Necropolítica

Lílian Paula Serra e Deus

 

Jura que eles pensavam que encontrariam algo ali? Não, eles tinham a certeza de que o que procuravam não estaria ali, mas era preciso atirar em alguém.

A ordem era mirar nas cabecinhas.... e fogo. Enquanto sobrevoavam nas suas aeronaves milionárias, munidos da certeza dos alvos, sabiam que ali só havia aviõezinhos. Sabiam de tudo, eles sempre souberam, desde o início. Quando Dona Dores chorou o corpo de seu filho estendido no chão, como bicho, boi abatido pelas costas e exibido como troféu, resultante da caça empreendida com sucesso, também sabia que não seria a lágrima derradeira. Eles nunca erraram a mira, nunca perderam o alvo, mesmo que para isso engendrassem oitenta precisos disparos.

Assim como em todos os anos, em janeiro, quando as chuvas cairão com a força de rebentação anunciada, será ali a foz de todas as perdas, bem ali que a correnteza desfará vidas e arrastará, junto ao lixo, gente. Aquela gente que não era gente, gente-bicho, gente-lixo, apenas pontos sujos em meio ao espaço-lixo da cidade-luxo que não poderia se desfazer.

Quando a esperança de Maria desmoronou junto ao corpo de seu marido soterrado em meio aos escombros do prédio que cedeu a força das águas, na Muzema vizinha, ela sabia que a disputa por espaços tem custado as sobrevidas da não-gente que não cabe na regularidade de um lugar para existir.

Era manhã de sexta-feira quando os dois prédios desabaram. Elisa viu pela TV que as construções eram irregulares. Eles sempre souberam, eles, nós,  Maria, Elisa e você. São as cidades maravilhosas  (des)organizando vidas, é o Cristo que a ela não dará a redenção. À Guanabara os braços abertos, a ela a porta  dos fundos, quando houver portas.

Assim como Elisa, Maria sabia que os prédios, projetados para cair, regulavam a sua existência. Sabia também que a Angra caberiam os grandes castelos  para neles habitarem os que se viam reis. E para isso era preciso refazer senzalas, atear fogo nos quilombos, demarcar território, desapossar indígenas, aniquilar indigentes e empreender a guerra em nome da hipócrita paz.

Nos meses anteriores, foi também na TV que ouviram que era preciso limpar a cidade para o Natal. Era preciso apagar algumas luzes para que outras brilhassem mais. Todos os anos, no projeto de arquitetura das luzes de Natal estava previsto o descarte das lâmpadas queimadas e sua substituição por aquelas naturalmente criadas para a(s)-cen-der.

Elisa nunca havia gostado do Natal. Era uma festa para a qual nunca tinha sido convidada; seu nome não constava na lista oficial. Sem convites, sem banquetes, sem presença, sem ouro, incenso ou mirra, só mesmo a fome apertando no vazio do último mês do ano que não se contrapôs aos demais. E naquele ano seu desgosto natalino era quase um ódio, uma raiva que não tinha a quem endereçar, por uma infelicidade que não teria com quem partilhar.

Era noite de segunda-feira, Elisa e seus três filhos, dois ao seu lado e um ainda amparado pelo aconchego da casa-primeira, talvez o único efetivo lar que viesse a conhecer, caminhavam ao encontro de Silva, pai das crianças e seu companheiro de vida, que os esperava ali, na zona Sul, no Chapéu da Mangueira, com a missão de protegê-los das águas, aquelas que já davam indícios da força com a qual cairiam em janeiro, quando se deparou com um corpo estendido no chão. Foram três balas; três projéteis disparados pela polícia contra um guarda-chuva fuzil preto, contra mais um Silva, metralhado em nome da pacificação, em nome da Zona sul e suas luzes de Natal, que arrastariam Elisa para manjedoura, onde no dia vinte e quatro de dezembro daria a não-luz, ao não ser, ao menino-bicho, menino-lixo, que não traria as festejadas feições do abençoado menino-luz tão esperado para as comemorações de Natal.

(In: Não é preciso ter útero para ser mulher, p. 42-45).

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