“2. quando o amor me encontrou, judith, se era noite ou dia, não me lembro. sei que tinha tudo que eu não tinha e tudo aquilo que usualmente não procurava. não tinha pernas brancas, compridas e grossas..., nem um par de ancas monumentais. não tinha cabeleira ruiva loura ou negra... e nem rosto tinha! quando o amor me encontrou, judith, se era noite ou dia, não me lembro. lembro-me apenas que não falou nem riu. chegou e se instalou de vez, como em morada antiga. só muito mais tarde, judith, é que senti desejos. e nos segredos dum novo corpo o amor brincava de esconde-ssscccoonnnddd...”

(Prosoema, texto 2)

 

“26. que que eu faço
que que eu posso
que que eu valho
se me negam
se me prendem
se me odeiam
e não me deixam ser.
há conflitos
confusão doutrinários
camelôs ladrões
política política
uma busina estridente
que estoura os miolos.
se grito
não me ouvem
e o meu gesto
de desespero interpretam-no
como louco e vale pouco
pra quem sou.
me importam as dores
me importam vidas e mortes
(já não leio jornais)
me importam o podre e o rico.
a mim... pouco me importa
mas que fazer
se sou apenas humano?

 Drummond:

... “Deus, por que me abandonaste se

sabias que eu não era Deus?”.

(Prosoema, texto 26)

 

 

“6. ainda sou aquele, judith, que ao acordar, aplica o ouvido à natureza em busca das respostas às perguntas que ao deitar faço: “por que nasci? por que morro tão lentamente?” como sempre, judith, volvem-me em eco as palavras mesmas: “por que nasci? por que morro tão lentamente?” então, torno ao dia em uma sombra mais. ainda sou, judith aquele a quem o amor escolheu para seu jogo de trapaças: contrabandeio sentimentos; mas não sou dado à farsas! sou ainda eu, judith, a lenda desesperada de mim mesmo, aonde quer que exista, existo..., mas existirei só!”

(Prosoema, texto 6)

 

 

 

“37. São estes versos de desculpar
que lhe ofereço.
Vê, não sou poeta,
como se pensava fosse.
Não tenho adereço,
também não faço esforço:
faço apenas versos,
como se versos fossem
porque demais careço.
Não têm lírica, nem rima.
E pra não deixar só nisso,
tem pé quebrado!
E fica assim tão simples
que talvez nem existam,
embora estejam impressos,
já disse,
do que demais careço.
Oh!!!
Deculpa-me se lhe confesso!
Desculpa-me!, viu?”
 (Prosoema, texto 37)

Quando o tempo para

Quatro e meia da manhã. O inverno escurecia as madrugadas sob seu gelado silêncio. A cozinha mal se iluminava com as chamas do fogão à lenha. Catarina, trinta e cinco anos na certidão de compra, cativa desde que nascera, colocou o pó de café para coar enquanto na chaleira preta a água fervia. Os olhos da mulher sentiram-se atraídos pela chama vermelha, suas pálpebras pesavam. Fecharam-se. Abriram-se. Deslocou-se até a sala de jantar, estendeu a toalha branca com bordados verdes e vermelhos. Ela pôs as xícaras, talheres... Estava pronto. Ajeitou tudo de maneira precisa. Pegou outra vez as xícaras. Olhou para o interior de cada uma, recolocou-as em seus lugares. Retornou à cozinha. Pegou os últimos dois pães e o doce de leite. Ouviu uma tosse, depois, um “bom dia” e logo o ringir da porta. O senhor retirou-se do quarto. Catarina entrou no quarto. A sua senhora a esperava para que arrumasse a cama e também a ajudasse a colocar o vestido e prender o cabelo. Cama arrumada, cabelos ajeitados e vestido abotoado.

─ O penico está a transbordar ─ disse a senhora, que logo informou que havia outro na mesma condição.

Catarina saiu pela porta dos fundos. Equilibrava os dois penicos que respingavam urina nos seus pulsos. Despejou-os no fundo do pátio. Voltou acelerando as passadas. Lavou bem as mãos, ensaboou-as voltou à cozinha. Pegou o café, água quente e levou à sala. Serviu o café quando a senhora, após cheirar suas mãos, disse:

─ Vá lavar as mãos direito, sua negra porca! Está a feder!

Na cozinha, Catarina esfregou os pulsos, lavou, passou muito sabão e esfregou outra vez, tanto que se criaram feridas. Outra vez à sala, deixou à mesa o leite fervido. Serviu os senhores. Em pé, estática, de estômago e olhos vazios, observava a refeição.

─ Catarina! ─ o homem limpava os lábios finos junto ao bigode castanho bem aparado. ─ Notei que há pouca lenha. Ao invés de ficares aí, parada, podes estocar algumas achinhas de lenha na cozinha.

Catarina saiu. Dirigiu-se até o pequeno galpão e pegou o machado. Vagou por debaixo das árvores. Encontrou alguns tocos secos e os arrastou, um a um. Cortou-os a lentos golpes de machado. Reuniu mais alguns gravetos. Colocou a lenha ao lado da porta, dentro da cozinha. Lembrou que deveria limpar a mesa das refeições. Lavou as mãos. Viu apenas os destroços da refeição encima da mesa.

Havia recolhido tudo, a mesa estava limpa. Catarina pegou a vassoura de palha e varria os quartos enquanto sussurrava uma canção. Recolheu as roupas sujas, fez uma trouxa. Rumou para o riacho com a trouxa na cabeça e o sabão preso aos dedos.

Ao leve som da água que batia nas pedras, entre sabiás e tico-ticos, Catarina cantava em voz livre. Após estender as roupas sobre os pequenos pés de pitangueiras, ela foi à cacimba buscar água e, tão logo terminava, iniciavam-se os preparativos para o almoço.

Aproximava-se do meio-dia. A cozinha estava quente. Catarina suava na medida em que remexia nas panelas, salgava, punha tempero. Retirou as panelas e as botou sobre a pequena e grossa mesa de madeira. Na sala, arrumou a mesa sob os olhares da senhora que bordava. Pratos arrumados, ela depositou as tigelas no centro da mesa.

Parada, mãos unidas ao ventre, Catarina esperava o término da refeição.

─ Tome Catarina! ─ o senhor lhe estendeu a mão, havia um papel dobrado. ─ Leve até o alfaiate. ─ Logo em seguida, lembrou-a de passar na feira. A comida carecia de melhores temperos e saladas.

Levara meia hora de caminhada. Entregou o papel ao alfaiate. A feira estava cheia. Catarina chegou à casa dos senhores onde a sala encontrava-se deserta.

Havia lavado a louça, decidiu sentar. Sentiu-se tonta, estava com sono. Levantou-se e preparou um pouco de goma. Engomou as roupas.

Ainda naquela tarde, preparou um bolo, bolinhos de polvilho e o chá que a senhora gostava tanto. Serviu. Recolheu o restante das roupas. Aproveitou para pegar mais um pouco de lenha. Deixou o machado ao lado da porta da cozinha. Depois de esticar as roupas, enquanto o ferro de passar aquecia, passou-as.

A noite chegou. As nuvens encobriam as estrelas. Catarina colocava a toalha para o jantar. O senhor fumava o cigarro. A senhora bordava próxima ao candeeiro. O jantar foi servido. Catarina aguardou. Recolheu tudo na mesma presteza.

─ Não esqueça ─ disse a senhora. ─ Deves passar um paninho nas porcelanas.

Na cozinha, havia um saco de farinha, tinha de peneira-lo. Involuntariamente, após algumas peneiradas, seu corpo amoleceu. Cochilou sentada.

─ O que é isso? ─ a senhora gritou. ─ negra preguiçosa! ─ tirou a chinela e deu na face de Catarina. Mandou que peneirasse, noutro dia queria pão na mesa.

Enquanto famílias dormiam, Catarina cumpria os deveres da sua vida. Farinha peneirada, água, sal, fermento, sovou a massa. Botou na forma. O pão dourava num cheiro bom, apetitoso. Ainda noite, pôs a mesa para o café. Voltou à cozinha e pegou o machado. Foi ao quarto dos senhores, sem ruídos, abriu a porta.

(Guerrilha e solidão, p. 37-40)

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