminados (Cf. STRAND, 2001, p. 1). Se como Antão em sua caverna, o poeta tenta “esclarecer” o leitor, entortando linhas e escrevendo com “letras de não grafar”, o processo de decifração da poesia apresenta filamentos e ramificações que põem em xeque uma convivência pacífica entre o autor, o leitor e a escrita. Por isso, o último verso torna opacos a luminosidade e o esclarecimento atribuídos ao poeta-antão no verso anterior, ao explicar: “O bicho no entanto”. Assim, se o eremita da caverna pode ser interpretado, por um lado, como um esclarecido que produz textos e seguidores, por outro pode ser também relacionado a um modo primitivo de viver, um bicho enclausurado.

A poesia de Pereira mostra que o poeta não é necessariamente o eremita esclarecido, o poema não é um instrumento de redenção e o leitor nem sempre se torna o exegeta ou decifrador do enigma poético. O que existe, de fato, é um estado de contenda, em que autor e leitor perambulam pelos vãos e eiras do artesanato poético, conscientes da impossibilidade de demarcar ou ancorar o logos que se faz sempre mais devoluto, vago e sujei­to a escorregadelas semânticas.

Nas três partes de “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”, o espaço aberto para a participação do leitor leva o poema a rejeitar a possibilidade de um significado fixo ou de uma única interpretação “correta”. A transmutabilibidade e a pluralidade da palavra desencadeiam um processo no qual a poesia toma as rédeas e a escrita escolhe como deseja embarcar no processo criativo do autor. Os significados encobertos do poema lutam em campo aberto com o pro­cesso de decifração da linguagem. O poema torna-se, assim, uma esfinge tão enigmática e desafiadora (“Decifra-me ou te devo­ro”) quanto os diquixis.

Portanto, como discutido, a produção poética de Edimilson imprime estratégias de uma linguagem reinventada na qual vai-­se descortinando um palimpsesto cultural. Se a sua poesia apresenta uma heterogeneidade de momentos históricos e representa práticas culturais de origem africanas em Minas Gerais, também oferece uma investigação linguística e uma estética apura­da. Por isso, enquanto o imaginário popular e o falar rural de Minas Gerais gozam de destaque na escrita de Pereira: a produção poética dele não se torna um mero veículo reprodutor desses elementos. Pelo contrário, seus textos articulam vários discursos cujos ecos são duplicados pelos interstícios de uma linguagem dilatada, grávida de significados. É uma linguagem que passeia por labirintos, que se faz através de rupturas e desloca­mentos, gerando sempre tensão e contenda entre palavras. Os seus poemas anunciam uma representação simbólica das culturas afro-brasileiras, ao mesmo tempo em que apontam para o processo individualizado e fragmentado da cristalização da escrita. Sua poesia indica que, apesar de o desejo epistemológico estar muitas vezes “preso dentro do circulo hermenêutico”,17 a fluidez da linguagem permite uma abertura para a construção de novos significados linguísticos, históricos e culturais.

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Disponível em <http://geocities.com/padresdodeserto>. Acesso em 8 fev. 2001.

 

1 Essa expressão foi retirada e adaptada do verso “O dicionário das forquilhas com tantos verbos” da primeira subdivisão (1.Bichos e plantas) do poema “Livro da Irmandade com as palavras sobre vivas à devoração do monstro esquecimento”, que Edimilson ele Almeida Pereira publicou em O homem da orelha furada (1995) e em Dançar o nome (2000).

2 As análises dos poemas “Três tambores sagrados”, “Missa conga”, “Tiradentes”, “Avisos de praça” e da segunda parte de “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”, que integram este estudo, são baseadas em um artigo que inicialmente publiquei em inglês, sob o título “Strategies of poetic language in afro­mineiro discourses”, em Luso-Brazilian Review, v. 37, n. 1, p. 65-82, 2000. Traduzi, revisei e reorganizei partes selecionadas daquele trabalho, acrescentando-lhes no­vos posicionamentos. Acrescento ao presente estudo a análise de quatro outros poemas (“Santo Antônio dos crioulos”, “Sumidouro”, “Lapassi” e “Monjolo e Pilão”) e as partes 1 e 3 do poema “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”.

3 Edimilson analisa esse ritual em estudo ainda inédito, “Os tambores estão frios: herança cultural e sincretismo religioso no ritual do Candomble”.

4 A tradução é minha.

5 O autor utiliza a ortografia antiga.

6 Se a teoria literária de linha estruturalista e semiótica rejeita análises que se baseiam na leitura do texto através de ligações biográficas, para evitar os abusos que tais leituras podem gerar, a crítica pós-modernista abriu espaço para análises do texto em relação a aspectos biográficos, criando um diálogo entre as experiências pessoais dos autores e a sua criação literária.

7 Essa palavra aparece também no título de um dos seus livros (Ô, lapassi & outros ritmos de ouvido). Edimilson de Almeida Pereira explica o significado da palavra “lapassi” numa entrevista que me concedeu: “[As pessoas da zona rural] raramente terminam a palavra com consoante. Colocam sempre uma vogal no final da palavra. Aí virou a palavra 'lapassi'. Nada mais, nada menos que 'o rapaz' do português padrão”. (PEREIRA, 1998b, p. 105).

8 A “grande dama” provavelmente se refere a Núbia Pereira de Magalhães Gomes, sua parceira do projeto Veredas Sociais, que faleceu em 1994. Num diálogo via internet com Edimilson, apresentei-lhe a possibilidade de essa “grande dama” ser interpretada como uma pessoa ou a própria poesia ou, ainda, a possibilidade de fusão das duas. Edimilson aceitou a minha interpretação, mas acrescentou que também vê essa “grande dama” como a morte, “[...] que passa por nós como uma mulher que dança num baile, ou como a poesia que se move na página. As três (mulher, poesia e morte) são irmãs no que se refere ao apelo que fazem ao imaginário e à experiência do poeta” (Entrevista inédita, efetuada em 7 de outubro de 2001).

 

9 Edimilson explica a “coisa rara” como aspectos essenciais da convivência humana, “tais como a solidariedade, o respeito, o afeto, a serenidade, a compreensão, a alegria, a liberdade, [...] que vão escasseando à medida que forjamos um modelo de vida excessivamente pragmático, competitivo e materialista” (Pereira, entrevista por e-mail, 7 de outubro de 2001. Texto inédito).

10 Vide “fechamento poético” (poetic closure) e “expectativas residuais” (residual expectations) em Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics, organizada por Alex Preninger et al; p. 964-965.

11 Uso “dicções”, aqui, no sentido utilizado por Jussara Santos (1998). Vide bibli­ografia.

12 Vide o verso ‘O tudo ponho em lápis, fileira formiga de letras celtas’ do poema “A Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”, em O homem da orelha furada, 1995.

 

13 O significado dos Di-Kishis ou diquixis está delineado no artigo “Inumeráveis cabeças: tradições afro-brasileiras e horizontes da contemporaneidade”, que Edimilson publicou, em parceria com Núbia, em Fonseca, (Org.). Brasil Afro-Brasileiro (2000, p.43-44)

 

14 Cunhada por Jacques Derrida, essa expressão (ultimare referent) refere-se ao conceito de logocentrismo. Vide a introdução de Hazard, Adams e Leroy, Searl em CriticaI theory since (1965).

15 Os relacionamentos intertextuais examinados entre a obra de Edimilson de Almeida Pereira, João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Machado de Assis não têm como objetivo validar os poemas de Edimilson ou discutir questões de influência, impacto ou dívidas literárias. Servem para demonstrar os pontos de articulação da tradição literária, visando a estabelecer um diálogo literário entre esses autores.

 

16 O poeta escolheu a ortografia antiga.

17 A questão do epistemológico preso no círculo hermenêutico foi desenvolvida por Hommi Bhabha em O local da cultura, p. 248.

* Maria José Somerlate Barbosa é doutora em Literatura Luso-Brasileira pela Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill e Professora Adjunta da Universidade de Iowa. Dedica-se aos estudos de gênero e raça na literatura e na cultura brasileira, distinguindo-se pelos trabalhos sobre a obra de Clarice Lispector (Clarice Lispector: des/fiando as teias da paixão, EDIPUCRS, 2001 e Mutações Faiscantes/Sparkling Mutations, GAM, 1996) e por estudos afro-brasileiros como Recitação da passagem: a obra poética de Edimilson de Almeida Pereira (Mazza, 2009). Organizou uma coletânea de ensaios sobre representações do envelhecer na cultura e na literatura de países de expressão em língua portuguesa (Passo e compasso: nos ritmos do envelhecer, EDIPCRS, 2003) e publica extensivamente em coletâneas, periódicos e revistas especializadas nos Estados Unidos e no Brasil.

 

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Diáspora e afro brasilidade

Riverson Silva*

A negritude é um elemento fundamental e presente na obra de Nei Lopes, que não se restringe apenas à música, mas também em um consistente trabalho literário, o qual é permeado pela temática negra no que tange à religião, à música, às paixões, ao idioma, e aos conflitos peculiares do afro-descendente.

Em seu livro Incursões sobre a pele, de 1996, Lopes escreve sobre a condição do negro, seu passado, seu futuro e seu presente, tanto no Brasil como em Cuba e no próprio continente ancestral. Retrata os abusos e crueldades da escravidão e suas sequelas. No entanto, emprega um tom otimista e esperançoso ao falar de um povo que se formou através da luta pela sobrevivência e pela liberdade. Também se faz presente a força mística representada por elementos da religiosidade afro-brasileira.

Nesse livro, o autor apresenta uma divisão temática, tendo na primeira parte o título “Incursões sobre a pele”, na qual desenvolve aspectos étnicos da afro descendência, relacionados à história e à identidade do povo negro e de seus ancestrais trazidos à força da África:

Sinto a pele
Como um fato
Da cor do Homem
Da História
Da Luta e da Vitória
(1996, P.21)

Nesses versos, o sujeito de enunciação se assume como negro, consciente de sua origem, sente que sua pele traz as marcas inseparáveis da memória de seu povo, as marcas de derrotas e conquistas, das quais se sente participante.

Uma das características da poesia de Nei Lopes é a denúncia social e política, que se encontra presente, por exemplo, em “História para ninar Cassul-Buanga”. Nesse poema, o eu lírico descreve a chegada em África de uma “nau de velas caras”, navegadas por homens de “mãos de ferro” que irão capturar seus irmãos. “Amontoados, confundidos, fundidos, estupefatos”, os negros encontraram-se nos porões do navio, enquanto viam sua dignidade sendo deixada para trás, ao mesmo tempo em que seguiam para uma terra desconhecida. No trecho escolhido, o eu lírico relata ao seu filho como seus antepassados foram arrancados brutalmente de sua terra natal, aprisionados e privados do respeito devido aos seres humanos, para serem transformados em mão-de-obra escravizada em terra alheia:

 Chegamos:

Nosso suor foi o doce sumo de suas canas
– nós bagaços.
Nosso sangue eram as gotas do seu café
– nós borras pretas
Nossas carapinhas eram nuvens de algodão,
Brancas,
Como nossas negras dignidades
Dadas aos peixes.
Nossas mãos eram sua mão-de-obra.
(1996, p.23-4)

O trabalho forçado ao qual foram submetidos os negros trazidos da África configura-se como vital para a formação de riqueza para “eles” – os homens brancos, à custa de suor, sangue e perda da liberdade. Mas, apesar disso, diz: “vivemos, Cassul. E cantamos um blues! / E na roda um samba / De roda / Dançamos”. Desta forma, o poema ressalta que os africanos e seus descendentes não só resistiram à adversidade, como também construíram a esperança, seguindo a orientação da divindade suprema do culto afro: ”Meninos como você, Cassul-Bunga, / Hão de sonhar um sonho tão bonito... / Porque Zâmbi mandou. E está escrito” (1996, p.23-4).

O descaso e a exclusão também são enunciados no texto de Nei Lopes. Em “Primeiro poema do negrinho”, o abandono das crianças negras e a negligência da sociedade para com o seu futuro são evidentes. Eles são deixados sempre na fila de espera, à margem das ações sociais. Sozinho, somente o infinito é capaz de escutar o grito desesperado do negrinho e respondê-lo: “– Espera!”. Eco que paralisa o menino e a sociedade em que se encontra.

E desespera o negrinho
E grita de novo o grito
Que o infinito segura
E retribui feito um eco:
– Espera!
(1996, p.33)

Em outro poema, é pelo viés da comunhão dos afro-descendentes que Nei Lopes demonstra sua esperança em um mundo melhor, no qual as desigualdades serão eliminadas e os ideais unificados, e “um outro Homem e verdadeiro” surgirá como fruto de um “amor negro como a África de teus olhos”, em um lugar onde os excluídos não mais terão motivos para o pranto:

Nosso mútuo enlevo ante o sorriso dos negrinhos
Nossa conjunta lágrima ante a fome dos negrinhos
Estarão em nós, em ti, em mim
Em nosso verdadeiro Homem.
Só que não haverá lágrimas nos olhos dos negrinhos
Pois que os Homens se terão dado as mãos.
(1996, p.28-9)

A religiosidade afro-brasileira está presente em vários textos, nos quais o autor utiliza um rico vocabulário africano, próprio dos cultos de terreiro. No poema “Ogum, iê”, por exemplo, há uma louvação ao orixá em versos extremamente musicais, no qual sua métrica sugere a melodia dos atabaques:

Ele sopra e o ferro derrete
Ele é um, ele é três, ele é sete
Ele corta, ele mata, ele mete
Ele é um, ele é três, ele é sete...
(1996, p.22)

Nesse texto, o eu lírico louva o orixá senhor da guerra e protetor dos que trabalham o ferro. É perceptível o valor dado à religiosidade africana e à musicalidade dos versos presente nas cerimônias dos terreiros. O orixá ferreiro/guerreiro é chamado por seus outros nomes na última estrofe: “Alabedé, Omini, Ogunjá, Uarri, / Akorô, Mejê, Onirê / Ferreiro com guerreiro / Fazem: / - Ogum, Iê”, numa evidência do resgate da cultura e da religiosidade de origem africana.

Em “Poema cortando quiabos”, o fato religioso se funde à culinária. O alimento ganha caráter devocional e sagrado, explicitando a importância da comida como parte do ritual de oferendas feitas às divindades:

É comida votiva de Xangô
E de Ibêji,
Aos quais preparo com esmero
Hoje, 30 de setembro, uma oferenda.
(1996, p.61-3)

Em “Multiplicação dos cantos”, o eu poético, tal como Jesus Cristo, vai até às pessoas simples e necessitadas. Enquanto o Messias do cristianismo promovia a multiplicação dos pães e dos peixes para saciar a fome dos homens, o eu lírico promoverá a multiplicação da palavra – “De um só poema, fiz uma dezena” – para alimentá-los de esperanças:

Os homens do cais pediram mais.
Peguei uma palavra
Que um deles jogara na espuma
Fiz cem cantares
E fui aos teares, 

Lá, os tecelões gostaram demais
E pediram bis. Dado um fio
De matéria têxtil, fiz mais de mil.
(1996, p.72-3)

Depois de proferir seu canto-poema, o sujeito de enunciação parte em direção a outros lugares de memória, quando é interpelado por Iemanjá. A divindade ordena que ele retorne ao cais, onde seu falar era realmente necessário: “Aqui não preciso dos cantos que cantas / porque nos meus olhos já mora a esperança / enquanto que os olhos dos homens são tão nevoentos... ! / Volta com teus versos!” (1996, p.72-3)

Noutro momento, a palavra poética aparece como forma de resistência do eu enunciador negro à cultura do colonizador. Ele faz investidas contra a tirania da língua e da cultura hegemônica através de suas “granadas lexicais”. E assim, segue a tocar o bumbo, mantendo “Portugal no corpus / e Africanamente...”:

Semeio nos campos
Nestas verdes campinas
Granadas lexicais
Como se fossem minas
Contra a hegemonia
E a lusitania
Dos barões gerais...
(1996, p.31)

Já na subdivisão denominada “Poemas do Ogro”, a temática dominante é a feminina, sendo os versos dedicados à mulher, não apenas à afro-descendente, mas também à mulher branca, que é comparada ao Ogro, personagem da mitologia semelhante ao bicho-papão. Nesses poemas, o autor fala sobre a paixão e o poder de sedução da mulher que o domina, assusta e escraviza.

Em “O cão à caça”, o eu lírico se compara a um caçador em papel invertido: de caçador ele passa a ser presa de sua caça que, após seduzi-lo, passa a rejeitá-lo:

E a mulher branca me foge
Com chalaças, com negaças
Após prometer no aceno
Do riso um tanto obsceno
Certo deleite aos sentidos.
(1996, p.43)

Já em a “Invencível Amada”, Nei Lopes compara a mulher à histórica Armada Invencível, a grande esquadra de Felipe II, rei da Espanha. O eu lírico traça seu plano para a conquista da mulher, e tal como Sir Francis Drake, deseja derrotar a força naval inimiga:

Uma duas estocadas
Uma duas investidas
Como o verso ariete
E eis-te, nau frágil,
Abalroada
Abordada
Saqueada
Avariada
Grossa e doce avaria.
Marinha enfim desarmada
Num mar de rosas, Maria!
(1996, p.47)

Maria, a mulher sem lógica e assexuada: “Amada mulher sem nexo / Armada mulher sem sexo”, é destituída de seus atributos femininos para que se evidencie a força que possui. Essa mulher, que se configura como uma ameaça e é aparentemente invencível, depois do contato com o “verso ariete” do poeta, torna-se “nau frágil”...

Outro aspecto importante da poesia de Nei Lopes é a forte presença das questões referentes à diáspora negra. Em “Dacar, Novembro de 72” as lembranças da África são aguçadas pelos sons dos tantãs que ainda ressoam na mente do eu lírico pelas “flores e tecidos” que desafiam o esquecimento; pelo “cheiro de chão seco / Odor de dor antiga”; pelo “livre som do corá”. Nesse jogo de lembrança que se faz presença, o sujeito questiona o seu pertencimento identitário ao refletir sobre possíveis efeitos do retorno a Terra Mãe.

A solidariedade e a identificação com o continente africano são expressas nos textos que compõem a parte intitulada “Poemas de Angola”. Neles, Nei Lopes demonstra que a pátria dos seus antepassados permanece viva em seu sangue, “contaminado”, “infectado” pela magia e encanto daquela terra. Em “Angola arde”, o eu poético exalta a herança angolana e relata as lutas e glórias de um povo sofrido, escravizado, mutilado, mas resistente e vitorioso.

Angola
É uma gazela correndo no meu sangue
É uma fêmea de Anopheles darlingi
Me picando a alma
E inoculando o vírus de uma febre
Que me incendeia e faz
Tremer eternamente
Num delírio de paz e igualdade.
(1996, p.93)

A temática e a perspectiva afro-brasileira também se encontram nos contos de Nei Lopes. Em Casos Crioulos, de 1987, percebemos o relato do sujeito afro-descendente a partir de um ponto de vista bem humorado, deixando de lado a escrita mais explicitamente política, e privilegiando a festividade do povo negro. A denúncia do preconceito e o resgate de uma identidade historicamente recalcada também estão presentes nestes contos, que tratam de aspectos da natureza do afro-descendente carioca, sempre permeados pelo samba e a cultura negra em geral.

Os traços cariocas – a ginga, o modo de ser, o humor – são inscritos de forma brilhante em “A volta do velho”, conto em que o narrador relata o seu passeio com um idoso que vivia numa cadeira de rodas por locais como botecos, pagodes e estádios de futebol. Por não ter avisado a família do velho, o personagem é acusado de sequestro, e tece sua justificativa:

Agora: o que eu não posso aceitar é esta acusação de sequestro, doutor! Eu sei que o Velho já tem mais de noventa anos... Tá certo que eu não tenho nada com isso se a família dele só está esperando ele fechar pra cair em cima da herança, feito uns urubus. Mas é que eu sempre achei uma tremenda sacanagem ele ficar ali na varanda só olhando – coitado! – a nossa curtição no Boteco do Tuninho, querendo participar e ninguém levando. Pô, já pensou?! Há mais de sessenta anos ele não ia nem na esquina! (1987, p.16)

A interpretação das ações do personagem-narrador como uma tentativa de crime se dá devido à idéia preconceituosa de que o negro é sempre mal intencionado, incapaz de agir de forma desinteressada e honesta. A camaradagem vista como coisa de malandro, que passa o dia vadiando nos botecos cantando samba sem fazer nada.

No conto “Criado com a madrinha”, o narrador é um homossexual negro que tem um sonho em forma de filme com a madrinha rica que o criou. Nessa lembrança onírica, a vida do personagem central é mostrada como enredo. Da casa da madrinha à prisão, os acontecimentos são intercalados por dizeres preconceituosos, que tentam afirmar a inferioridade dos negros, fadados a serem sempre marginalizados por sua própria natureza:

As primeiras cenas mostravam ela me pegando no berçário da Casa da Mãe Pobre, entrando, comigo no colo, no seu Rolls Royce e me levando pra ser gente, pra ser um grande homem, pra me dar do bom e do melhor no casarão da Gávea Pequena. E o fundo musical – o carro já subindo a Estrada Velha em meio àquele verde estonteante – era o “Suplício de uma Saudade”, com Orquestra de David Rose. “ Love is a many splendored thing...” Que lindo!!!

(Hmmm? Negros? Criá-los, depois vendê-los!)

(1987, p. 18)

Nesse mesmo conto, o narrador, após fugir da casa da madrinha rica por ter sido flagrado em uma relação homossexual, relata as cenas que mostram os rumos marginais que sua vida tomou e os acontecimentos seguintes da família de criação:

As imagens agora são confusas: minha madrinha participando da Marcha da Família e eu surrupiando a bolsa de uma madame na feira do Catete; meu padrinho, de pijama, dirigindo com punho de ferro uma empresa estatal e eu fazendo meu primeiro ganho, com um berro de brinquedo, num ônibus 410; meu padrinho numa lista tríplice para escolha de Ministro das Minas e Energia e eu recebendo uma Pomba Gira num terreiro de Nilópolis; minha madrinha fazendo caridade na Feira da Providência e eu recebendo aplicação de silicone num sobrado da Mem de Sá; meu padrinho envolvido no escândalo do estouro de uma Financeira e eu em cana na 3ª DP na rua Santa Luzia; meu padrinho indo pra Cleveland botar três pontes de safena e eu arrebentando a boca do balão, free again, como madrinha da bateria dos Acadêmicos do Engenho da Rainha; a Dindinha e o Dindinho num cruzeiro pelas Bahamas e eu viajando da Água Santa pra Ilha Grande.

(Preto, quando não caga na entrada, caga na saída)

(1987, p. 20)

O conto é todo ele construído por intercalações opositivas entre as ações dos padrinhos brancos e ricos e as do negro que abre mão do apadrinhamento e opta pela marginalidade, daí advindo um efeito ao mesmo tempo cômico e dramático. Nesse jogo de contrastes, a fala do narrador é entremeada por enunciados preconceituosos colocados entre parênteses, que reproduzem o discurso discriminatório instalado no senso comum, construindo assim um vigoroso contraponto dialógico. O fato do padrinho rico ser bem mais criminoso do que o afilhado, mas “absolvido” devido à sua condição socioeconômica, remete à crítica social contundente e, ao mesmo tempo, irônica. E a opção sexual – que remete à figura emblemática de Madame Satã – aparece como elemento agravante no julgamento sofrido pelo negro. Junto com a marginalidade, ela é avaliada como comportamento desviante diante dos valores morais hegemônicos, ao mesmo tempo em que os crimes do padrinho são encobertos numa forma de apadrinhamento cínico comum entre as elites.

Consta que o formalismo sufocante e a imposição de se tornar “branco”, existentes no mundo jurídico, fizeram com que Nei Lopes abandonasse a profissão de advogado. No conto “Data vênia”, o autor expõe esses “percalços” da profissão, através de um advogado negro, que, assim como o escritor, não abre mão de suas raízes étnicas. E em meio a um animado bloco, ele relata a uma cliente a tirania da aparência sobre um advogado afro-descendente e sambista:

Não, Dona Alzira! O chato da profissão não é só a gravata. O pior –preste atenção – o pior é a linha de com-por-ta-men-to. Eu explico: Pra gente comer, beber, vestir, calçar, ou seja, pra gente defender um qualquer, os clientes têm que acreditar na gente. Mas pra acreditarem na gente, os clientes não deixam que a gente seja a gente mesmo. E aí, adeus esquina, adeus boteco, adeus guia no pescoço, adeus morcela na ponte do Cascadura, adeus angu no Miguel, adeus piquenique de caminhão em Sapetiba... Um surdão igual a este aqui, então, Dona Alzira, respondendo, centralizando, sincopando, cadenciando, salgueirando... um surdão desses, então, ainda mais eu assim, sem camisa, cheio de truaca, cheio de sensibilidade, chiiii... nem se fala, Dona Alzira! (1987, p. 24)

A denúncia do preconceito na profissão ocorre também quando o advogado releva uma certa falta de seriedade do ofício, ao relatar fatos cômicos ocorridos no tribunal e a preferência de um oponente por advogados brancos: “E tem também aquela do adversário do meu cliente que dizia que o advogado dele era melhor que eu porque tinha escritório na cidade e era branco...” (1987, p. 25)

A identidade afro-descendente já conhecida de suas músicas também é encontrada nos seus trabalhos literários, pois Lopes é um autor que descreve o negro em suas diferentes facetas. A sua escrita se modifica a ponto de contemplar a tensa realidade excludente do negro e a alegria de um povo que aprendeu a festejar a sua cultura e o legado herdado por seus ancestrais. No entanto, a inscrição dessa identidade, a denúncia da discriminação e o combate ao colonialismo estão presentes em ambas as produções. Em suas poesias, Lopes utiliza a história e a condição social do negro como elemento de crítica à realidade em que o mesmo se encontra, e como base para projeção poética de um futuro promissor para os descendentes do continente africano em meio à diáspora. Já em seus contos, emprega com maestria o humor essencialmente carioca ao tratar do cotidiano negro do Rio de Janeiro, em que situações cômicas evidenciam de forma debochada o preconceito racial que marginaliza e oprime o afro-brasileiro. E essa comicidade também funciona como instrumento de resistência e de valorização de suas raízes.

 

Referências Bibliográficas

LOPES, Nei. Casos crioulos. Rio de Janeiro: CCM Editora, 1987.

LOPES, Nei. Incursões sobre a pele. Rio de Janeiro: Atrium, 1996.

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* Graduando em Letras pela UFMG

 

Texto para downlaod

Do emparedamento solitário aos planos de voo:

caminhos em Paulo Colina.

 

Gustavo de Oliveira Bicalho*

O sentimento de solidão (...) não é uma ilusão
– como às vezes é o de inferioridade  –,
e sim a expressão de um fato real:
somos, na verdade, diferentes.
E, na verdade, estamos sós.
Octavio Paz,
O Labirinto da Solidão

Consta de 1980 a publicação de Fogo Cruzado, primeiro livro de Paulo Colina. Naquele ano, o escritor paulista completava 30 anos de idade e fundava, junto aos escritores Oswaldo de Camargo, Abelardo Rodrigues, Luiz Silva (Cuti) e o argentino Jorge Lescano, o Grupo Quilombhoje, cujo objetivo central era discutir “o papel do negro na Literatura Brasileira” (COSTA, 2007). A simultaneidade dos acontecimentos – lançamento do livro e fundação do grupo – carrega consigo, sem dúvida, pouco de acaso.

Sabidamente, são marcas do século XX (as quais, aliás, se prolongam durante o séc. XXI) as dificuldades enfrentadas por escritores de origem afro-brasileira desejosos de publicar seus primeiros livros. Além de terem de lidar com o crivo rigoroso das editoras, como todo autor de primeira-viagem, tais escritores enfrentam, ainda, o desafio de driblar barreiras histórico-sociais relacionadas a um preconceito de cor altamente disseminado, metamórfico e complexo. Da dificuldade de financiamento da edição à resistência do público leitor em relação a uma escrita que experimente a presentificação, no texto, de elementos culturais ligados à descendência africana, os obstáculos multiplicam-se, relegando à condição de exceção empreitadas individuais de publicação. Nesse terreno áspero, as associações entre escritores podem ser vistas como caminhos alternativos para se chegar à publicação e aproximar-se do leitor. O Grupo Quilombhoje, através principalmente da série Cadernos Negros, foi, na São Paulo dos anos oitenta, a empreitada coletiva de maior sucesso, nesse sentido, permitindo o aparecimento de um número considerável de escritores afro-brasileiros1. Mais tarde, muitos deles viriam a publicar obras individuais, ainda que por meio de edições independentes.

Como provocação para os caminhos críticos que seguiremos neste trabalho, vale ressaltar alguns aspectos problemáticos da relação entre o autor e o Grupo, os quais servirão como provocação para os caminhos críticos que seguiremos neste trabalho. Se Paulo Colina tece uma rede literária importante com os demais fundadores do Quilombhoje, por outro lado, essa relação não será estável, apresentando divergências no que concerne a projetos estéticos e ideológicos.

O autor só colabora com textos para duas das edições da série Cadernos Negros (números 2 e 3, de 1979 e 1980, respectivamente). A partir de então seguirá seus próprios caminhos, sem deixar de conservar, entretanto, fortes relações com a coletividade. Alguns dos primeiros passos desse projeto aparecem marcados desde o pequeno texto de autoapresentação escrito por Colina e publicado em Cadernos Negros 2, do qual destacamos um trecho:

Escrevo porque há que se despertar a consciência adormecida e preguiçosa de nosso povo, porque há que se cutucar com punhais/palavras os marginalizados que são meus personagens (e que provavelmente – não por falta de empenho de minha parte – nem venham a ler meus textos), porque há que se tentar sacudir a classe média, que só tem monstros sagrados e empoeirados e best-sellers que em nada condizem com a nossa realidade, em suas estantes, uma realidade que fingimos não ver, e porque entendo que a literatura não deveria pertencer a uma determinada classe social e/ou raça. (COLINA, 1979, p. 103)

Em linhas gerais, as preocupações de Paulo Colina vão ao encontro das preocupações do Grupo Quilombhoje e com a proposta da série. As ideias de “despertar a consciência” de um povo, usar a palavra como arma de resistência, fazer contraponto a uma literatura classista e racista, estão presentes em ambos e são bons indicativos dos sentidos explicitados pelo nome “Quilombhoje”. No entanto, as divergências não demorariam a aparecer e, embora não tenham sido capazes de criar uma inimizade entre Paulo Colina e o restante do Grupo, parecem ter sido suficientes para provocar um afastamento e deixar suas marcas na literatura do autor. Por ocasião de uma comunicação, realizada no I Simpósio Internacional de Estudos Sobre Jorge Amado, Paulo Colina elabora um texto no qual chama a atenção de seus interlocutores para as causas dessa dissidência. O escritor relembra uma reunião com certo “grupo de negros (ou afro-brasileiros)” (COLINA, 2000, 232), o Quilombhoje, aparentemente:

O dono do apartamento, universitário, professor, dispara: ‘– Acho que nós não devemos ler os escritores brancos, para não absorver seus vícios, seus cacoetes, suas visões estereotipadas’. A sala é ampla. Atrás dele, uma estante abraça livros do chão ao teto; de parede a janela. Títulos vários. Romances, contos, ensaios, novelas, teatro, poesia crônica, história, sociologia. Autores diversos. Países diversos. África Negra e Branca, Europa, Américas, Drummond, Fernando Pessoa, James Baldwin, Joyce, Poe, Lima Barreto, Cesário Verde, Machado de Assis, Jorge Amado, Faulkner, Cortazar, Borges e tantos. Miro através dos óculos do anfitrião. Os aspirantes, concordando. Assim, também, demais: penso. A cor da minha pele não pode me limitar, nunca. Tenho certeza de que meu quintal não é o mundo, mas o mundo precisa estar no meu quintal. Alegando outro compromisso, saio. (COLINA, 2000, p. 232).

O incômodo acima demonstrado, em relação às limitações e delimitações propostas e acatadas pelos escritores e “aspirantes” do Quilombhoje, parece ser uma constante ao longo da carreira literária do autor, do início dos anos oitenta até o fim de sua vida. Daí a necessidade de tomar novos rumos: “Literatura, propostas/perspectivas de trabalho, luta, vida: aquele grupo que me espere. Eu caminho pra frente!”; “Sigo. O tambor, nas costas. Quem vier atrás, que se esqueça das cancelas.” (COLINA: 2000, p. 237).

Nos textos citados, assim como em outros de seus trabalhos, o autor se auto define como essa espécie de griot, ligado à tradição oral africana, cuja arte consiste em contar histórias capazes de envolver a comunidade de onde e para quem fala, estabelecendo com ela uma atitude crítica. No caso de Paulo Colina, porém, a relação que o griot estabelece com seu espaço-tempo é paradoxalmente marcada pela solidão. Se o autor não se identifica, por um lado, com as diretrizes literárias do Grupo Quilombhoje, por outro, as ruas da metrópole paulistana, que o miram com os olhares do preconceito e da violência, tampouco lhe trarão referências identitárias. Permanecerá, assim, “território ermo / plantado na esquina do mundo” (“Para tocar no rádio”, in: COLINA: 1984, p. 18); solitário, à margem da margem, como o Cruz e Souza de Emparedado (1961, p. 646-664). Diante disso, podemos ver, em Colina, a imagem de um escritor atento à necessidade constante de romper com as barreiras sufocantes que limitam sua existência, sobrevoar as muralhas que se levantam, ressignificadas, na metrópole pós-moderna.

Feitas essas considerações, nosso trabalho se ocupará, daqui a diante, em pontuar os caminhos seguidos ficcionalmente por Paulo Colina, nesse ambiente singular de criação. Destacaremos três momentos de sua produção literária, representados por três de seus livros. Para isso, seguiremos os caminhos temáticos do emparedamento e da solidão, vinculados à problemática da constituição da identidade étnica.

1 – Fogo Cruzado, emparedamento e marginalização

O livro de contos Fogo Cruzado vem a público em 1980, conforme menção anterior, e conta com prefácio de Fábio Lucas. Nele, o escritor e crítico literário consegue enxergar, com propriedade, as tentativas de realização do já comentado projeto literário apresentado por Paulo Colina em Cadernos Negros 2: a busca de uma “mirada participante” (LUCAS apud COLINA: 1980, 10), em oposição a um olhar distanciado; o engajamento crítico com a temática da marginalidade; o contraponto a uma literatura presa à realidade social das camadas média e alta da sociedade, principalmente a urbana.

Não podemos concordar, porém, com o teor das tentativas, operadas pelo prefaciador, de estabelecer a ligação entre a literatura de Colina e seu contexto social2. Em nossa opinião, Lucas distancia-se do texto do autor de Fogo Cruzado, ao atribuir a ele a função de inversão de posicionamentos sociais binários, tais como: primeiro mundo x terceiro mundo, ricos x miseráveis, donos de terra x servos de terra, negros x brancos, índios x brancos. Cremos que a literatura de Paulo Colina não está interessada em simples inversões binárias de ponto de vista, com o intuito de revelar uma sociedade urbana dual, que “duplica as velhas relações de poder” (LUCAS apud COLINA, 1980, p. 8). A diversidade de personagens, enredos, conflitos e recursos narrativos encontrados nos contos apontam, ao contrário, para uma flexibilidade das categorias exclusivas de classe, etnia, gênero, sexualidade, sem deixar de abrir espaços para a construção de identidades e posicionamentos.

Cremos que a posição de Lucas no prefácio, ainda que sem essa intenção, acaba por conformar-se com um olhar fascinado da pós-modernidade sobre a diferença e a marginalidade, o qual, somente nos últimos anos do século XX, seria notado pela crítica cultural como problemático. O ensaio de Stuart Hall, Que “negro” é esse na cultura negra?, de 1998, toca diretamente nesse ponto e apresenta um trecho emblemático, no qual Hall critica o olhar binário sobre a marginalidade:

Não quero sugerir, é óbvio, que podemos contrapor à eterna história de nossa própria marginalidade uma sensação confortável de vitórias alcançadas – estou cansado dessas duas grandes contranarrativas. Permanecer dentro delas é cair na armadilha da eterna divisão ou/ou, ou vitória total ou total cooptação, o que quase nunca acontece na política cultural, mas com o que os críticos culturais se reconfortam. (HALL, 2006, p. 320).

Acreditamos, como mesmo Hall parece admitir, que o uso de contranarrativas foi inevitável e de suma importância para o discurso das minorias, durante, pelo menos, a segunda metade do século XX. Não se pode negar, porém, que o caráter de homogeneização desses discursos acaba por emudecer algumas diferenças.

A leitura de Fogo Cruzado permite perceber justamente o ruído das vozes dessas diferenças emudecidas. Os contos buscam o ponto de vista de sujeitos em condições extremas de emparedamento, a despeito de uma simples inversão de lados do jogo “ou/ou”, de que fala Hall. O título do livro é significativo nesse sentido: as personagens encontram-se, no mais das vezes, encurraladas e esquecidas entre a violência de duas ou mais forças em embate – situação que é, frequentemente, geradora de profunda angústia. O conto de título homônimo, “Fogo Cruzado”, apresenta a visão de um foragido da polícia, encurralado em um barraco, ciente da eminência de sua captura ou morte:

Ele sabia que ali era o fim da linha; o último refúgio. Desde o dia em que eles chegaram de surpresa em seu barraco e ele conseguiu fugir pela janela do quarto, tinha ido para todos os lugares que considerava seguros, porém eles sempre o encontravam. (COLINA, 1980, p. 13).

O emparedamento, aqui, é completo. No “último refúgio”, a personagem não possui qualquer tipo de aliados, ninguém em quem possa confiar: está absolutamente isolado. No corpo desumanizado da personagem Boneco – visitada, no IML, em uma digressão da narrativa –, a personagem principal parece entrever seu destino, que acaba por concretizar-se ao final do conto: a polícia cerca o barraco e, através de uma bomba de gás lacrimogêneo, força sua saída. Eis o desfecho trágico:

Inutilmente, esfregou os olhos com as costas das mãos, sem contudo largar as armas. A vista submersa vermelha, semicerrada. Através de um pequeno filamento horizontal, conseguiu visualizar a porta que caiu com o pontapé. Correu atirando a esmo feito mil fuzileiros e por poucos segundos ainda foi capaz de ouvir e sentir o fogo cruzado. (COLINA, 1980, p. 16).

A situação extrema de emparedamento, como se vê, é levada às últimas consequências. A única saída encontrada pela personagem é a de um salto em direção à morte e sua única referência passível de identificação é um corpo já desprovido de qualquer humanidade – fator intensificado pelo nome, Boneco – e marcado pela violência policial.

A quase totalidade dos contos de Fogo Cruzado carrega essa ausência de saídas e de possibilidades de identificação harmônica com o elemento humano, características do emparedamento solitário. “A Flor, de presente”, “Eles pensam que ninguém sabe”, “Montanha Russa”, “Pancho e Valdo Kidi” e “Meu Artista Preferido” são cinco dos contos que exploram nitidamente esses elementos. Os três primeiros seguem a linha do conto que dá nome ao livro, apresentando a violência como elemento que irrompe de situações extremas de emparedamento. “Eles pensam que ninguém sabe” é, inclusive, uma reescrita de "Fogo Cruzado", com a introdução de um novo narrador: uma testemunha, que assiste por acidente à morte do foragido e vive encurralado pelo medo de que os policiais o descubram e o silenciem, matando-o. “A Flor, de Presente” é construído com a estrutura clássica do conto policial, a partir de notícias do tipo fait divers3, mas no ponto de vista de um narrador-criminoso, que assassina sua amante – Flor, uma prostituta, “piranha de luxo”, nas palavras do narrador –, ao perceber que a havia perdido para o poder econômico de um outro homem. Atacado pela solidão inquietante, trazida pela perda da amada – sua referência absoluta – o narrador a mata, esquarteja-a, e envia seus pedaços, em três caixas, para o novo amante. Já “Montanha Russa” mostra a relação desigual entre duas solidões em uma cela de presídio. De um lado, o preso Fogaça vive o paradoxo entre o respeito ao “código-de-honra” da razão e a incapacidade de reter seus desejos sexuais pela personagem homossexual Cizinha (Sidney): “Nada que possa lhe sufocar a vontade do corpo; esse desejo incontido, animal” (COLINA, 1980, p. 37). De outro, Cizinha, a desejar o afeto de Fogaça e obrigado a ser usado sexualmente por ele e pelos outros presos. Ao fim do conto, o resultado de uma relação sexual marcada pela violência entre as duas personagens é apresentado:

Quando o sol, penetrando pelas grades da janela, iluminou o cubículo, um vulto, totalmente coberto por um lençol, se estremecia num pranto silencioso. (COLINA, 1980, p. 39).

“Pancho e Valdo Kidi” e “Meu artista preferido” apresentam um diferencial, em relação aos quatro primeiros: trazem crianças como narradoras, as quais, na ausência de uma referência humana, buscam-na em outros seres: dois cães, no caso do primeiro, e vários retratos de artistas, no segundo. A emulação da linguagem – com vasta exploração de recursos vocabulares e ortográficos do registro oral – e imaginação infantis introduzem o leitor no jogo psicológico das crianças que narram, dificultando a percepção imediata dos referentes da narrativa. Citamos um parágrafo de “Pancho e Valdo Kidi” abaixo, para que se perceba:

Sabi, eu gosto muito dos dois. Gosto muito do Pancho i gosto muito do Valdo Kidi também. Agora, si tivé qui fala a verdadi, o Pancho é mais legal. Pra tudo quanto é lugar qu’eu vô ele vai junto. Topa brinca di qualqué brincadeira qu’eu arranjo. O Valdo Kidi não. È muito sério. Tá sempre mudo, di cara invocada i nunca anda co’a genti. Some di manhã i volta só di noite pra jantá i durmi. Ele é igualzinho meu tio Ordo qui quase nunca cunversava cum nóis. (COLINA: 1980, 52).

A descrição física e psicológica dos cães pela criança aproxima-se ao máximo de características humanas, de modo que, apenas nos últimos trechos do conto, o leitor poderá ter certeza de tratarem-se de animais, e não pessoas. Algo semelhante ocorre em “Meu artista preferido”, com a diferença de que, neste conto, os cartazes de artistas são apresentados como objetos para o leitor, desde o começo. Porém, o grau de humanização (ou personificação) da imagem dos artistas é altíssimo, o que pode ser evidenciado pela referência a eles pelo primeiro nome: Tarcísio (Meira), Jerry (Lewis), Regina (Duarte), Betty (Davis), Roberto (Carlos), Ney (Latorraca). Ambos os contos apresentam um ponto relevante em comum: as duas crianças tiveram seus pais levados pela polícia (“os home”), depois de humilhados na frente dos filhos. Este parece ser o ponto detonador do conflito que conduz a narrativa, nos dois casos.

Não nos cabe, aqui, traçarmos uma análise psicanalítica desta coincidência. No entanto, é importante notar seu papel na situação de emparedamento das duas personagens. No primeiro conto, embora os dois cães sejam o assunto central, é a ausência do pai que definirá os rumos da narrativa e seu desfecho: o menino termina o conto assumindo, com si mesmo e com seu interlocutor, o compromisso de, junto a Pancho e Valdo Kidi, proteger seu pai contra a polícia, “si fô priciso”. No segundo, o assunto central é a mãe, mas a prisão do pai é também determinante. Depois de o terem levado, a menina que narra o conto tem seu espaço de circulação restringido ao interior do quarto da mãe. No entender desta última, seria perigoso para a menina transitar naquele “curtiço fedorento”, longe da proteção do pai. Confinada ao quarto, cercada apenas da TV e das fotografias de artistas coladas nas paredes, a menina acompanha o definhamento progressivo de sua mãe até a morte. A menina se pergunta, então, o porquê de sua mãe estar daquele jeito:

Já chamei, chacoalhei e ela num responde e nem se mexe. Ta tão fria. Num sei o que acontece. Também num sei onde ela guardou a chave da porta. Acho que vou trepar numa cadeira, abrir a janela e gritar pra ver se alguém lá fora me ajuda, porque eu já pedi pro Tarcísio e pro Ney e eles só sabem ficar lá na parede, sorrindo (COLINA, 1980, p. 61).

Esses dois contos introduzem discretamente um elemento diferencial em Fogo cruzado. Embora apresentem situações extremas de solidão, vislumbram, através da capacidade imaginativa das duas crianças, a possibilidade de superação, ainda que provisória, desse emparedamento. E é justamente a exploração e ampliação significativa desse elemento que observaremos em Plano de Voo, segundo livro publicado pelo autor, em 1984.

2 – O voo dos pássaros da noite

Plano de voo é dividido em três partes, das quais a terceira, que leva o nome do livro, é mais extensa e com maior volume de poemas. A primeira leva o nome significativo de “Viveiro” e delineia, com o teor sintético característico da poesia de Paulo Colina, o terreno de onde e sobre o qual o poeta versifica. Para isso, apoia-se na metáfora recorrente em todo o livro – e talvez a mais importante para sua unidade – da coletividade negra (ou afrodescendente) como grupo de aves enjauladas, desejosas de levantar voo. Nos oito poemas de “Viveiro”, Colina poetiza a angústia do sujeito emparedado, inquieto frente ao “medo que me acovarda/ a tesoura que me retalha/ e poda” (COLINA, 1984, p. 13). A essa poda indesejada, os poemas articularão, como em todo o restante do livro, o espaço minado, labiríntico e, sobretudo, contraditório da metrópole pós-moderna:

ainda que
            por fim
                     nos reste
essa lua embebida
       em silêncio e estrelas
recortada na poça
              da calçada
essa baba de sol e vento
respingando pelos porões
(...)
te direi sim
te direi sim
      (COLINA, 1984, p. 14)

Embora a cidade seja, por vezes, estetizada como reedição atualizada dos porões de navios negreiros, os labirintos entrecortados das ruas guardam a promessa de liberação do desejo. Por esse caminho, o amor representa, nos poemas de Plano de voo, um lugar de realização “contra-lei” da liberdade almejada, ou, como quer Octavio Paz, com quem Colina traça intenso diálogo:

o amor [é], sem se propor a isso, um ato antissocial, pois cada vez que consegue ser realizado, viola o casamento e o transforma no que a sociedade não quer que ele seja: a revelação de duas solidões que criam por si mesmas um mundo, que quebra a mentira social, suprime o tempo e o trabalho e se declara autossuficiente. (PAZ, 1992, p. 179-180).

Essa função antissocial do amor já vinha, aliás, sendo ensaiada em Fogo Cruzado, por contos como “Ronda” e “Esta noite, Gardel”. No entanto, esse encontro de duas solidões será muitas vezes notado, pelo poeta, como insuficiente e impotente, frente às duras grades/paredes que cercam a cidade-viveiro:

Isolados,
embora juntos,
continuamos arrastando nossas almas
ao encontro dos ecos do coração
                                    emparedado
alegando inocência.
                       (COLINA, 1984, p. 16)

A necessidade de ganhar os céus torna-se, então, iminente. Passa a ser necessário, ao pássaro negro, preparar suas asas, que “só precisam de fibras/ um pouco mais fortes” (COLINA, 1984, p. 15) e alçar voo, rompendo as barreiras do viveiro e “Do tempo das sombras”, nome dado à segunda parte do livro. Nela, ressaltamos a riqueza do poema “Pequena balada insurgente”, em que se canta o mapa sombrio do universo de confinamento das aves negras, ao mesmo tempo em que insiste, com vigor, na exigência do voo. No início do poema, Colina aproxima-se do conhecido texto de Jean Paul-Sartre, Orfeu Negro, em que o filósofo fala do tom insurgente dos poemas presentes na Anthologie de La nouvelle poésie nègre et malgache, organizada por Léopold Senghor. O filósofo abre seu ensaio indagando: “O que esperáveis que acontecesse, quando tirastes a mordaça que tapava essas bocas negras? Que vos entoariam louvores?” (SARTRE, 1963, p. 89). Enquanto Colina fala do medo estampado na cidade de que

essas palavras amordaçadas
a força de covardes ameaças postadas,
de placas impunes que cantam pneus
                                 em meio ao dia
(cheio de compromissos, como sempre)
ou a tarde
              (tão cansada!)
invadam, anômalas,
comandadas por um súcia de merda,
nossas janelas
ou lacrem nossas portas
ao raiar da incerteza.
                      (COLINA, 1984, p. 25)

Esse medo da revolta do outro é relacionado pelo poeta à “alegoria crua” das grandes cidades, que insistem em manter uma relação de continuidade entre “senzala favela e sarjeta” (COLINA, 1984, p. 26), como espaços de figuração do emparedamento. Diante disso, Colina termina seu poema alertando, impassível:

Há que se decidir, senhores,
pois mesmo entre as noturnas sombras
                              desse imenso véu,
as asas negras de meu nariz
continuarão insistindo em ganhar
                o espaço aberto dos céus.
                      (COLINA, 1984, p. 26)

A terceira parte do livro, Plano de Voo, ocupar-se-á de investigar poeticamente as possibilidades do grande salto rumo aos céus, tendo sempre em mente a reflexão feita no poema “Primeira Regra de Voo”: “Quando sonhamos/ com o horizonte,/ a precisão é fundamental”. Assim, o que observaremos em poemas como “Pulsações”, “Interiores”, “Plano de Voo”, “Solitude”, “Força” ou o provocativo “Cantando conto uma lenda (Desenredo)”, é uma incessante busca de caminhos alternativos por onde o voo possa ser realizado, sem que se caia, novamente, nas arapucas de um emparedamento solitário.

Não há, nessa parte como nas outras, respostas conclusivas, traçados definitivos de uma solução capaz de rasgar o véu que cobre o viveiro dos pássaros negros. As buscas esbarram sempre em novas paredes do labirinto da solidão (PAZ, 1984) representado pela cidade. O sujeito sangra, como sangra todo o corpo do "Emparedado" de Cruz e Sousa, sem que por isso aceite abrir mão de sua liberdade: “era mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na Solidão” (SOUSA: 1961, p. 651). O diálogo entre os dois autores, intenso em Plano de voo, é indicativo de uma mesma ferida, ainda não cicatrizada, cutucada pelas frustrações constantes do cotidiano: “Os dias gotejam/ gotas de vida” (COLINA, 1984, p. 38). De um fim de século a outro, Colina identifica o mesmo sangramento de um corpo negro em busca de reatar os laços com sua ancestralidade, desfeitos “a golpes de correntes e ondas” (COLINA, 1984, p. 60). Corpo de aves negras, enjauladas e cobertas pelo véu da noite, que, “mesmo sangrando de nostalgia e espaço” (COLINA, 1984, p. 61), ousam “erguer sua voz às alturas”, mas têm seus gritos abafados por altas paredes. E é a partir dessa identificação que Colina traçará, no poema “Cantando conto uma lenda (Desenredo)”, sua crítica mais dura ao carnaval, como expressão da cultura popular negra:

Com um pouco de sorte,
Podemos vê-las algumas horas por anos,
Em tempos de festa e vento,
Quando saem do viveiro
Tecido de uma maldição secular
A trinar canções em iorubá, kimbundu, ronga...
                                   (COLINA, 1984, p. 61)

Como se vê, o sujeito de Plano de Voo não pode conciliar com formas de expressão que precisem da licença da razão para se fazerem ouvir, abafadas por entre as paredes de uma avenida. Seus planos são de amplidão, realização absoluta do voo noturno, sob o signo do desejo.

A seguir, será possível notar como, em A noite não pede licença (1987), esse sujeito ampliará seus caminhos, ao identificar a múltipla natureza imagética da noite. Ora verá nela o lugar ideal de realização de sua existência, ora a identificação com a cor de sua pele, ou ainda, o tempo de reflexão dolorosa sobre o emparedamento solitário, através das caminhadas noturnas pela cidade.

3 – A noite não pede licença, nem mesmo o tempo.

A noite não pede licença (1987) estabelece com o livro anterior uma relação mais de continuidade que de ruptura. A inquietação frente ao sufocamento, à solidão e ao sentimento constante de perda é, também aqui, recorrente, como no poema “Sina”:

romper no grito
madrugas inertes
este vão de carinhos estranhos
ao que tudo sonhei

impossível aceitar
nas palavras
o destino das pedras
a espera sem hora marcada

às vezes ferro em brasa
solidão
         (COLINA, 1987, p. 16)

O trecho do poema acima poderia estar em Plano de voo, sem que isso prejudicasse a unidade do livro. Porém, no conjunto dos poemas de A noite não pede licença, o poema integrará um novo plano de sentidos. Se os poemas do livro de 1984 priorizavam a busca do traçado minucioso e subjetivo de um caminho rumo à libertação do “pássaro/ louco/ que se bate/ há tanto tempo” (COLINA, 1984, p. 35) dentro do eu-lírico, nas reflexões poéticas do livro de 1987 o lugar que atravessa o voo das aves negras ganhará destaque. A noite figurará, dessa forma, como véu que cobre a pele negra (DuBois, 1999), filtrando o olhar de quem se encontra dentro e fora dele:

o que sobra para a noite
                  que veste nossa pele
encruzilhadas
velas sob céu fechado
muros como varais de sonhos
                (COLINA, 1987, p. 22)

Há um tom ligeiramente pessimista em A noite não pede licença. O sujeito vê-se cercado por muros labirínticos, olha para o céu e o encontra fechado para voos. Mesmo o apelo à ancestralidade, visto, por vários escritores afro-brasileiros, como uma saída possível desse terreno de dúvidas e solidão, é colocado sob o signo da dúvida, em poemas como “Negros”:

convivência possível
no passar cabisbaixo
no abraçar as origens
                    do medo
(cera pingando na retina
de nossas encruzilhadas)
no saudar de costas
e essa porta
que nem para o mundo dá
               (COLINA, 1987, p. 49)

Nos últimos dois trechos citados, a encruzilhada – lugar de encontros de caminhos distintos e de ligação com os orixás, nas religiões afro-brasileiras, via Exu - aparece do lado de dentro do véu, mediando de maneira enigmática as relações entre o sujeito poético e o entorno problemático. A melancolia observável nesses poemas – como em muitos outros –, nascida com o pingar cotidiano das velas acesas sob céu fechado, é fruto da realidade sufocante que embaça a retina do olhar ancestral, tornando extremamente complicadas as tentativas de realização do desejo. É o que observamos, por exemplo, no poema “Turning point”:

ainda que seu corpo
               insinue caminhos
todas as portas da cidade
                           fechada
ainda que sua voz desalinhe
               algodão línguas cetins
o eco carcomido de grilhões
                   intimidando o passo
                  (COLINA, 1987, p. 29)

Aqui, a temática do amor impotente retorna, implacável. Embora possamos deparar-nos com versos como “resistência/ codinome amar”, ou “senhor de todas as tormentas/ enquanto saboreio teu batom”, não faltam imagens fortes nas palavras de Colina para lembrar-nos dos seculares cortes que impedem a realização plena do desejo amoroso:

ao seu turno
                  porém
uma navalha cumpre
                              amarga
sua metódica tarefa
           (COLINA, 1987, p. 37)

O amor seguirá, assim, condenado à fratura cotidiana e como objeto do sonho utópico de restabelecimento da unidade perdida. Colina parece finalmente encontrar, em A noite não pede licença, a maturidade poética capaz de delinear, com precisão, o mapa lírico das relações entre a falta causada por um amor fraturado, “pássaro de asa quebrada” (COLINA, 1987, p. 59), e as caminhadas noturnas pela cidade, de bar em bar, já encenadas em Fogo Cruzado e Plano de voo. Há, sem dúvida, algo do Baudelaire de As Flores do Mal nesse caminhar embriagado e solitário, carregado de spleen, pelas ruas da metrópole; algo da figura do flâneur, fixada no conhecido ensaio de Walter Benjamin (1994). Basta destacar alguns fragmentos do texto Benjaminiano para que se tenha a clara dimensão do alcance de tal interpenetração:

O melhor artifício para capturar, sonhando, a tarde nas malhas da noite é fazer planos. O flâneur faz planos. (BENJAMIN, 1994, p.194).

Na figura do flâneur prefigurou-se a do detetive (...) Convinha-lhe perfeitamente aparentar uma indolência, atrás da qual, na realidade, se oculta a intensa vigilância de um observador que não perde de vista o malfeitor incauto (BENJAMIN, 1994, p. 219).

A cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto. O flâneur, sem o saber, persegue essa realidade (BENJAMIN, 1994, p. 203).

Ora, se os trechos acima são exemplares dos pontos de diálogo entre o sujeito dos poemas de A noite não pede licença e a figura do flâneur, há neles uma série de dissidências igualmente relevantes e capazes de nos levar a um conjunto de reflexões finais sobre os caminhos aqui traçados.

O flâneur faz planos para capturar a tarde nas malhas da noite. Muitas vezes, como Balzac, escreve de noite e dorme de dia. Planeja caminhadas (promenades) pelo espaço banalizado (para não dizer fetichizado, ou transformado em mercadoria) das ruas. Na Paris moderna, vê diluídos os limites antes rígidos entre exterior e interior e transforma “as ruas em interiores” (BENJAMIN: 1994, 192). Já o sujeito de A noite não pede licença, tal como o esboçado em Fogo Cruzado e Plano de Voo, já se encontra capturado de saída pela tarde – identificada nos textos como os golpes do cotidiano - e veste a roupagem da noite.

O caminhar perdido do flâneur, dá lugar, em Colina, à ronda alerta às permanentes ameaças, por meio de versos curtos como: “narinas alertas/ rondo perdigueiro a cidade”. Ou ainda em poemas como “Pressentimento”:

A noite sobressaltada
por sirenes me sacode.

Reviro os bolsos a procura do passe
que me permite, São Paulo, cruzar ruas
em latente paz.
                        (COLINA, 1987, p. 52)

O poema acima, que inicia e termina com uma crítica ao caráter falacioso da abolição, assinada em 13 de Maio, deixa claro como o ser negro na cidade de São Paulo do final do século XX opõe-se ao ser flâneur, na Paris, capital do século XIX. Se, para Benjamin, a figura do detetive está prefigurada na do flâneur, a do marginalizado em estado de exceção está presentificada nas vozes dos textos de Colina. Vozes vigiadas pelos olhares racistas de uma população que enxerga, por trás do véu, a imagem de um criminoso em potencial. Assim, a cidade, realização do antigo sonho ocidental do labirinto, como bem nota Benjamin, elege seus marginais e a eles fecha todas as portas. Emparedados, resta a eles vagar pelas ruas, anti-flâneurs, na eterna busca da superação da ferida secular, como no poema “Vídeo Game”:

No labirinto
de cimento armado da cidade
a Noite tromba
em busca de alternativas
                      possíveis.
           (COLINA, 1987, p. 55)

Nesse videogame urbano, em que o aviso de game over (fim de jogo) parece sempre já anunciado, Paulo Colina insiste em realizar jogadas obstinadas, minuciosamente planejadas, contra o emparedamento solitário:

jamais aceitei passivo as contradições
do que chamam destino

sigo porém criança velejando
contra ventos e marés do mundo

a angústia é uma roleta russa
                    (COLINA, 1987, p. 42)

Resta-nos indagar, por fim, até que ponto essa bala da angústia não foi fatal para o autor, colocando um ponto final em seus projetos literários. A última publicação do autor, Todo fogo da luta, livro de poemas, consta de 1989 e, provavelmente, teve circulação mais restrita. Pelo menos três outras obras do autor permanecem inéditas, à espera de publicação: o livro de contos Senta que o dragão é manso, a coletânea de ensaios, artigos e crônicas Águas-fortes em beco escuro, e Entre dentes – drama em um ato para negros. Paulo Colina morre em outubro de 1999, aos quarenta e nove anos, vítima do mal de chagas. No entanto, “para alguns dos amigos mais próximos, a causa mortis foi outra: Colina morreu assassinado pelo desemprego, que o consumia há quase dez anos” (HAJE, 2009). Aliados à consciência desses fatos, os textos de Paulo Colina obrigam-nos a repensar criticamente o lugar relegado não só ao escritor afro-brasileiro (ou negro), no campo literário e na sociedade contemporânea, como também aos cidadãos marginalizados, condenados a situações limítrofes de emparedamento solitário.

Referências

BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1997. 3ª ed. p. 185-236.

CADERNOS NEGROS 2: contos. São Paulo: Ed. dos autores, 1979.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1984. 4ª ed.

COLINA, Paulo. A noite não pede licença. São Paulo: Roswitha Kempf, 1984.

____________. Fogo Cruzado. São Paulo: Edições Populares, 1980.

____________. Plano de voo. São Paulo: Roswitha Kempf, 1987.

____________. Um breve tambor nos olhos. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE JORGE AMADO, 1., 1992, Salvador. Um grapiúna no país do carnaval. Salvador: Edufba, Casa de Palavras, 2000. p. 231 - 250.

COSTA, Aline. Uma história que está apenas começando. in: RIBEIRO, Esmeralda, BARBOSA, Márcio (orgs.). Cadernos Negros, três décadas: ensaios, poemas, contos. São Paulo: Quilombhoje, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2008.

HAJE, Bahiji. E lá se foi Colina... “nos ombros largos da noite”. in: Homenagem a Paulo Colina. disponível em: http://www.pco.org.br/joaocandido/colina/e_la_se_foi_colina.htm. Acesso em: 20 de Outubro de 2009.

HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura negra? In: Da diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG, Humanitas, 2006.

PAZ, Octavio. O Labirinto da solidão e Post Scriptum. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

SARTRE, Jean-Paul. Orfeu Negro. In: SARTRE, Jean-Paul. Reflexões Sobre o Racismo. 3. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963. p. 89-125.

SOUSA, Cruz e. Obra Completa. Rio de Janeiro: José Aguiar, 1961.

Notas 

1 Dos escritores lançados pela série Cadernos Negros, no final dos anos setenta e ao longo dos anos oitenta, podemos citar, como exemplos: Jamu Minka, Henrique Cunha Jr., Márcio Barbosa, Miriam Alves.

2 O procedimento crítico de Fábio Lucas parece buscar os elementos “externos” (sociais, no caso), que tornam-se “internos” à estrutura do texto, procedimento bem caro à crítica sociológica brasileira (ver CANDIDO, 1984).

3 Fait divers é um termo francês que se refere, em geral, a notícias que não se encaixam nas categorias convencionais dos jornais, por se tratarem de assuntos de exceção, excêntricos, na maior parte das vezes. A literatura policial explorou amplamente esse formato para a construção de suas narrativas.

* Gustavo de Oliveira Bicalho é professor, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, da FALE-UFMG, Mestre em Letras e Doutorando em Estudos Literários pela mesma instituição, e membro da Comissão Editorial do LITERAFRO – Portal da literatura afro-brasileira.

 

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