Sou negro

                      A Dione Silva

Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh'alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs

Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.

Depois meu avô brigou
como um danado nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso.

Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou.

Na minh'alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação. 
             (Cantares ao meu povo, 1961)

 

Tem gente com fome

Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo,
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome...

Piiiiii!
Estação de Caxias,
De novo a correr,
De novo a dizer:
Tem gente com fome;
Tem gente com fome,
Tem gente com fome...

Vigário Geral,
Lucas, Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular,
Estação da Penha,
Olaria, Ramos,
Bom Sucesso,
Carlos Chagas
Triagem, Mauá,
Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome...
Tantas caras tristes,
Querendo chegar
Em algum destino
Em algum lugar...

Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo,
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome.

Só nas estações,
Quando vai parando,
Lentamente,
Começa a dizer:
Se tem gente com fome,
Dai de comer...
Se tem gente com fome,
dai de comer...
Mas o freio de ar,
Todo autoritário,
Manda o trem calar:
Pisiuuuuuuuuu...

        (Cantares ao meu povo, 1961)

 

Navio Negreiro

Lá vem o navio negreiro
Lá vem ele sobre o mar
Lá vem o navio negreiro
Vamos minha gente olhar...

Lá vem o navio negreiro
Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana...

Lá vem o navio negreiro
Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia...

Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência...
          (O poeta do povo, p. 45)
 
Quem tá gemendo?
 
Quem tá gemendo
Negro ou carro de Boi?
 
Carro de boi geme quando quer
Negro não
Negro geme porque apanha
Apanha pra não gemer

Gemido de negro é cantiga
Gemido de negro é poema

Geme na min'halma,
A alma do Congo,
Do Níger da Guiné,
De toda África enfim
A alma da América
A alma Universal

Quem tá gemendo
Negro ou carro de Boi?
        (Cantares ao meu povo, 1961)
 

Velho atabaque

Velho atabaque
quantas coisas você falou para mim
quantos poemas você anunciou
Quantas poesias você me inspirou
às vezes cheio de banzo
às vezes com alegria
diamba rítmica
cachaça melódica
repetição telúrica
maracatu triste
mas gostoso como mulher...

Triste maracatu
escravo vestido de rei
loanda distante do corpo
e pertinho da alma
negras sem desodorante
com cheiro gostoso
de mulher africana
zabumba batucando
na alma de eu...

Velho atabaque
madeira de lei
couro de animais
mãos negras lhe batem
e o seu choro é música
e com sua música
dançam os homens
inspirados de luxúria
e procriação
Velho atabaque
gerador de humanidade...
             (O poeta do povo, p. 73)

 

Bolinhas de gude

Jorginho foi preso
quando jogava bolinha de gude
não usou arma de fogo
nem fez brilhar sua navalha

Jorginho era criança igual às outras
queria brincar
O brinquedo poderia ser um revólver
uma navalha
um pandeiro
quem sabe um cavalinho de pau
Jorginho queria brincar

Jorginho viu um filme americano
no outro dia
fez uma quadrilha de mentirinha
sempre brincando
a quadrilha foi ficando de verdade
Jorginho ficou grande como Pelé
todos os dias saía no jornal...

Televisionado
só não deu autógrafo
porque estava algemado
 
Ele era o facínora
que brincava com bolinhas de gude.
              (Cantares ao meu povo, 1961)
 
Sou negro

                      A Dione Silva

Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh'alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs

Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.

Depois meu avô brigou
como um danado nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso.

Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou.

Na minh'alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação. 
             (Cantares ao meu povo, 1961)

 

Gravata colorida

Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada... 
           (Cantares ao meu povo, 1961)

Texto para download

 

 

NEGRINHA

O olhar perde-se
Infinidade de dúvidas
Ondas em cirandas
Cercando a infância
De sanhas insanas
 
Decepastes as bonecas
Em mares de indiferenças
Mergulhei fundo, contive
Em tuas entranhas, brincos
Brincadeiras indescritíveis
 
Arrastada às cozinhas abastadas
Percorri impassível entre:
Brilhos, bombril, resmungos,
Choros da criança que sou
E não era eu
 
O sol do meu riso
Derrama-se em felicidades ingênuas
Irascível – a ira – derrama-se
Incandescente em teu coração
 
Negrinha! Tiziu! Tição!
Ressoam ventos adormecidos
em desertos de sal
 
tu me atinges
o coração rios em chama
a margem – revolta
 
Torrentes tempestuosas
arremessam ao infinito
tua tentativa ingênua
de romper castelos, fadas
cirandas, infância.
      (Cadernos Negros 19, p. 160-1)

  OBSESSÃO

 Ao amigo

Alfredo Boulos Júnior

 O coração comanda meus atos. Sob seu compasso reviro de forma desordenada a gaveta da antiga cômoda. Angustio-me ante a busca inútil. Cansado, sinto o suor verter em minha fronte, enquanto um vento bom atravessa rápido a janela. Meu olhar circula lento o quarto todo. Sinto ternura ao visualizar cada peça de roupa, cada gaveta, cada armário. A velha escultura africana presa à parede do quarto, deixa-me bem. Reanimado, volto a buscar ansioso e: nada!

Cerquei-me de desconfianças. Um receio me trouxe dor, tristeza. Teria mexido em minhas coisas? Teria cumprido a promessa idiota de sumir com mi­nha camisa? Desapontado com meus pensamentos, retornei à procura.

Retirei pacientemente peça por peça da gaveta. Em alguns momentos a ansiedade da busca roubava os meus sentidos e, traído pelos meus nervos, não sabia mais o que estava procurando. A visão embaralhava-se diante das diferentes cores das rou­pas na gaveta. Minhas mãos tremiam. Em meio ao enorme mal-estar, o copo de água com alecrim sobre o criado-mudo pareceu uma luz. Aproximei-me do móvel. Segurei com firmeza o pequeno copo. Sorvi um gole. Um bem-estar percorreu meu corpo. Sen­ti-me forte. Estaria na lavanderia? Meu rosto quei­mava, sentia coceira na cabeça. Cravei firme as unhas no couro cabeludo deixando em desalinho mi­nha carapinha. A aflição tomou novas proporções, novos pensamentos dançavam em minha mente: dú­vidas, raiva. . .

– L A U R A A A A! – gritei, assustando o pequeno gato, único espectador da cena.

– Um instante, querido.

Percebi que sua voz era melodiosa apesar da tensão. Respirando ofegante e arrastando o peque­no chinelo, ela se aproximou. Em poucos segundos atravessou a cozinha e a sala.

Foi de forma tímida que a ação do tempo fez frente à sua beleza. Ela trazia sempre a delicadeza e a força dos canteiros de alecrim, arruda, guiné, que cuidava, com carinho, toda tarde. Laura é linda! Seus olhos, no momento cheios de apreensão, da­vam luz ao seu rosto.

– O que foi, homem de Deus? Você quer me matar do coração?

– Você deu fim à minha camisa?

– Que camisa?

– Você sabe muito bem.

– Q U A L? – insiste ela, disfarçando um riso no canto da boca.

– A xadrez de flanela.

Laura permaneceu firme. Nos olhos um misto: riso e medo.

Sua implicância com minha camisa era antiga. Ora era o tipo de xadrez, muito caipira; ora as cores berrantes que não combinavam com nada, dizia ela. A ausência da minha camisa xadrez fazia com que meu apego a esse objeto aumentasse ainda mais.

Meu coração tolo, desajustado, deu para apegar-se de forma estranha às coisas. Era assim com aquela camisa, pois o prazer que sentia ao vesti-la era algo inexplicável.

Foi numa manhã de sábado que a comprei. Nenhum dos meus argumentos fez com que Laura deixasse os seus afazeres para acompanhar-me às compras naquela manhã. Os movimentos de luz, cores e pessoas naquela loja me deixaram inseguro, tornando ainda mais insuportável sua ausência. Mas senti tranquilidade ao ver a camisa sobre o balcão entre muitas outras. Bem atendido, fiz a compra de forma rápida, segura. Sentia-me satisfeito e, em nenhum momento pensei que Laura pudesse não gostar.

– Sua camisa está no quartinho de costura. Peguei para cerzir os punhos. Estavam esgarçando.

Havia desdém no tom de sua voz. Minha necessidade de vestir sempre aquela camisa deixava Laura irritada.

– O que vão pensar os outros? Este pobre infeliz não tem mulher?

Minha atitude incomodava seu coração, pois os vizinhos eram cruéis, não poupavam comentários, colocando em dúvida sua condição de perfeita dona do lar.

O tempo fez germinar em mim as manias. Sentia medo diante dos limites do seu poder, pois vinha num crescendo me roubando coisas. Já não era a mesma agilidade a mover braços, pernas. A visão titubeava, se escondia, a cabeça enganava de forma dura. A velhice chegava carregada de crueldade, fragilidade, criando falsas expectativas.

As dificuldades, a labuta do dia-a-dia faziam com que muitas vezes Laura não me entendesse. Em certos momentos era compreensiva, carinhosa buscava formas para me fazer mudar:

– Você precisa parar com isto. Só por causa homem!

Às vezes, como naquele momento, ela era tão somente crueldade:

– Você precisa parar com isto. Só por causa de uma camisa? Olhe para o seu estado, homem de Deus! Assim você acaba morrendo antes do seu neto virar homem.

Laura sabia como atingir. Falar do neto era trazer à tona minha impotência. Era mostrar de forma fria que o tempo tinha me roubado poder. Meu coração enchia-se de tristeza diante desse assunto.

Por mais que tento, não consigo entender. O carinho, a ternura alimentou Laura durante a gestação. Nada explica a atitude de Marcos. Eu amei com intensidade cada forma que ele desenhou na barriga de sua mãe. Eu e Laura sentíamos juntos os seus chutes desmedidos. O cabelo de Laura ganhou intensidade durante a gravidez, contrariando o que dizem:

– Grávidas perdem cabelo.

E nós, felizes, ríamos desta inverdade, em nosso estado grávido.

O tempo seguiu calmo, preciso. A casa preparou-se para a chegada do rebento. Com as pessoas chegaram esperanças, fraldas, risos, brinquedos... Cores vivas enfeitaram o pequeno quarto.

– Cores estimulam, ajudam a desenvolver a mente das crianças.

Marcos aconteceu em nossas vidas num outono. Caía uma chuva pesada.

– Sorte – diziam alguns.

– Desenganos – outros.

Ele era forte, bonito, porém inquietava-me o tom claro de sua pele.

– Verifiquem se são escuros o saquinho e a ponta da orelha. São eles que determinam a cor. Ouvíamos atentos, porém a felicidade era tanta que chegávamos a esquecer tal questão.

O pequeno crescia confirmando as previsões.. A cor tomava consistência. As formas de Laura projetavam-se no pequeno rosto. Como dois espectadores assistíamos impassíveis as transformações de cada dia. Nós o invadíamos com nossa presença e ficávamos tomados da sua. Comemorávamos cada novo gesto, cada balbucio. A alegria foi muitas vezes substituída pelo medo diante de uma febre que não cedia. Era imensa a felicidade diante da descoberta do chá para cura de uma dor qualquer.

O pequeno crescia e nossas mãos já não continham suas novas formas. Somos os dois a conter os seus impulsos. Suamos e muito ante as brincadeiras intermináveis:

– Mais uma vez... Só mais uma... – Rolavam-se bolas, carrinhos, alegria. O pequeno não se cansava. Queria mais, sempre mais.

O riso de Laura diante da situação me fazia sonhar com Marcos adulto, vitorioso, transpondo de forma ímpar os obstáculos que atravessam em nossas vidas.

Passaram-se vários outonos. O pequeno trans­formou-se. Tornou-se homem. Uma ternura imensa me invadia ao vê-lo tomar entre as mãos o rosto da mãe. Os dois eram lindos em cada uma das partes e proporções.

Outros outonos aconteceram, outras chuvas. Meus cabelos começaram a embranquecer. Os sinais da velhice acentuavam-se. Meus pés não suportavam o calor. Tomavam proporções imensas, inchavam, incomodando demais.

Laura parecia inatingível pelo tempo. Manti­nha-se firme. Buscava sempre meios de conciliar idéias, posições conflitantes.

– Casa onde só tem homem dá nisto: todos querem a razão.

Estas palavras acabavam sempre por nos fazer rir e esquecer por algum tempo os desentendimentos que ocorriam por um motivo ou outro.

Meu coração já não suportava mais entrar em desacordo com Marcos. Cheio de medos, sentia-me próximo de um desgosto maior. A calma, a tranqüilidade do lar parecia prestes a se quebrar. Apesar do amor que sentia por nós, Marcos não recuava frente às suas posições. Eu sofria. Laura buscava formas de atenuar meu sofrimento, assim amenizava também sua própria dor.

Ela chegou numa tarde de sol. Marcos tinha suas mãos fortes presas às dela. Sorriram. Laura cor­respondeu ao riso de forma tranquila. A decepção expressou-se em meu rosto. Marcos percebeu e o sofrimento do seu coração espelhou-se através do olhar. Foi inevitável o choque. Ela não trazia, nem de longe, a forma bela de Laura. Um rosto pálido, sem vida. Um cabelo sem energia, força ou ousadia. Uma expressão pobre no olhar.

O que aconteceu com o conceito de beleza de Marcos? Em que momento apagou-se em sua me­mória a beleza da forma dos seus?

O sol parecia queimar a tarde, o ar quente, pa­rado, fazia sofrer as plantas que enfeitavam a sala. Desfalecidas, pareciam também sofrer junto comigo. O que explica esta radical rejeição? O que teriam dito aos seus ouvidos nas esquinas?

Como pôde? Como pôde Marcos trair de forma tão cruel a beleza de Laura? Um ato de violência é o que vejo. Marcos, sem dúvida, decepou diante de nós cada um dos seus membros.

Hoje mais que nunca tenho toda certeza: vive­mos o tempo todo uma mentira. Essa que agora re­velou-se.

Era uma armadilha. Já não tinha o controle da situação. Não percebi a intensidade das forças que ocultavam-se entre os espaços da rua, jardins e va­randas de minha casa. Mascaradas, envolventes, prenderam Marcos de forma irremediável. Estava certo disto.

A amargura tomou o meu Ser. Não conseguia aceitar minha parcela de culpa na história. Às ve­zes, desatinado, imaginava rumos novos, favoráveis para o fato. Laura, sempre paciente amiga, trazia-me à razão. Aliviava a dor que cheguei a esquecer, em muitas tardes de domingo, diante da inquietude do meu neto correndo entre os espaços da varanda e cozinha, buscando sempre algo que o agradasse. Esta cena emocionava-me e enchia de ternura o olhar de Laura. A mesma inquietude agita meus pen­samentos. O tempo não apagou em meu peito o anseio por uma explicação lógica para a traição de Marcos.

Tenho desejado com a alma que meu filho não tenha, simplesmente, apostado sua dignidade neste tipo de aliança.

– Beba um gole desta água com alecrim e se acalme. Trago já sua camisa.

– Sim, querida – respondo aliviado, embora o suor ainda brote em minha fronte.

(Cadernos negros 16, p. 93-101)

 MARIA

"Terrível e lastimosa sorte é a de um escravo.
Se some, é sempre
o pior e a mais vil iguaria,
se Veste, o pano é miais grosseiro e o traio
o mais desprezível,
se Dorme, o leito é muitas vezes a terra fria ou
uma tábua dura.
O trabalho é contínuo, a lida sem sossego,
o descanso
inquieto e assustado, o alivio pouco e quase nenhum;
quando se descui­
da, teme, quando não pode, violenta-se,
e tira da fraqueza força.”

Jones
Racismo e Preconceito
 

Sim, dizia ele, nós trazemos, dentro de nós, este espírito de luta de nossos antepassados.

Maria adora quando Jorge lhe declama este trecho, tirado não sabe de que livro mas que a encanta muito. Ele sempre lhe diz, mas ela sempre esquece. E ela cada vez mais se encantava com aquele rapaz, pois ele apresentava qualidades que até então ela só encontrara em brancos, mas também, dizia ela, é que ele fizera até o segundo ano de filosofia; não continuara devido a alguns problemas de família. Esta explicação era sempre dada quando Jorge impressionava também suas amigas.

Maria já não pensava em mais nada a não ser ter aquele cara que a impressionara tanto, não só a ela mas a sua família, amigos. Como era desembaraçado, como sabe dialogar, como parece saber a respeito de tudo, diziam todos.

Jorge, por sua vez, se sentia cada vez mais orgulhoso por ter despertado paixão naquela criatura aparentemente tão frágil, bem inde­fesa, com tudo para aprender, menina de família – estava quase sempre acompanhada de sua mãe, senhora já de meia idade ou de sua irmã bem mais nova que ela.

Maria encontra em Jorge tudo o que sempre procurara no negro e que foi sempre negado pela sociedade na qual vivemos, uma inteligência, um QI, como querem eles. Jorge encontra em Maria tudo aquilo que dignifica um homem, uma menina de família, nem muito inteli­gente e nem muito burra, e sobretudo com uma virgindade acima de qualquer suspeita; dizia sempre ele, virgindade é algo muito raro hoje em dia. Quando ele dizia isto ela sempre ficava um tanto confusa, pois varias vezes o escutara dizendo coisas contra virgindade, no centro comunitário do qual ele fazia parte, mas ela jamais ousou contestar o que quer que seja dito por ele, pois quem era ela para discutir com ele? As poucas vezes que tentara, saira mal, sobretudo no entender dele.

A idéia de casamento, cada vez mais, tomava vulto nos dois, mas como nem toda felicidade é completa, ambos se encontravam diante de um sério problema: mesmo com a grande inteligência e capacidade de apreensão da realidade social em que vive, Jorge não consegue um bom emprego. E Maria como toda boa moça de família costuma frequentar missas, e, como boa cristã, faz sempre promessas, pedindo isto e aquilo aos santos; pede pois, com todo fervor, para que Nossa Senhora, Mãe e padroeira deste imenso Brasil, ajude o seu Jorge conseguir uma boa colocação, graça esta que, acredita ela, não ser difícil para a Santa realizar, uma vez que Jorge é um cara instruído e de boa aparência.

Em maio e realizado o grande sonho de Maria, no dia 25, para ser mais precisa. Maria jamais irá esquecer este dia, sem dúvida o mais lindo de sua vida. A igreja fora toda enfeitada de margaridas brancas, estava linda, quase todos os convidados foram à igreja, sua mãe ficou bastante satisfeita pois até o candidato a deputado do bairro compa­receu às cerimônias. Jorge estava lindo. Não ficou nem um pouco nervoso durante as cerimônias. Neste dia, a família de Maria gastou nulo o que tinha e o que não tinha. Seu pai fizera questão de arcar com a festa e toda sua despesa sozinho, e já havia dito que não queria saber de qualquer comentário que não fosse favorável à festa, e realmente, tudo correu muito bem.

Maria, como havia prometido, um mês após o casamento, leva a Aparecida do Norte, conforme prometera, uma fotografia do seu grande dia, e deixa-a aos pés da Santa, isto pela graça concedida: O “emprego” de Jorge e seu casamento. Hoje, após 4 anos de casada, Maria com três filhos, na véspera do 4o, tem plena consciência da falta de sorte de Jorge, a inveja, disse uma comadre dela, deve ser o que mais atrapalha, por ser ele bonito, inteligente. Pois é, diz ela sempre com pesar: o máximo de tempo que ele conseguiu ficar em um emprego foram cinco meses. Às vezes, quando falta o que comer em casa, Maria chega até pensar que seria melhor se seu marido não fosse nem tão inteligente e nem tão bonito, mas logo ela apaga este pensamento de sua cabeça, ela ama em Jorge, sobretudo, sua grande inteligência. Em horas de grande desespero seu marido tem sempre palavras de alento. "Tudo, querida, tem remédio", e Maria sabe que po­de contar com sua mãe. Ela durante todos estes anos não lhe decepcio­nou nenhuma vez, como o próprio Jorge diz. Sua mãe é ponta, nunca dá furo. O que mais deixa Maria magoada são certos tipos de comentários. Por exemplo: sua irmã teve a ousadia de dizer, outro dia, que o seu Jorge é um grande vagabundo. Diante da infâmia, Maria deixou de conversar com sua irmã durante 5 meses. Uma amiga, outro dia, disse ter visto Jorge em uma festa com uma outra garota. Mas Maria não acredita nestes tipos de comentários a pedido mesmo do próprio Jorge, que diz sempre e com muito carinho: "Só quem pode realmente saber o que sou, ou quem sou é você, que convive comigo 24 horas no dia. Me diga, amor, quem mais pode saber?" Jorge, diz ela, é muito mais que um marido, é um amigo, um amante, a ele só falta um pouco mais de sorte que, sem dúvida nenhuma, um dia ele terá. Maria tem hoje mais certeza disto do que ontem, pois isto lhe foi dito por uma Mãe de Santo de um terreiro muito bom que lhe indicara a madrinha de sua filha mais nova que costuma frequentar terreiro. Quem não gosta deste tipo de coisa é sua mãe; seu maior desgosto, diz ela, é ver sua filha atrás disto. Diz ela ser crendice de preto ignorante. Mas na verdade Maria já não acredita na força destes Santos de Igreja, só oração ela acredita que não funciona, e outra coisa que ela costuma dizer é que neste mundo onde o dinheiro impera, todos, inclusive os Santos, só lhes prestarão favores mediante pagamentos. Jorge costuma também dizer que ignorância é achar que as religiões africanas são crendice. Apesar de Jorge lhe dizer sempre isto, ele não gosta também que Maria vá a centros, o que ela sempre faz escondido para não vê-lo nervoso.

Jorge sempre lhe explica o porquê de não gostar que ela frequente isto mas ela nunca entendeu. Em dias chuvosos ela se angustia muito, mas ela sempre fora assim, os dias de chuva foram sempre os piores. E é nestes dias que ela maldiz sua sorte, sente vontade de deixar tudo, mesmo o bonito e inteligente Jorge, chega mesmo a pensar que sua irmã tem razão, de que ele deveria se esforçar um pouco mais, que beleza, como diz o outro, não vai à mesa. Ma$ assim que Jorge chega, todo mal pensamento se vai. Jorge tem um poder mágico de lhe aliviar a canseira quando ela chega da faxina da casa de alguma branca azeda; de lhe aliviar o cansaço depois de um tanque de roupa lavado, de uma noite mal dormida devido ao choro de uma criança que quer mamar, que sujou as fraldas ou que está com dor de barriga. Enfim ele tem o poder mágico de aliviar o cansaço da luta pela manutenção do lar que, claro, ele só não o faz devido à falta de sorte, sorte que hoje ele não tem mas que terá amanhã, assim lhe dissera uma cartomante e, mais recentemente uma Mãe de Santo.

Maria de vez em quando, aproveitando o humor de Jorge, pede para que ele declame aquele trecho. Jorge é muito bom, quase sempre entende, e a parte mais comovente é a final, pois toca-lhe bem no fundo, diz ela.

“Quando não pode, violenta e tira da fraqueza força”. 

(Cadernos Negros 4, p. 97-100)

BRANCA HISTÓRIA
 
Hoje num esforço sobre humano
lutamos pela integridade do Ser
que a branca história
covardemente esfacelou.
 
Nossa luta deixou de ser
contra matas serradas
vegetações turbulentas
touceiras de espinhos
flechas, açoites.
Ela se dá bravamente
no asfalto, a céus claros
horizontes abertos.
 
No entanto hoje
não é menos intensa, imperiosa
explode ela na garganta do bóia-fria
nas veias da doméstica
e em todas as dignas bocas negras
que sobrevivem
à dizimação da abolição.
            (Cadernos Negros 9, p. 18) 
 
 
JUREMA PRETA
 
Ri, Jurema, Ri
Das leis que regem
a discriminação racial.
 
Ri e muito Ri
                 gargalha
Daqueles que dizem que  (–De maneira
alguma!) ela é Natural
pois para eles, Só naturalmente
O Branco é o Natural.
Mas!?
         se teus olhos cheiram
se teu nariz mira
se tua boca escancara um riso largo
se teus cabelos ao vento se impõem
  
se teus braços abraçam
se tuas pernas te conduzem
É natural que somente natural
é o que podes ser.
Então Ri, Jurema, e muito Ri
gargalha
da falta de originalidade
– na naturalidade –
Do Branco O Natural.
                  (Cadernos Negros 9, p. 19)

 

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Velho atabaque

Velho atabaque
quantas coisas você falou para mim
quantos poemas você anunciou
Quantas poesias você me inspirou
às vezes cheio de banzo
às vezes com alegria
diamba rítmica
cachaça melódica
repetição telúrica
maracatu triste
mas gostoso como mulher...

Triste maracatu
escravo vestido de rei
loanda distante do corpo
e pertinho da alma
negras sem desodorante
com cheiro gostoso
de mulher africana
zabumba batucando
na alma de eu...

Velho atabaque
madeira de lei
couro de animais
mãos negras lhe batem
e o seu choro é música
e com sua música
dançam os homens
inspirados de luxúria
e procriação
Velho atabaque
gerador de humanidade...
             (O poeta do povo, p. 73)

A Preta Benedita

Nascimento Moraes

Conheci a preta Benedita, na casa do meu colega do Liceu, Joaquim Alves Leitão. Era uma mulher de estatura regular, cara chupada, de movimentos ligeiros, olhos piscos e voz fanhosa. Benedita morava na casa de Joaquim. A princípio não me interessou a figura de Benedita. Cuidei fosse a criada da casa.

Mas com o se passarem os dias, o ambiente familiar foi quem me desenhou o perfil moral daquela preta.

Estudávamos na varanda da casa dele, três vezes por semana, e três vezes na salinha de minha casa, porque os meus livros eram dele, e os dele eram meus.

Ao tempo em que andei pelo Liceu quase todos os estudantes da minha turma eram pobres, mas muito amigos uns dos outros.

Ao princípio do ano, depois que recebíamos dos nossos professores as notas dos livros, reuníamos para dividir as despesas. Em regra geral cada um se encarregava de comprar um livro.

Se havia necessidade de comprar um livro caro, como um dicionário ou uma "tábua de Callet", então o preço do livro era dividido por todos. À medida que íamos avançando no curso, os livros iam passando às mãos de outros estudantes pobres que se aproximavam de nós. E, quando terminava o curso, os livros restantes eram divididos pelos pobrezinhos, como nós, que vinham ao nosso encalço.

Reparei que o Joaquim, seus dois irmãos e suas irmãs obedeciam e respeitavam a preta.

Benedita não se vexava de lhes passar carão, quando mal se conduziam. A dona da casa, D. Francília, tratava a preta como se fora uma de suas maiores amigas. Não foram poucas às vezes que as vi, debaixo da mangueira, no quintal, conversando a sós.

Um dia, por motivo que não me ocorre agora à memória, falei à minha mãe a respeito da preta Benedita.

– Benedita, respondeu minha mãe, é quem sustenta a casa de teu amigo. D. Francília foi uma senhora muito rica. Os seus pais eram ricos e rico era o seu marido, o coronel Leitão. Os pais de D. Francília empobreceram do dia para a noite.

De uma feita, deitaram-se ricos e, ao amanhecer, eram pobres. Os credores da casa comercial do coronel Alves, pai de D. Francília, levaram tudo que ele possuía. Naqueles tempos, a falência de uma casa comercial desonrava os seus chefes. A família Alves fechou as janelas do seu palacete. Naqueles salões não mais entrou a alegria. O piano de cauda ficou mudo. As meninas não frequentaram mais as famílias de suas relações. Iam com D. Francília à missa, pela madrugada. Passaram a trajar com maior simplicidade. As jóias, que eram muitas, foram fechadas numa velha caixa de pau santo.

O Coronel poucas vezes saía à rua. E o que mais doía ao coronel Alves era que ele não tinha a seu lado aqueles velhos amigos do tempo das vacas gordas. Quando o Coronel morreu, D. Francília ainda não se havia casado com o coronel Leitão, que estava na crista da fama. Era diretor de bancos e sócio de grandes empresas, inclusive uma de navegação.

D. Francília era muito bonita e prendada. Não sei como se namoraram. Diziam os amigos da família que o namoro principiou no dia em que ele e alguns comerciantes foram ver o sobrado de sua mãe para comprar.

O casamento surpreendeu a todos, porque, segundo constava o coronel Leitão comprara o sobrado por um preço vil, e que, dois meses depois, falecera a viúva ralada de desgostos, porque o coronel Leitão se aproveitara de sua pobreza para arrebatar-lhe o único bem que lhes restava.

– Não era o único bem, interrompeu meu pai.

– Não era?

– Não. O único bem ficou com a D. Francília.

Minha mãe não compreendeu.

E meu pai, depois de tirar uma cachimbada:

– O único bem era a preta Benedita, que os credores não quiseram avaliar, nem o coronel Leitão quis comprar quando a mãe de D. Francília, a pedido da preta a ofereceu para ser sacrificada.

– E depois? perguntei curioso. Meu pai continuou:

– Depois o coronel Leitão entregou-se à paixão do jogo. E lá se foi o dinheiro todo. Vendeu tudo para jogar! No "casino" e numa saleta de sua casa enterrou ele todos os seus haveres.

Nem os escravos de duas fazendas que ele possuía no Mearim foram poupados!

E depois de refletir um momento, meu pai continuou:

– O coronel Leitão suicidou-se, vexado pela desonra e pelo descrédito. Num domingo, às 11 horas do dia, encontraram-no morto num sitio de sua propriedade, à margem do rio Cotim, para onde saíra a passeio, pela madrugada. D. Francília ficou com os filhos nessa mesma casa em que ainda hoje se acha, que fora de sua mãe, e que o Coronel comprara por um preço vil e onde passara a residir depois de casado. Os amigos dos bons tempos desapareceram, as suas três irmãs, muito pobres, não a podiam ajudar. Casadas com homens pobres e sem posição arrastavam vida angustiada.

Apenas uma criada ficara com ela – a preta Benedita. Chegou o 13 de Maio de 1888, e os escravos abandonaram os senhores, a maioria a rogar-lhes pragas tremendas. Em algumas fazendas deram-se cenas desagradáveis. Senhores que eram carrascos foram humilhados.

Muitos feitores perversos e desumanos foram surrados e esbofeteados pelos escravos. Aqui em São Luís bandos de escravos percorriam as ruas gritando a esmo, ou cantando estrofes de cativeiro. Numerosos, embriagados, em grupos, passavam em frente da residência dos senhores e lhes dirigiam insultos e ameaças.

Muitas famílias pobres ficaram em uma má situação, porque os poucos escravos que haviam conseguido comprar a custo de muitos sacrifícios e privações, deixaram-nas sem se despedirem. Desses escravos, os homens eram operários e as mulheres trabalhavam em pequenas indústrias domésticas. Escravos e escravas "pagavam a semana" aos seus senhores, que pouco mais ganhavam em pequenos empregos.

Pela explicação de meu pai, compreendi que a escravidão, nas cidades, transformara-se num vício social. O não ter escravos era um indício de pobreza e desprestígio nas famílias. Pelo que as famílias pobres – mas que sonhavam com uma posição melhor, pelo casamento das filhas, não mediam esforços nem sacrifícios para possuir meia dúzia de escravos que, trabalhando em seus misteres de artesão, ajudavam-nas com uma contribuição semanal, ficando-lhes um terço do salário para as suas despesas particulares ou reservadas.

Os agiotas tiveram, então, dias de fartura de bons negócios. Empenhavam, amiúde, jóias caríssimas que eram cuidadosamente guardadas pelos seus possuidores. Relógios suíços da melhor qualidade lhes eram oferecidos pelos que se viram cobertos de pesadas necessidades.

São Luís durante alguns anos depois da abolição apresentou um espetáculo sombrio...

A preta Benedita não se separou de D. Francília. Para ela não houve abolição. D. Francília alimentara-se de seu leite. Ela a carregara aos seus braços, durante a sua meninice. Dera-lhe os cuidados que não encontrara no regaço de sua mãe. Com ela perdera as suas noites, cantando-lhe modinhas para fazê-la dormir. Quantas lágrimas chorara por causa dela! Quantas vezes a arrebatara das mãos de sua mãe, que, sem paciência, a queria bater por qualquer coisa!

A preta Benedita ficou. Depois que as jóias de D. Francília foram para os cofres dos agiotas, levadas por ela, lá também se foram as suas!

D. Francília mal sabia ler e escrever, como os seus irmãos e irmãs! D. Francília não sabia trabalhar. Só a preta Benedita era capaz de trabalhar. E a preta multiplicou-se, num trabalho exaustivo. Fazia doce de todas as qualidades e todas as tardes saía a vendê-los num tabuleiro, coberto por uma toalha muito alva e muito fina.

Fazia gengibirra que era muito apreciada e de que tinha grande freguesia nas tavernas. Fazia doce de coco e vendia aos quilos nas casas das famílias. A canjica, o pé-de-moleque e o arroz de cuxá davam bom rendimento.

D. Francília ajudava-a em casa, mas não aparecia nunca nesses negócios. A preta Benedita era quem enfrentava a luta. Adquiriu crédito nas tavernas e no mercado. Toda gente queria negociar com ela, porque era séria e pontual nos seus tratos. Por último, um português do Desterro fechou com ela um negócio lucrativo – fornecer o almoço e o jantar para os seus trabalhadores encarregados de vender carvão na cidade. A preta Benedita deu conta do serviço, a contento do português, que passou a emprestar-lhe o dinheiro de que precisava.

E as crianças de D. Francília frequentavam escolas particulares, bem vestidas. Não lhes faltavam livros, nem lápis, nem papel, nem caneta e pena. O Joaquim era um rapaz inteligente e estudioso. Era o segundo filho do casal, e afilhado da preta Benedita, como todos os filhos de D. Francília. Mas ao Joaquim dispensava uma amizade especial.

Era a menina de seus olhos. Quando estudava na varanda, a preta arranjava sempre uma guloseima para nos dar.

As meninas precisavam de aprender piano. A professora era uma cantora francesa, casada com um maranhense de boas letras, que nas horas vagas fazia verso. Vivia de um bom emprego e tinha avultada renda de uns dinheiros que lhe deixaram os pais.

A francesa, porque não precisasse de ensinar, aos alunos que lhe apareciam, para terem o gabo de se apresentarem como discípulos de uma estrangeira, cobrava-lhes também a vaidade.

As moças "lamechas" de São Luís aprendiam com ela.

A preta Benedita não consentiu que as filhas de D. Francília aprendessem a tocar piano com outra professora.

O Joaquim assim que acabou o curso de preparatório, foi para Recife estudar Direito. Assim o quis a madrinha.

Quando a preta Benedita, muito alcançada em anos, morreu vítima de um beribéri galopante, D. Francília já sabia trabalhar. Era uma senhora cheia de experiências úteis à vida. Sabia fazer tudo, até cozinhar e coser. Auxiliada pelas meninas tomou conta das pequenas indústrias e negócios com que a preta durante quinze anos sustentava a casa.

O Joaquim bacharelou-se e voltou a São Luís, para tomar conta da família. As irmãs por seus merecimentos intelectuais faziam parte da boa sociedade. A professora casou-se com um violonista pernambucano, de grande. fama. A pianista casou-se com um notável professor de S. Paulo. A mais velha, depois de se casar com um alto funcionário federal, formou-se no Rio em odontologia. Eram moças sóbrias de gestos, prendadas e de boa conduta.

Os dois irmãos de Joaquim colocaram-se bem no comércio de São Luís, de onde saíram como guarda-livros, um para Belém e outro para o Amazonas.

D. Francília ficou em companhia do filho que durante dois anos fez clientela nesta cidade.

Por sua morte o Joaquim foi residir em São João-da-Barra, no Rio. De uma feita, conversando comigo sobre os lances da vida de sua família, abriu a camisa e mostrou-me uma corrente de oiro cravejada de brilhantes e engastado nela um retrato.

– A preta Benedita! Exclamei.

O retrato era perfeito.

O retrato ele mesmo tirara, no quintal da sua casa, um domingo, pela manhã, para pilheriar com a preta.

Ela estava com o seu cabeção de mangas curtas, muito justo no pescoço. A cabeça branca contrastava com a pele negra.

Os olhos pequeninos, numa expressão de contrariedade.

As mãos apoiadas nas cadeiras e o lábio inferior torcido para o lado esquerdo.

Ficamos os dois a olhar para a preta e com o espírito transportado para muitos anos atrás.

Sabes o que ela me disse nesta postura?

Não sei...

– Seu Quinca você quer fazer de mim uma palhaça?

Espere, que eu vou dizer à sua mãe o pedaço de atrevido que você é!

– E eu por causa deste retrato quase pego uma surra!

E, guardando o retrato:

– Cada um de nós tem um retrato deste. Vou mandar ampliar o meu para colocar no meu quarto de dormir.

E com muita saudade:

– Minha mãe Benedita! Minha mãe e minha avó, porque foi também a mãe de minha mãe! Bebemos o teu leite, bebemos o teu sangue, arruinamos as tuas energias e, escravizamos a tua alma! Que nos poderias dar mais?

E seus olhos, cheios de lágrimas, derramavam-se sobre o retrato da preta.

(In: Contos de Valério Santiago, p. 95-101)

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