DADOS BIOGRÁFICOS

A história
só faz sentido

quando contada
no plural,

história no singular
 é poder.

É livro
sem contracapa,

diálogo
sem interlocutor,

é Ocidente
sem Oriente,

é ego,
sem alter ego,

é texto
sem polifonia,

é monólogo.

Lílian Paula Serra e Deus
2017

Mineira de Belo Horizonte, Lílian Paula Serra e Deus é professora, Mestre e Doutora em Letras pela PUC Minas. Desde seu mestrado vem pesquisando as literaturas africanas de língua portuguesa, a partir de um olhar contemporâneo atento aos muitos diálogos interculturais, passados e presentes, estabelecidos no âmbito da lusofonia, em especial no tocante às relações dialógicas entre literatura e memória.

A autora iniciou sua carreira como docente do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais – IFNMG. No momento, atua como Professora Adjunta na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB, no Campus Malês-Bahia. Cabe ressaltar que é uma das pesquisadoras integrantes do GEED – Grupo de Estudos em Estéticas Diaspóricas, vinculado ao projeto “Desdobramentos e proliferações da memória nas culturas/literaturas africanas de língua portuguesa”.

Lílian Paula estreia na literatura em 2017 com a publicação de A palavra em preto e branco. Em sua poesia, temáticas como a violência de gênero e de raça são abordadas de formas sensíveis e inventivas, dando sequência a uma nova linha de escritoras negras que reivindicam de forma crítica o direito à fala e à representação de gênero no sistema literário nacional. Em um dos poemas, provoca: “Quem sabe um dia o discurso em cores / e não mais em preto e branco?”

Já em 2020 desvela sua faceta de ficcionista no livro de contos Não é preciso ter útero para ser mulher. Nessa empreitada pelo âmbito das pequenas – e profundas – histórias, a escritora continua a explorar as questões de gênero atravessadas pela raça e a classe, trazendo reflexões plurais sobre o que é ser mulher em uma sociedade marcada pelo patriarcalismo e pela misoginia. E banhada pela violência cotidiana. O conto “Necropolítica” indica em seu início o tom que prepondera em muitos dos escritos da autora: “Jura que eles pensavam que encontrariam algo ali? Não, eles tinham certeza de que o que procuravam não estaria ali, mas era preciso atirar em alguém. A ordem era mirar nas cabecinhas... e fogo.” (p. 42). Por estas pequenas amostras em verso e prosa já pode aquilatar a qualidade e a densidade dos escritos de Lílian Paula Serra e Deus.

Abaixo, o literafro reproduz trecho da entrevista de Lílian Paula Serra e Deus concedida ao pesquisador Wellington Marçal de Carvalho e publicada na revista Igarapé.

Lílian Paula por Lílian Paula

 

Poderia compartilhar algumas informações de ordem mais biográfica?
Eu sou mineira, de BH e agora morando em Salvador, por causa do meu trabalho como professora na UNILAB, entendo ainda mais o quanto essa identidade mineira ressoa forte em mim.  Em meio à pandemia, quarentena, eu entendo mais do que nunca que meu lugar de pertencimento é Minas Gerais.
Com relação à religiosidade, sou umbandista. Meu avô, minha maior referência de vida, era católico fervoroso. Foi com ele que aprendi a rezar, foi ele que me apresentou Deus e todos os santos e anjos com os quais convivi e que me protegeram durante toda a minha infância, embora o sagrado mesmo, naquele momento, para mim, estivesse em minha relação com meu avô, meu preto velho. (rs)
Eu sou médium e na adolescência os processos de mediunidade se fizeram muito presentes em mim. Eu não sabia muito bem como lidar com o que me acontecia, não entendia os processos, mas também não resistia a eles: às vezes, muitas vezes, ouvia vozes, desmaiava quando em hospitais e isso me fez procurar um entendimento maior sobre o que acontecia com meu corpo. Foi aí que uma amiga me apresentou a Umbanda, aos meus vinte e poucos anos. Desde então, o sagrado para mim passou a morar ali, junto aos pretos velhos, orixás, caboclos, exus, pomba-gira. Sempre tive muito orgulho da casa de umbanda que frequentei ao longo de quase duas décadas, quando ainda morava em BH. Era, ou melhor, ainda é, uma casa comandada por uma senhora linda, uma mulher, D. Ruth, que hoje deve estar com mais de oitenta anos. tenho também acompanhado o movimento que a Umbanda tem feito de fortalecimento  de  publicações  importantes  em  meio  a  um  cenário  de  perseguições,  intolerância religiosa, obviamente, pautadas no racismo sistêmico.
Com relação à minha infância, esse é um lugar para o qual sempre volto. Acho que, de certa forma, todos nós estamos sempre em busca de um retorno para esse lugar da infância, mesmo que em alguns momentos não tenha sido fácil estar lá. Minha infância foi muito difícil porque perdi a minha mãe, a grande referência de toda criança, muito cedo. Ela morreu quando eu tinha de cinco para seis anos. Não me lembro dela, mas sei que passei uma vida buscando por essa mãe. Mesmo que eu não tenha tido muito contato com ela, acho que meu amor pela leitura veio muito da leitora que talvez ela fosse: na minha casa da infância havia muitos livros com a assinatura dela na primeira página. Eram esses os livros que eu pegava para ler. Então, de alguma maneira, foi a literatura que me apresentou para a mãe com a qual só tive contato através da ficção, entende? Meu avô também foi uma grande referência para mim com relação à leitura. Ele sempre lia um livro para mim e para meus irmãos quando nos colocava para dormir. Então, literatura, para mim, antes de qualquer outra coisa, é afeto.

Como foi construída sua trajetória escolar?
Minha vida inteira estudei na mesma escola particular de classe média/classe média alta de BH. Era uma escola de brancos e a minha cor sempre destoou ali. Foi na escola que experimentei pela primeira vez o racismo, que entendi que a sociedade se dividia em virtude da cor e foi lá que entendi também que quanto mais pigmentada fosse a pessoa, maiores seriam os muros que ela teria que atravessar. Embora negra de pele clara, em um país em que o racismo é pigmentocrático, os efeitos do racismo sempre se fizeram muito fortes naquela escola para mim.

Como vê a recepção do seu livro de poesias, o Palavra em preto e branco (2017)? Quais as temáticas te inspiraram e foram materializadas na lírica naquele livro?
A recepção do meu primeiro livro foi muito positiva. Lembro-me que eu era professora no IFNMG à época e que meus alunos me pediam o livro e depois vinham comentar sobre ele comigo, sempre de maneira muito carinhosa. Hoje penso que a identificação talvez tenha se dado por ser um livro com poemas da vida inteira, até ali. Há poemas da minha adolescência, da minha vida adulta, está tudo lá. Lá estava a mulher que eu era naquele momento e vejo que já havia o questionamento do que é ser mulher nesse mundo de “machos”, que acho que é a temática que me motiva a minha escrita.

O que significa o ato de escrita, de elaboração literária, para você?
Eu sou na escrita, Wellington. Eu existo a partir desse lugar que para mim é cura, mas também é um lugar político, um lugar de existência, ressignificações e resistência. Nunca acreditei em uma literatura dissociada da política. Mesmo quando não há uma motivação política explícita em um texto literário, ele é político por partir de uma intenção ingênua de não o ser. Literatura é, para mim, sobretudo, política no sentido mais amplo da palavra; na perspectiva daquilo que pauta as nossas relações cotidianas, nossas escolhas, nossa rotina, nossas desigualdades, nossas diferenças.

Você teve um conto publicado em uma das edições dos Cadernos Negros. Pode nos falar sobre esse processo?
Eu sempre escrevi crônicas, algumas publicadas em jornais de Minas e poemas, mas nunca havia escrito um conto. Eu queria muito publicar nos Cadernos Negros e naquele ano a edição era dedicada aos contos. Foi quando decidi que escreveria meus primeiros contos: Necropolítica e Fake News. Necropolítica foi aprovado pelos críticos/jurados, mas Fake News, embora muito elogiado por alguns, não foi entendido como conto por todos, por isso não entrou na edição. É aquela coisa das pessoas quererem rotular o que você escreve; quererem aprisionar o gênero em uma forma única. Isso me incomoda um pouco. Os gêneros, sobretudo os literários, nascem de rupturas, são híbridos e não cabem em classificações estanques. Não é somente a temática que rasura/problematiza o sistema; a forma também o faz. É assim que penso a minha literatura.
Enfim, apesar disso, participar dos Cadernos Negros foi uma grande alegria para mim, que se renova através da próxima edição da antologia, que trará novamente um texto meu, um poema acerca do colorismo.

Durante os primeiros meses da pandemia, em 2020, você produziu um conjunto de contos que formou o seu segundo livro. Poderia compartilhar como isso se deu? Como vê a recepção dessa obra?
Aproximadamente um mês e meio antes da quarentena, eu perdi meu pai, através de um processo muito difícil e doloroso para ele e para a família. Numa semana meu pai estava dirigindo, caminhando, vivendo uma vida aparentemente normal; na outra ele estava internado, preso a uma cama de hospital e a um corpo físico profundamente adoecido.  Pedi licença do trabalho e fui para BH acompanhar meu pai nos seus últimos dias, embora ele não tivesse essa consciência.  Desde então, ao longo de 15 dias, estive, diuturnamente com ele no hospital e todo o sofrimento dele me marcou muito. Voltei para Salvador, onde moro e trabalho, e uma semana antes da quarentena se efetivar, em março de 2020, a vida me encaminhou para uma separação de um casamento de muitos anos. Aí, novamente, veio para mim a necessidade da literatura como elaboração, no sentido da categoria psicanalítica mesmo: era preciso lidar com aqueles dois lutos em meio ao isolamento social. Então, mais uma vez, a literatura foi o meu lugar de cura. Muito no sentido daqueles versos do Drummond: “meu verso é minha consolação/ meu verso é minha cachaça/todo mundo tem sua cachaça”. Foi quando mergulhei na escrita do livro Não é preciso ter útero para ser mulher e dali eu, efetivamente, renasci.
A recepção do livro tem sido incrível, muito melhor do que eu esperava. Tenho recebido retornos muito positivos sobre as narrativas, o que tem me deixado muito feliz. Tenho tido encontros muito felizes também: ouvir o Marcelino Freire, por exemplo, um escritor que admiro tanto, tecer elogios tão generosos sobre o meu texto, deixou-me em um lugar de muito acolhimento. Tenho assistido a leituras sobre meus contos em canais do Youtube, tenho sido convidada para falar sobre o livro em grupos de pesquisa e essas discussões têm se replicado nos mais diversos espaços. Isso tem sido muito importante para mim, a gente escreve para ser lido.

Quais os projetos literários em andamento? Você está a trabalhar na escrita de seu primeiro romance, não é mesmo!? O que está para nascer?
Sim, estou escrevendo meu primeiro romance. Nele, os grandes protagonistas serão uma mulher negra de pele clara, lida como parda pelo IBGE, e a história do país, que tento (re) contar a partir da ótica dessa mulher. As experiências sociais dessa mulher são diretamente atravessadas pelas políticas dos vários governos desse país, o que parece óbvio, mas, muitas vezes, numa sociedade adoecida como a nossa, não fazemos essas conexões. Muitas vezes não se enxerga que o homossexual assassinado na esquina teve sua morte avalizada pelo presidente; que o fato do Brasil ser um dos países com o maior número de feminicídios do mundo estabelece uma relação direta com o golpe de 2016 ou com fala do presidente atual sobre o nascimento de sua única filha, segundo ele, resultado de uma fraquejada; que a bala que sai da arma do policial e encontra o corpo de um menino preto atende a um projeto genocida de Estado; que a pessoa que se contamina em um metrô ou ônibus lotado, em meio a pandemia, e morre por COVID tem cor, raça e classe social definidas dentro dessa estrutura perversa que se inicia lá em 1500. Essa é a “história” que quero contar.

(In: Revista Igarapé, março 2021)

 


PUBLICAÇÕES

Obra Individual

A palavra em preto e branco. Colatina-ES: Clock-t Edições e Artes, 2017. (poesia).

Não é preciso ter útero para ser mulher. São Paulo: Editora Voz Mulher, 2020. (contos).

Os caras da casa de vidro. São Paulo: Editora Patuá, 2022. (romance).

Antologias

Cadernos Negros 42. Organização de Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 2019.

Cadernos Negros 43. Organização de Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 2020.

Não Ficção

A Língua é minha pátria: hibridação e expressão de identidades nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Dissertação (Mestrado em Letras). PUC Minas, 2012.

Memórias, identidades e bastardia em As visitas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho, O Outro pé da Sereia, de Mia Couto e Leite Derramado, de Chico Buarque. Tese (Doutorado em Letras). PUC Minas, 2016.


TEXTOS

Lílian Paula Serra e Deus - Anjo

Lílian Paula Serra e Deus - Aruanda

Lílian Paula Serra e Deus - EGO

Lílian Paula Serra e Deus - Guerra Santa

Lílian Paula Serra e Deus - Necropolítica

Lílian Paula Serra e Deus - Deus negro

Lílian Paula Serra e Deus - A palavra em preto e branco


CRÍTICA

Franciane Conceição da Silva - Prefácio de A palavra em preto e branco

Karina de Almeida Calado - Dores-mulheres em narrativas insurgentes de Lílian Paula Serra e Deus

Wellington Marçal de Carvalho - Da urgência em que gente tome jeito de gente: entendimento de mundo consertado por femininas letras


LINKS

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Lattes de Lílian Paula Serra e Deus

Crítica: Reconstruir o humano

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