II

 

Minha imagem é geografia das nossas memórias

(lá) luz plana sobre o Índico

(aqui) teu silêncio

(nessa foto da Bahia) meu olhar macambúzio,

meu punho cerrado

onde guardo a Macala em brasa

que te ofereço:

segura

IV

 

Macala é o mineral da minha língua

onde apoio minha força,

 

guardo saudade entre meus anéis,

sustento a fé no volume de minha saia,

nos símbolos do meu balangandã

 

machados de ferro de esculpir coragem

gritam aos meus ouvidos:

ergue a cabeça

 

A criança negra na escola1

Consuelo Dores Silva

"... educação e respeitar um ao outro"

Para captar os sentimentos dos sujeitos de nossa pesquisa em relação a seus colegas brancos, pedimos que eles escrevessem sobre um tema específico: "O que eu gostaria que houvesse na escola pública, para que eu fosse mais feliz?"

Observamos nas redações que as crianças e adolescentes negros se queixavam dos constantes nomes com que eram apelidados, em suas interações, pelos membros de seu grupo de iguais:

"eu me sinto, quando eles me põem apelidos, meia engraçada meia boba; uns me chamam de baleia, e um menino que chama F. me chama de excesso defofura; e isso me dá uma raiva, e também tem uns que chamam de baleia assassina." (Sujeito D.M.)

Outro entrevistado relata:

"O meu apelido é Maria Sapuda, umbu, umbigo da Maria Sapuda."

Alguns dos alunos afirmaram:

"eu não gosto que põem apilido em mim, e eu tenho muita raiva deles, que me chamam disso. Quando eles põe apelido, eles me dimenui, eu pego, e começo a chamar eles também." (Sujeito C.S.)

"A J. me chamou de magrela seca. O F. me chama de excesso de fofura. O T. me chama de banana estragada.Eu me sinto muito humilhada. O T. me chama de magricela." (Sujeito B.P.)

"Quando eles me coloca este apelido, eu me sinto muito triste, e muito magoada por causa disto. Eu me levo esta coisa muito a sério. Tem uns que querem diminui a gente, tem uns que leva na brincadeira."

"Minha mãe nunca levou um apelido. Quando eu era pequenininha, minha mãe diz que ninguém colocava apelido nela."

"Em todas as escolas que eu estudei, ninguém colocaram apelido ni mim. Só quando eu entrei nesta escola, que eu ganhei os apelidos dos meninos."

"Minha mãe, meu pai, e meus irmãos fica muito tristes, quando fica sabendo, que eu levei este apelido." (Sujeito M.G.)

Segundo uma pesquisa feita por BARBOSA (1987), crianças negras são superprotegidas pelos pais que as levam a acreditar que não são diferentes de outras crianças. Seus familiares não receberam da geração anterior nenhuma orientação de como enfrentar situações de discriminação; não sabendo como agir, transmitem a seus filhos uma socialização carente de informações. Segundo a autora, em muitos casos, aconselham às crianças a não reagirem diante de manifestações de preconceito racial. Crianças negras na escola irá ser, no mínimo, conflituosa. Este estudo sobre socialização e relações raciais coincide com a visão goffmaniana da criança encapsulada.

Vejamos o relato de J.S, onze anos, e filho adotivo. Ele declarou:

"A mãe ensina a gente. Ela ensina tudo: a educação, a obrigação; a respeitar aos outros; a fazer amigos; e não brigar. Temos que combinar com os outros e não ser na base da ignorância."

Em outro momento, ele diz:

"Os meninos falam que minha mãe é negra. Não estou nem aí. Ela é importante para mim. Ela sabe ensinar ao filho o caminho certo: não ficar brigando na rua."

S.M., a segunda adolescente a relatar suas experiências, é uma empregada doméstica. Reproduzindo o conteúdo de uma discussão com um aluno branco, acontecida dentro da sala de aula, ela afirma que:

"F. me chama de negra, diz que meu nome é nome de escrava. Quando ele passa perto de minha casa, grita meu nome e me ofende com palavras."

Analisando a fala do aluno F., observamos que ela reproduz os estereótipos veiculados pela ideologia dominante de que o negro, por pertencer a uma raça que foi escravizada, é sinônimo de inferioridade. Assim, podemos inferir que o indivíduo, ao possuir o nome conotativamente relacionado à escravidão, é marcado, carregando consigo o estigma que lhe é atribuído.

Ao discriminar a sua colega negra, o aluno branco, na realidade, quer transmitir a ela a mensagem de que ele acredita pertencer a uma raça superior, a branca, que é o estrato dominante da sociedade. Portanto, "a identidade do outro reflete na minha e a minha na dele." (CIAMPA, 1986, p.59).

E.M., adolescente, é, segundo o que relata, também diminuída pelos colegas: "T.R. e M. me chamam de monstro, de vampiro. Acho ruim, porque querem me rebaixar, não me respeitando."

E.M., não possuindo os dentes superiores, tornou-se arredia a contatos. Se a identidade é construída a partir da percepção que temos de nós mesmos, através da interação com o outro, ela tem plena consciência de sua posição de inferioridade, perante os outros alunos, pois não ri, com medo das chacotas.

Prosseguimos com as declarações textuais de outros entrevistados:

"Quando alguma pessoa coloca apelido em mim eu me sinto humilhada e triste. Vou dar alguns apelidos: nega, umbu, filha do Mussum. Quem me chama destas coisas é o T." (Sujeito D. M.)

Eles chamavam minha mãe de neguinha e pretinha. E ela ficava muito triste e xingava eles.” (Sujeito B. P.)

"Ele colocam apelido na gente e chama a gente de negrinha, pretinha e falam também: que meninha feia! Quando eles me chama de negrinha e pretinha eu fico triste e humilhada. Ele também chama a gente de bisorro, urubu." (Sujeito E.J.)

Segundo a Psicologia Social, a auto-estima, ou seja, o grau em que alguém gosta de si, depende das origens sociais do indivíduo, daí a importância destas origens na construção da identidade pessoal.

A auto-estima e o conceito de si próprio são indicadores da posição que a pessoa ocupa na hierarquia social. McDAVID e HARARI (1980) afirmam que grupos étnicos e religiosos discriminados nos anos 50, apresentavam indicadores de uma auto-estima fragmentada e sentimento de inferioridade. As origens sociais da auto-estima, como vimos, relacionam-se com a atratividade que uma pessoa exerce sobre a outra, e

(...) estudos ulteriores sugeriram que pessoas de status inferior e impopulares tendem ou a empregar considerável esforço para granjear a simpatia de pessoas populares (FREEMAN e DOOD, 1968) ou a subestimar sua própria rejeição feita por outros, superestimando a própria atratividade. (McDAVID, HARARI, 1980, p.178).

A sociedade dispõe de diversos meios, para controlar o comportamento dos vários grupos étnicos que a compõe e a socialização é um desses meios, porque ela é a chave da "aprendizagem social", na concepção de McDAVID e HARARI (1980). Crianças oriundas de grupos étnicos discriminados possuem uma baixa auto-estima, porque através da interação, terminam por se auto-perceberem como acreditam que os outros as percebem.

O discurso seguinte é de M.G.S., doze anos, que possui um metro e setenta centímetros de altura: "Na sala de aula, os meninos me chama de Máxi-mula, de Máxi-bombril. A L. e a V. falaram que meu cabelo era duro."

M.G.S. é discriminado devido à cor e ao tamanho e vive em constante atrito com os alunos que o apelidam. "Assim, há qualidades, escreve Jean Paul Sartre, que nos chegam unicamente através dos juízos do outro." (BOURDIEU, 1987, p.108).

Nota

1 - Originalmente publicado na obra Negro, qual o seu nome? (1995).

Referência

SILVA, Consuelo Dores. Negro, qual o seu nome? Belo Horizonte: Mazza, 1995.

 

 

 

                                               A  Copa Frondosa da Árvore                                                                                                      

O chão criteriosamente encerado. A máquina de costura preta, com aqueles pedais que ela pres­sionava com seus hábeis e pequenos pés, que eram o perfeito acabamento para as pernas grossas e bem torneadas. A mobília pés de palito. O óleo Seiva de Mutamba. O pente. Os laços de fita cuidadosamente passados. Naquela sala da casa da zona oeste carioca, quando o relógio batia onze horas, ela religiosamente largava as linhas e alfinetes para me prender em suas coxas. 

O ritual incluía girar o botão do rádio e im­pregnar o ar com o Concerto Nº 1 de Tchaikovsky, a abertura do repórter Haroldo de Andrade. As notas da peça musical mesclavam-se com o cheiro do óleo besuntando suas mãos, e eram a senha para que o pânico se instalasse em meu olhar, pois, àquela altura dos meus oito anos de vida, minha cabeleira já assumia o volume das copas frondosas das árvores mais densas; e o pente, as feições de armamento pesado; a motosserra de plástico.

Eu, sentada no chão, presa naquelas coxas negras de tom suavemente amarelado, evidenciando a api­mentada mistura que descendia de alguém que talvez viesse do Sudão com outro alguém nascido dos Maracás ou Cariris, da região de suas raízes - a Chapada Diamantina -, tinha a revolta do bicho doméstico aprisionado para uma vacina ou um banho indesejado.

Ela era silenciosa e tinha a "chave de pernas" mais poderosa do universo. Impossível escapar. O óleo penetrando fundo nas folhas da minha árvore. O cabo do pente dividindo tudo em mechas, como um vento raivoso descabela a folhagem. Pronto. A luta ia começar.

Os dentes do pente cravando na base da cabeça e lá vinham suas mãos de costureira de madame, pu­xando e trançando, puxando e trançando. Eu sentia como se em cada recolher do punho dela saíssem junto todos os meus neurônios. Tchaikovsky e sua trombeta. O piano dominando. Os violinos. As vozes da vinheta. O andamento acelerava, caía e entravam as notícias, com a voz marcante do Haroldo de Andrade.

Ela afrouxava as coxas. Já não havia o perigo de fuga. A cabeleira estava tão rigorosamente presa em (rançados elaborados e amarrados com laços de fitas, que os olhos puxavam nos cantos, como os dos orien­tais... Ou seria como os dos índios da baiana Lençóis? Ela me mirava com um ar de aprovação. Eu, passado o drama infantil, também gostava.

Em segundos não restariam vestígios da "sessão de tortura", ao som do compositor romântico russo. O arsenal era guardado numa caixa de madeira, que seria reaberta no dia seguinte com o mesmo drama teatral, e vinha daí, desta rotina cômica, o seu silêncio resignado e irônico.

 Na mesa fumegava o escaldado de peixe, a frita­da com camarão seco ou alguma de suas delícias. Eu entraria no ônibus da escola e dele desceria algumas horas mais tarde, com uma meia descendo no sapato e outra na altura dos joelhos ralados, parte da blusa para fora do cós da saia e com minha copa de árvore completamente livre das amarras. Sem poda.

 Minha avó me receberia pontualmente no portão de casa e, com a sabedoria dos índios e dos negros do seu sangue, se abaixaria para nivelar o olhar ao meu, mas também não diria nada. Apenas acariciaria as folhas no alto de minha cabeça e me daria um beijo, convidando para a sopa de legumes que já estaria pos­ta na mesa coberta com uma toalha florida, a esfriar perfumando o ambiente, como uma suave brisa na floresta da minha infância.

                                                                                                                                                                          (Cadernos negros 40, p.179-181)

 

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A história mal contada1

Consuelo Dores Silva

 

Todas as manifestações contra o trabalho servil, aqui descritas, desmentem a historiografia que ao longo dos anos silenciou a este respeito, levando-nos à crença de que o escravo foi incapaz de elaborar formas individuais e coletivas de resistência à escravidão. Seja fugindo para os quilombos, ou não sendo "bom escravo", o negro desejava fugir ao status de "coisa" imposto pela estratificação social; como sabemos, ninguém nasce com predisposição para ser escravo, mas as circunstâncias históricas é que são determinantes desta condição.

Mais de três séculos de trabalho compulsório resultaram na concentração de não-brancos nas regiões mais pobres do Brasil, e os condicionaram a uma posição hierarquicamente inferior. Assim, "nascer negro ou mulato no Brasil normalmente significa nascer em famílias de baixo status" (HASENBALG, 1979, p.220). Logo, devido à sua pouca escolaridade, os negros encontram muitas barreiras, para ascender socialmente, e o mesmo fato se repete com seus filhos, mais do que com filhos de operários brancos não-qualificados, os quais "(...) obtêm 1,1 a mais de educação que os não-brancos." (HASENBALG, 1979, p.207). Além de se inserir no mercado de trabalho com poucas qualificações profissionais adquiridas através da educação formal, os negros se encontram num contexto social que classifica as pessoas, segundo "a boa aparência". A seleção, mediante a cor da pele, limita, portanto, os seus sonhos de mobilidade social.

Numa sociedade pluri-racial, a cultura dominante se impõe coercitivamente sobre as outras culturas e os grupos dominados terminam por introjetar a inferioridade.

A referência feita à escravidão teve como objetivo mostrar como pessoas de cor negra, descendentes de escravos, possivelmente, introjetaram no Brasil, ao longo dos séculos, uma imagem negativa de si mesmas.

A procura do negro pela liberdade é exaustiva, pois lhe reafirmam a sua negação como pessoa humana. Esta é, pois, a tragédia do negro da Diáspora.

O negro, perdendo a liberdade, negou-se a si mesmo; entretanto, ao se tornar escravo, ocorreu-lhe um processo de metamorfose. A história das culturas se caracteriza pela mudança das relações sociais entre os homens; sendo assim, poderíamos dizer que, o homem negro, ao negar os estereótipos negativos que lhe são atribuídos socialmente, elabora uma contra-ideologia em que afirma a sua individualidade, a sua pessoa.

O Mundo Novo, em que o homem se reapropria de sua essência, é o sonho dos homens transformados em escravos. A Nova Sociedade só surgirá, se os descendentes destes homens, a quem foi negada a humanidade, se reapropriarem de si próprios. Esta reapropriação se caracteriza pelo assumir a própria cultura e identidade, perpassando pela tomada de consciência das relações de opressão à participação política, e a conseqüente negação do colonialismo. O colonialismo se manifesta nos países do Terceiro Mundo sob a forma de desvalorização cultural dos povos não-brancos da América, África e Ásia.

O oprimido necessita, portanto, reavaliar o seu papel como sujeito histórico, para desmistificar a ideologia que apregoa a superioridade de uma cultura sobre outras; e principalmente, se habituar à denúncia do discurso, que afirma a sua inferioridade, e justifica a dominação e a violência dos povos colonizadores.

 

Nota

1. Originalmente publicado na obra Negro, qual o seu nome? (1995).

 

Referência

SILVA, Consuelo Dores. Negro, qual o seu nome? Belo Horizonte: Mazza, 1995.