II

 

Minha imagem é geografia das nossas memórias

(lá) luz plana sobre o Índico

(aqui) teu silêncio

(nessa foto da Bahia) meu olhar macambúzio,

meu punho cerrado

onde guardo a Macala em brasa

que te ofereço:

segura

IV

 

Macala é o mineral da minha língua

onde apoio minha força,

 

guardo saudade entre meus anéis,

sustento a fé no volume de minha saia,

nos símbolos do meu balangandã

 

machados de ferro de esculpir coragem

gritam aos meus ouvidos:

ergue a cabeça

 

 

Água de barrela

(excertos)

 

Os anos foram passando. Umbelina cumpriu a determinação da senhora à risca: ensinou tudo o que sabia a Anolina, afinal ela era filha de uma patrícia de sua Ketu. Tudo mesmo. Iniciou a menina no forno, fogão, nos demais afazeres domésticos e em seus cultos, que eram secretos para os senhores. Certo dia, um grito horrendo explodiu no ar por volta das 14 horas. Um contraste macabro com o dia claro e sol a pino, céu azul e sem nuvens. Por um instante, tudo parou. Cessaram as respirações, os corações pareciam que até os ponteiros do imenso carrilhão na entrada do sobrado dos senhores petrificaram pelo berro medonho. O gelo que o grito deixou só foi quebrado quando o sangue escorreu pela terra. Foi uma correria, e outros gritos, choros e gemidos se fizeram ouvir.

O escravo Tito, na mecânica atividade de enfiar a cana na moenda, se aproximou demais e teve seu braço direito tratado pelas engrenagens como se fosse mais um dos compridos pedaços do vegetal. Roberto, o feitor da moenda, que orientava Tito na delicada tarefa, não pensou duas vezes: sacando do enorme facão posto ali para tirar folhas laterais e limpar a cana antes de coloca-las para moer, cortou o braço do cativo na altura que ainda não tivera sido tragada pelos pesados e poderosos cilindros. Salvara a vida dele, pois em poucos minutos Tito seria todo puxado e esmagado, como diziam ter acontecido com o antigo feitor-mor, que por descuido prendeu a manga do paletó e não teve tempo de desvencilhar antes de ser puxado com toda a força para dentro da máquina, sendo triturado e devolvido como bagaço de cana e suas tripas como caldo.

  (Água de Barrela, p.63-64)

****

 

A imperatriz dona Tereza Cristina, retirou algumas moedas da quantia que levaram para dar em esmolas e doações para as igrejas do lugar, e assim deu “um agrado” aos da cozinha, que foi levado por um dos assessores da comitiva. E assim Anolina começou uma poupança que garantiria o recomeço de vida para sua filha e neta após a sua morte.

Entre as conversas, o imperador fez elogios ao calçamento, que era todo como o do Rio de Janeiro antigo, e o coronel Tosta deu conta de números do orçamento e dados da cidade. Disse ele a Dom Pedro que Cachoeira somada a São Félix tinha “uma população de 20 mil almas”.

No dia seguinte, a comitiva seguiu para Feira de Santana, e o coronel Francisco o acompanhou, bem como Egas Moniz Aragão e uma comitiva de muitos homens montados que cercaram o cavalo do imperado e o carro da imperatriz, que era puxado por sete animais entre os mais belos do lugar. Assim como era em Cachoeira, as recepções pelo caminho foram igualmente grandiosas. Na viagem, os senhores e Dom Pedro tiveram a oportunidade de conversar sobre muitas coisas, e o monarca se assustou com o fato de ainda não usarem o arado na agricultura, apenas deixando o terreno descansar entre uma cultura e outra.

                                                                                                                                                                                                (Água de Barrela, p. 115)

 

 

 

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                                               A  Copa Frondosa da Árvore                                                                                                      

O chão criteriosamente encerado. A máquina de costura preta, com aqueles pedais que ela pres­sionava com seus hábeis e pequenos pés, que eram o perfeito acabamento para as pernas grossas e bem torneadas. A mobília pés de palito. O óleo Seiva de Mutamba. O pente. Os laços de fita cuidadosamente passados. Naquela sala da casa da zona oeste carioca, quando o relógio batia onze horas, ela religiosamente largava as linhas e alfinetes para me prender em suas coxas. 

O ritual incluía girar o botão do rádio e im­pregnar o ar com o Concerto Nº 1 de Tchaikovsky, a abertura do repórter Haroldo de Andrade. As notas da peça musical mesclavam-se com o cheiro do óleo besuntando suas mãos, e eram a senha para que o pânico se instalasse em meu olhar, pois, àquela altura dos meus oito anos de vida, minha cabeleira já assumia o volume das copas frondosas das árvores mais densas; e o pente, as feições de armamento pesado; a motosserra de plástico.

Eu, sentada no chão, presa naquelas coxas negras de tom suavemente amarelado, evidenciando a api­mentada mistura que descendia de alguém que talvez viesse do Sudão com outro alguém nascido dos Maracás ou Cariris, da região de suas raízes - a Chapada Diamantina -, tinha a revolta do bicho doméstico aprisionado para uma vacina ou um banho indesejado.

Ela era silenciosa e tinha a "chave de pernas" mais poderosa do universo. Impossível escapar. O óleo penetrando fundo nas folhas da minha árvore. O cabo do pente dividindo tudo em mechas, como um vento raivoso descabela a folhagem. Pronto. A luta ia começar.

Os dentes do pente cravando na base da cabeça e lá vinham suas mãos de costureira de madame, pu­xando e trançando, puxando e trançando. Eu sentia como se em cada recolher do punho dela saíssem junto todos os meus neurônios. Tchaikovsky e sua trombeta. O piano dominando. Os violinos. As vozes da vinheta. O andamento acelerava, caía e entravam as notícias, com a voz marcante do Haroldo de Andrade.

Ela afrouxava as coxas. Já não havia o perigo de fuga. A cabeleira estava tão rigorosamente presa em (rançados elaborados e amarrados com laços de fitas, que os olhos puxavam nos cantos, como os dos orien­tais... Ou seria como os dos índios da baiana Lençóis? Ela me mirava com um ar de aprovação. Eu, passado o drama infantil, também gostava.

Em segundos não restariam vestígios da "sessão de tortura", ao som do compositor romântico russo. O arsenal era guardado numa caixa de madeira, que seria reaberta no dia seguinte com o mesmo drama teatral, e vinha daí, desta rotina cômica, o seu silêncio resignado e irônico.

 Na mesa fumegava o escaldado de peixe, a frita­da com camarão seco ou alguma de suas delícias. Eu entraria no ônibus da escola e dele desceria algumas horas mais tarde, com uma meia descendo no sapato e outra na altura dos joelhos ralados, parte da blusa para fora do cós da saia e com minha copa de árvore completamente livre das amarras. Sem poda.

 Minha avó me receberia pontualmente no portão de casa e, com a sabedoria dos índios e dos negros do seu sangue, se abaixaria para nivelar o olhar ao meu, mas também não diria nada. Apenas acariciaria as folhas no alto de minha cabeça e me daria um beijo, convidando para a sopa de legumes que já estaria pos­ta na mesa coberta com uma toalha florida, a esfriar perfumando o ambiente, como uma suave brisa na floresta da minha infância.

                                                                                                                                                                          (Cadernos negros 40, p.179-181)

 

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BONECAS DE PANO

Aidil Araújo Lima

 

Dandara, menina negra de sorriso aberto, espanta a tristeza por onde passa. Antes das dores do parto, sua mãe sonhou com uma mulher valente, de vestido vermelho, esposa de Zumbi dos Palmares. Deu o nome a filha. Dandara saltitava pelo caminho, pensando ser borboleta. Pés ingênuos descalços pulam as pedras do cansaço da mãe, distraídas dos vazios da miséria, vivia num faz de conta, inventava comida, castelos e princesas que via nos livros que ganhava das pessoas de boa feição. Cedo, a mãe desce da cama, cambaleando a existência, esfrega as vistas para acordar a fadiga relutante. Labuta dia a dia sem esmorecer o desejo, ver a filha formada. Cheia de conhecimento. Mudar a sina da família de dedos borrados na tinta. Glória assombra o pensamento e, através da selva, vê uma porta que se abre. O coração se descompassa, descobre um caminho quase invisível. Corre o olhar até a filha; vê seus cabelos crespos tão gentis, borboletas de cores desiguais passeiam ao lado. – Como são lindos... Deita as roupas sujas na pedra. Pega uma a uma para ensaboar. Às vezes, o vento soprava estranho, pensava naqueles de antes, na vó, na mãe, lavadeiras, será possível ter direito a mudança... Uma esperança voa em sua direção, ela canta, enquanto pendura roupas de linho branco no arame farpado. O sol seca a água que desce das roupas, enxugando as lágrimas que cai do rosto. Glória enxerga com mais clareza, enfia linha na agulha, costurando bonecas de pano negras, cabelos crespos. Dandara se encanta pelas bonecas, brincando com seus cabelos espiralados, enrosca os dedos miúdos nos fios de sua cabeça, sente a parecença e ri. Pendura-as no arame farpado só para vê-las rindo com o vento embalando seus corpos. Ao por do sol, voltam para a casa simples, um espaço onde tudo cabia, até a alegria de sua menina. Dois colchões sobre caixotes de madeira, um fogão, uma mesa e, duas cadeiras. O vento trazia para a menina livros e revistas de moda, eram tantas, que ela virou estilista. Tinha tanta intimidade com os tecidos que ganhou fama e dinheiro. Mesmo crescida em idade, casa com conforto, comida na mesa todo dia, ainda assim pegava a boneca de menina e ia para fonte. O vento lhe soprava ideias que ia colocando no papel. Comprou tecidos na África, a mãe quieta, a acompanha nas viagens pelo mundo da moda. Modelos de todas as raças desfilam suas criações de cor vibrante, com muito vermelho. Só uma exigência, cabelos crespos são bonitos demais para serem alisados.

(In: Mulheres sagradas, p. 52-53)

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