Eu sou a Preta. Era minha madrinha, a tia Carola, uma irmã querida de minha mãe, quem me chamava assim. Ela sempre chegava com um lencinho na cabeça e uma sacola de palha cheia de novidades, que eu abria sentindo cheirinho de boneca nova, de joguinhos para brincar, de roupa bonita, de livrinhos de história com perfume de papel colorido.

— Preta, vim te buscar!

As férias traziam com ela flores que eu nunca tinha visto e montanhas onde o mundo ficava embaixo, depois das nuvens. Numa dessas vezes, esqueci minha cordinha de pular em cima de uma pedra. Ficava triste lembrando dela sem mim, sozinha. Às vezes imagino que ela está lá até hoje.

Mas o melhor de tudo eram os aniversários, quando a tia chegava para ajudar minha mãe a preparar delícias.

— Preta, olha o bolo, os pastéis, a calça-virada, a cuca e os canudinhos que fiz pra ti!

Porém, o grande amor que nascia do coração de tia Carola ficou principalmente na minha lembrança de certos dias tristes em que ela chegava com sua sacolinha de carinhos. E só ela sabia me chamar de Preta desse jeito que ficou tão doce. Olha que engraçado: quando outros diziam que eu era preta eu achava estranho.

— Eu não sou preta, eu sou marrom. Cor de doce de leite, como a canela, como o chocolate, como brigadeiro. Cor de telha, cor de terra. Eu sou assim... da cor dos olhos dos meus pais!

E fui aos poucos descobrindo que eu era a Preta marrom, uma menina negra. Ser negra, como me percebem? Ou como eu me percebo? Ou como vejo e sinto me perceberem? Tenho um amigo que só às vezes é preto. Que fica preto quando vai à praia no verão. Mas ser negro é muito mais do que ter um bronze na pele.

Como é, afinal, ser uma pessoa negra? Eu só respondo quando responderem como é que é ser uma pessoa que não é negra.

Uma vez, sentei debaixo da parreira de uva, na casa da vó Lídia. Fiquei olhando para o alto, as bolinhas cheias de suco por dentro. Eram muito saborosas (quando eu não descobria formigas entre os gomos). A vó Lídia sempre ficava por ali, arrumando suas plantinhas, enchendo o mundo com cheiro de terra molhada. Nossa conversa era ela perguntar pouco e eu responder pouquinho. Mas tinha um amor que grudava a gente, uma na outra. Lá estava ela, a vó linda com sua cor negra, cabelo branquinho, olhos serenos, mãos fortes e uma perna manca. E aí eu perguntei:

— Vó, quem inventou a cor das pessoas?

Isso eu perguntei porque havia aprendido que uns são amarelos, outros brancos e outros vermelhos. Ela disse:

— Eu só respondo se tu me disser quem inventou o nome da cor das pessoas.

E eu fiquei lá, pensando e chupando uva, e ela continuou plantando suas sementes

(Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998. p. 9, 12, 13)

Nyame era uma princesa do reino medieval de Gana. Seu povo acredita que os mortos habitam um mundo que é a imagem espelhada do mundo dos vivos. Por isso, os antepassados não estão exatamente mortos, mas, sim, invisíveis. O país do lado de lá é igual ao do lado de cá. A diferença é que em um deles não se consegue acender fogueira.

Sentada à margem do rio Niger, a jovem pensava em invocar a poderosa avó, a rainha-mãe, que se tornara invisível. Ela, certamente, apareceria em seu sonho, "território" onde vivos e ancestrais podem se encontrar e falar (...)

O pai de Nyame era o chefe de um reino vizinho e havia abençoado a união de sua filha com o líder achanti. Mostrou-lhe também o tesouro em pepitas de ouro que deveria aumentar de geração em geração.

Mas, agora, o coração do guerreiro estava “arrebentado” com o desaparecimento de Nyame. Os dois encontravam-se desde crianças e sempre havia tempo para se alimentarem de alegria, amizade e amor (...)

(O espelho dourado. São Paulo: Peirópolis, 2003, p. 9, 11)

Você já colheu uma história?

Certa vez, eu andava de barco pela África, quando escutei algumas pessoas falarem de uma árvore que existe naquele continente. Me aproximei e quis saber mais, e então me disseram:

– É uma árvore de onde se colhem histórias.

Fiquei imaginando uma história dentro de uma fruta rechonchuda, perfumada, saborosa, que dá no pé de... qual era mesmo o nome da árvore?

Acabei descobrindo que um guri que more ao sul de algum país africano pode lhe dar um nome. Mas uma guria que vive ao norte da África pode lhe dar outro, bem diferente. Todos, no entanto, a reconhecem, porque ela vive muito. Mais de cem, de mil, até seis mil anos. Também não há quem não se espante ao cruzar com ela. Gigante na largura, pode ter até 45 metros (eu disse metros!) de cintura. Quanto você mede? Agora imagine trinta metros. Dizem que ela, na altura, pode chegar a atingir esse tamanhão.

Então ela pode ter muitos nomes, muita idade e muitos metros.

Daí tive a idéia de fazer este livro e convidei o Mário Lemos, que mora em Moçambique, e o Georges Gneka, que nasceu na Costa do Marfim, para escreverem o que contam sobre ela nas suas regiões. É a mesma árvore que nasce em muitos lugares. Por isso, dela se colhem várias histórias rechonchudas. Véronique Tadjo, que atualmente vive na África do Sul, ilustrou o que todo mundo escreveu.

Agora só falta uma coisa: quem vai descobrir o nome da árvore?

Mas esta história começa muito antes. No tempo em que a árvore ainda era semente.

(A semente que veio da África. São Paulo: Salamandra, 2005. p. 7)

 

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Eu sou a Preta. Era minha madrinha, a tia Carola, uma irmã querida de minha mãe, quem me chamava assim. Ela sempre chegava com um lencinho na cabeça e uma sacola de palha cheia de novidades, que eu abria sentindo cheirinho de boneca nova, de joguinhos para brincar, de roupa bonita, de livrinhos de história com perfume de papel colorido.

— Preta, vim te buscar!

As férias traziam com ela flores que eu nunca tinha visto e montanhas onde o mundo ficava embaixo, depois das nuvens. Numa dessas vezes, esqueci minha cordinha de pular em cima de uma pedra. Ficava triste lembrando dela sem mim, sozinha. Às vezes imagino que ela está lá até hoje.

Mas o melhor de tudo eram os aniversários, quando a tia chegava para ajudar minha mãe a preparar delícias.

— Preta, olha o bolo, os pastéis, a calça-virada, a cuca e os canudinhos que fiz pra ti!

Porém, o grande amor que nascia do coração de tia Carola ficou principalmente na minha lembrança de certos dias tristes em que ela chegava com sua sacolinha de carinhos. E só ela sabia me chamar de Preta desse jeito que ficou tão doce. Olha que engraçado: quando outros diziam que eu era preta eu achava estranho.

— Eu não sou preta, eu sou marrom. Cor de doce de leite, como a canela, como o chocolate, como brigadeiro. Cor de telha, cor de terra. Eu sou assim... da cor dos olhos dos meus pais!

E fui aos poucos descobrindo que eu era a Preta marrom, uma menina negra. Ser negra, como me percebem? Ou como eu me percebo? Ou como vejo e sinto me perceberem? Tenho um amigo que só às vezes é preto. Que fica preto quando vai à praia no verão. Mas ser negro é muito mais do que ter um bronze na pele.

Como é, afinal, ser uma pessoa negra? Eu só respondo quando responderem como é que é ser uma pessoa que não é negra.

Uma vez, sentei debaixo da parreira de uva, na casa da vó Lídia. Fiquei olhando para o alto, as bolinhas cheias de suco por dentro. Eram muito saborosas (quando eu não descobria formigas entre os gomos). A vó Lídia sempre ficava por ali, arrumando suas plantinhas, enchendo o mundo com cheiro de terra molhada. Nossa conversa era ela perguntar pouco e eu responder pouquinho. Mas tinha um amor que grudava a gente, uma na outra. Lá estava ela, a vó linda com sua cor negra, cabelo branquinho, olhos serenos, mãos fortes e uma perna manca. E aí eu perguntei:

— Vó, quem inventou a cor das pessoas?

Isso eu perguntei porque havia aprendido que uns são amarelos, outros brancos e outros vermelhos. Ela disse:

— Eu só respondo se tu me disser quem inventou o nome da cor das pessoas.

E eu fiquei lá, pensando e chupando uva, e ela continuou plantando suas sementes

(Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998. p. 9, 12, 13)

* * *

Nyame era uma princesa do reino medieval de Gana. Seu povo acredita que os mortos habitam um mundo que é a imagem espelhada do mundo dos vivos. Por isso, os antepassados não estão exatamente mortos, mas, sim, invisíveis. O país do lado de lá é igual ao do lado de cá. A diferença é que em um deles não se consegue acender fogueira.

Sentada à margem do rio Niger, a jovem pensava em invocar a poderosa avó, a rainha-mãe, que se tornara invisível. Ela, certamente, apareceria em seu sonho, "território" onde vivos e ancestrais podem se encontrar e falar (...)

O pai de Nyame era o chefe de um reino vizinho e havia abençoado a união de sua filha com o líder achanti. Mostrou-lhe também o tesouro em pepitas de ouro que deveria aumentar de geração em geração.

Mas, agora, o coração do guerreiro estava “arrebentado” com o desaparecimento de Nyame. Os dois encontravam-se desde crianças e sempre havia tempo para se alimentarem de alegria, amizade e amor (...)

(O espelho dourado. São Paulo: Peirópolis, 2003, p. 9, 11)

Você já colheu uma história?

Certa vez, eu andava de barco pela África, quando escutei algumas pessoas falarem de uma árvore que existe naquele continente. Me aproximei e quis saber mais, e então me disseram:

– É uma árvore de onde se colhem histórias.

Fiquei imaginando uma história dentro de uma fruta rechonchuda, perfumada, saborosa, que dá no pé de... qual era mesmo o nome da árvore?

Acabei descobrindo que um guri que more ao sul de algum país africano pode lhe dar um nome. Mas uma guria que vive ao norte da África pode lhe dar outro, bem diferente. Todos, no entanto, a reconhecem, porque ela vive muito. Mais de cem, de mil, até seis mil anos. Também não há quem não se espante ao cruzar com ela. Gigante na largura, pode ter até 45 metros (eu disse metros!) de cintura. Quanto você mede? Agora imagine trinta metros. Dizem que ela, na altura, pode chegar a atingir esse tamanhão.

Então ela pode ter muitos nomes, muita idade e muitos metros.

Daí tive a idéia de fazer este livro e convidei o Mário Lemos, que mora em Moçambique, e o Georges Gneka, que nasceu na Costa do Marfim, para escreverem o que contam sobre ela nas suas regiões. É a mesma árvore que nasce em muitos lugares. Por isso, dela se colhem várias histórias rechonchudas. Véronique Tadjo, que atualmente vive na África do Sul, ilustrou o que todo mundo escreveu.

Agora só falta uma coisa: quem vai descobrir o nome da árvore?

Mas esta história começa muito antes. No tempo em que a árvore ainda era semente.

(A semente que veio da África. São Paulo: Salamandra, 2005. p. 7)

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  Eu, o Coco

 

Perguntaram-me porque eu sou uma dança dos quilombos. Eu vou lhes contar uma história: até onde eu sei, além de ser um refúgio após a fuga, o quilombo era o lugar de reorganização da vida criativa, uma nova vida. A terra era de quem ali chegasse, portanto, poderia arar, colher, criar animais, caçar, pescar. Gozar dos mesmos direitos e deveres.

As crianças eram acompanhadas pelos mais velhos e pelas mais velhas, responsáveis pela transmissão do conhecimento produzido por casa etnia que ali vivia. À sombra das árvores, elas ouviam as histórias ancestrais.

Da minha parte, eu lhes digo: mesmo sendo uma árvore estrangeira, gozei de boa adaptação aos diversos solos sem me incompatibilizar com as palmeiras nativas. Por isso, fui disseminado do litoral do sertão, passando pelo agreste.

À noite, os quilombolas se reuniram em volta da figueira, uma reunião para o descanso da labuta – hora de discutir idéias. Uma das idéias dessas reuniões foi celebrar a minha presença na economia quilombola. Nada melhor do que dançar em minha homenagem.

Dançar sempre fez parte da vida dos quilombolas, mesmo na senzala, dançar pela morte. Dançar faz bem ao espírito e ao corpo, aprenderam com os antigos.

 [...]

Coco – deram o nome à dança, o meu nome,quer louro maior? Acreditem, fiquei muito, muito orgulhoso. 

A partir daí, as noites eram animadas com o Coco: batidas de pés, batidas de mão batidas de tambor.

 

 (In: Eu, o Coco. p. 3-9)