Da urgência em que gente tome jeito de gente:

entendimento de mundo consertado por femininas letras

Wellington Marçal de Carvalho*

Esse mundo nosso, cada vez mais covarde, é estranho. Obviamente, não contribui para essa fatura o uso compartilhado do território global feito por todas as outras formas de vida, mas, tão somente, ao ser humano. Segundo a segundo cresce a montanha de evidências a permitir concluir que o trato entre seres humanos tende ao fracasso.

Queria, e ainda desejo muito, estar equivocado. Ah... como seria bom! Contudo, para diminuir a chance de tagarelice sem sustentação, olho mais de perto o lugar em que habito. E porque estou a mirar situação mais palpável, bastando, por exemplo, acordar dentro de casa, ou chegar à janela, sair à rua, ligar a televisão, ou mesmo conectar-me pelos dispositivos móveis e cibernéticos, a que chegarei?! A menos que esteja dopado, esse deslocar me levará, ainda outra vez, à mesma constatação, a de que o trato entre humanos é periclitante e tende, quase inexoravelmente, à derrota. O ‘quase’ é um alívio.

Digamos que estejamos, todos nós, honestamente interessados nessa redefinição de rumos. Algo que eleja um percurso cuja marca seja a dignidade, o bem comum. Por onde começar? Penso que uma boa decisão seja a leitura deste Não é preciso ter útero para ser mulher, que, sabe-se lá por qual alinhamento do universo, temos a sorte de conhecer pelo gume afiadíssimo das letras da escritora Lílian Paula Serra e Deus.

Essa escritora de textos em prosa e poesia, intelectual, mãe, professora certa feita me dissera que pensa a dimensão da escrita enquanto móbile de cura. Essa perspectiva ela demarcou, em conversa que tivemos em meados de 2020, em tempos pandemônicos, quando me disse que escrevia para se curar, para elaborar o caos, para dar outros sentidos aos problemas, para, ao fim, regenerar, renascer. Assim, nós, seus leitores em potencial, podemos não só eventualmente concordar com Lílian e Deus, como também nos valermos de seu texto para esse mesmo estratagema, ou seja, enquanto prótese para nos auxiliar a ruminar o caos-mundo e, mais do que isso, renascer, desenhar outros mundos possíveis aqui, no nosso espaço-tempo. Essa seria, porventura, a política de um estado todo nosso, íntimo. Abraçado o plano por nossa companhia de lar, de janela, de rua ou de redes cibernéticas, estaria posta a chance de falhar menos?! Quem sabe?

Sendo ingênuo, mas nem tanto, reconheço que é um passo complexo. Que requer ousadia, coragem, assunção individual enquanto política de estado do nosso mais profundo eu. Confesso, porém, que esse plano só me veio à mente após ter tido minha consciência reiteradamente sacudida, provocada e abalada após cada palavra, frase, parágrafo e conto deste Não é preciso ter útero para ser mulher. A literatura tem esse poder, o que é uma sorte para quem se aventurar por textos, às vezes tão insurgentes quanto os onze contos de Lílian e Deus. Certamente eles desnutrem, em sua audiência, qualquer marasmo. São múltiplas as sacudidelas que a pena certeira de Lílian costura em cada um dos contos. E são incontáveis os trancos que cada cena impõe a quem as experiencia, com algum conforto, pela leitura.

O que eu via crescer em mim a cada leitura era um sentimento de vergonha abissal, assombrosa, aterrorizante. Seus contos foram descortinando, de forma inconteste, o meu ser-estar forjado, hereditariamente, em azeitados mecanismos produtores de humanos sem humanidade.

A sacudidela acionada no ato de ler ganha mais valor, pois Lílian, com uma letra que dança ao modo de Oxóssi, vai atirando flechas de um ponto a outro do livro. Em “Esse corpo não lhe pertence”, que abre o volume, nos apercebemos da brutalidade do destino atribuído a Quelly da Silva e Manuela, que persistem no direito de continuar a viver, mas são aniquiladas pela pulsão de morte, quer de seus familiares, quer dos baluartes da defesa do que chamam de deus da moral. Esses defensores de um arremedo de cristandade, cidadãos de bem, tão em voga nos dias atuais, espraia-se no ato de nomear a todas as mulheres de “putas”, no exato instante em que elas se afastam da sacralidade do lar, como encenado no conto “Putas”. Saiu do útero, é mulher, e então sujeita a ser nomeada puta? O texto convoca a um movimento de desputização linguageira e comportamental e, concomitantemente, ao estabelecimento de uma geografia do acolhimento.

Essa ambiência, o lar, parece ter perdido, há muito tempo, sua feição de ninho, berço de viventes, para assumir a máscara de um covil de prática da desumanidade exacerbada. O lar casa transmutado em covil está, de alguma forma, delineado nas relações desprovidas de bem querer e super nutridas por abusos de toda ordem, sempre oriundas dos parceiros e direcionadas às respectivas companheiras, enunciados com precisão em escala nanoparticulada nos contos “Até que a morte os separe” e “Cacos”.

Os espaços domésticos apresentados em “Ligação”, quando habitados por meninas/mulheres por conta de serem locais de trabalho, ambientam idiossincrasias configuradas em larga escala. Nesses locais de trabalho, sempre desumanos, acompanhamos a coisificação de corpos femininos, subjugados tanto por homens que mandam, quanto por suas esposas, cujas atitudes de patroas pouco ou nada diferem das de seus machos. “Fake news” nos arremessam para o nucleamento espacial dos locais de trabalho, onde são perpetuadas relações escravocratas, demonstrando a potência imaginativa e materializada cotidianamente em corpos intencionalmente escolhidos para não-ser, para receptáculos da sova perene, do machismo, do racismo, da mentira desabrida e incansavelmente repetida.

Essa consciência adulterada agencia o usufruto, distribuição e demarcação de presenças de indivíduos no amplexo territorial. Daí, por conseguinte, a quem se arvora deter o poder aponta e, portanto, indica quem é fadado a ser gente-bicho, gente-lixo, não gente, redundantes. A esses não resta a permissão de lugar para existir, como se vê no conto “Necropolítica”, ou, ainda, em “Corpo estrutural”, que tensiona à exaustão o papel desempenhado por instituições escolares no projeto de adestramento feminino.

Resistir à putização, ao enquadramento à revelia do corpo feminino, produz a lancinante pergunta que dá nome ao conto e, também, ao livro “Não é preciso ter útero para ser mulher”. Fico me perguntando que estratégias devem ser imperiosamente levadas à cabo para que não seja dado cabo da vida da menina e, assim, a mesma não passe a figurar na escabrosa estatística das que sucumbem a violência pelo simples fato de serem mulheres.

Instauraram-se em mim, após cada leitura e releitura, um período de inatividade e uma ausência de realizações dignas de nota, uma vergonha de me reconhecer, em muitos momentos, na exata carnadura da prosa de Lílian e Deus. Confesso que comungo da predileção da voz narrativa do conto “Cristal”, em vislumbrar o belo na tristeza. E, talvez por Lílian ser filha de Oxum, dê conta de enunciar, com graciosidade e elegância, a absurdidade contida no gesto de ter arremessado contra si o copo, objeto símbolo de sua ancestralidade, de sua ligação com a avó.

Esse caminhar penoso, que alinhava o conjunto de estórias, é feito com uma postura sempre digna e com deferência para com a avó, depositária de seu respeito, numa dicção que nos lembra Nanã, de quem a escritora também se considera filha, em “Profecia”. O olhar apurado da neta, em momento de dolorosa perda, a permite concluir que nem sempre se acerta o ponto do curau.

Na hipótese de estarmos bem lúcidos e, ao mesmo tempo, atônitos, ainda assim restaria tempo hábil e espaço propício para um outro modo de viver essa nossa vida cotidiana? Um tempo-espaço diverso em que fosse reduzida, em decorrência de nossas próprias ações, a chance de fracasso na relação entre humanos?

Veremos no texto de Lílian e Deus a boa oportunidade de esperançar!

Desejo coragem e faço votos de boa e necessária leitura!

 

Referência

DEUS, Lílian Paula Serra e. Não é preciso ter útero para ser mulher. São Paulo: Editora Voz de Mulher, 2020.

* Wellington Marçal de Carvalho é Pós-doutorando em Estudos Literários na FALE/UFMG. Doutor e Mestre em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Bibliotecário coordenador da Biblioteca da Escola de Veterinária UFMG. Integrante do Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED), desde 2011. Autor dos livros: Aquele canto sem razão: espaço e espacialidades em contos de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Boaventura Cardoso (2014); e A defesa incansável da esperança: feições da guineidade na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila (2018). É coorganizador do livro Deslocamentos estéticos (2020). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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