DE ASSIS
Adriano Moura
Franciscano,
Passeio nu
Pela cidade,
Comendo o pão
Que o diabo amassou
E me deu por caridade.
(In: Todo verso merece um dedo de prosa).
DE ASSIS
Adriano Moura
Franciscano,
Passeio nu
Pela cidade,
Comendo o pão
Que o diabo amassou
E me deu por caridade.
(In: Todo verso merece um dedo de prosa).
Adriano Moura
Não foi apenas chuva, mas um dilúvio. Amaro chegou muito molhado, ganhando de presente o resfriado que durou uma semana. A distância do ponto de ônibus até sua casa era de mais ou menos 2 km. Saiu desprotegido, pois sabia o quanto um homem negro, armado com seu guarda-chuva até os dentes, em vez de se proteger, pode ser vítima de fuzilamento. Portanto Amaro preferiu a chuva, que não faz distinção de cor quando decide pela justiça das águas.
(In: Invisíveis, p. 93).
Lavra Os Donos do Poder
Adriano Moura
Dores
Mas colhe gozos
Lava
Dores
E suja as mãos
Canta
Dores
Mas ouve gritos
Maquia
Dores
E diz que não
Ora
Dores
Mas diz que é Cristo
Saca
Dores
E não sai do chão
Chora
Dores
Mas tem lenços secos.
Pensa
Dores
E livros vãos
Moe
Dores
Mas bebe scotch
Salva dores
E não os são(s)
Os perde
Dores.
(In: Liquidificador: poesia para vita mina).
Adriano Moura
Dona Sueli trabalhava há 70 anos para os Teixeira de Castro. Quando tinha doze, Seu Pedro Teixeira de Castro, muito amigo de sua família, foi até Guandu, pequena comunidade rural no interior da cidade, e a levou para junto da família no centro de Campos. Sueli ia poder estudar, ter vida boa. Em troca só tinha de ajudar Dona Marina, esposa de Seu Pedro, a cuidar do pequeno Heitor. Ia estudar no Liceu, escola famosa, onde estudara gente importante da cidade. O prédio tinha sido casa de Barão e tudo. Sueli estranhou um pouco quando soube que sua sala de aula era numa parte do prédio chamada senzala. Tinha aprendido que era nesses lugares que os senhores trancavam seus escravos. Ela não era escrava. Depois ficou sabendo que era só uma forma de identificar o espaço. Até gostou da sala. Cuidava do Heitorzinho de manhã e estudava à tarde. Visitava Seu Joaquim e Dona Januária sempre que o patrão ia a Guandu, olhar a fazenda, cuidar dos negócios. O olho do dono é que engorda o gado.
Quando fez dezoito anos ela recebeu a notícia do infarto do pai. Pensou até em voltar pra casa, cuidar da mãe, dos irmãos mais novos. Mas Januária não quis. Sabia que o melhor para a filha era continuar na cidade. No ano seguinte, o patrão vendeu a fazenda de Guandu e resolveu se mudar com a família pra São Paulo. Dona Januária insistiu pra filha ir também. Se em Campos ela tinha mais futuro, imagina em São Paulo. A despedida foi um corte no coração de mãe e filha.
Soube da morte da mãe aos 50 anos. A coitada morrera de tristeza e velhice. Nunca mais viu a filha desde a partida. Era muito caro ir de São Paulo a Guandu e Sueli não tinha salário. A patroa dizia que teto, comida e escola numa cidade como aquela era pra poucos. Melhor que salário. Mas Sueli tinha abandonado os estudos quando completou vinte anos. A escola, à noite, ficava distante e às vezes tinha muito serviço pra fazer. Heitorzinho já era Heitor, não precisava mais de babá, mas a casa carecia de faxina e cozinha.
A primeira a falecer foi dona Marina, de câncer. Seu Pedro morreu de acidente. Bebia muito e um dia encontrou a morte na frente de um caminhão. Sueli continuou com Heitor, afinal era parte da herança. Ele casou com modelo vistosa, moça rica dos Jardins. Sueli trocou muitas fraldas de seu quase neto que também cresceu. Com o tempo, a memória passou a esquecer as necessidades do cotidiano da casa. Mas Sueli era da família. Todos tinham muito carinho por ela, afinal atravessara duas gerações. Heitor adorava chamá-la de “mãe preta”. E Sueli se sentia, de fato, como se fosse sua segunda mãe.
A viagem no feriado de Páscoa foi minimamente planejada. Todos iriam pra Recife. Era a primeira vez que Sueli, com oitenta e dois anos, tiraria os pés do chão.
Às vezes, esquecia o próprio nome, a coitada.
Na capital pernambucana alugaram um carro e foram passear até Porto de Galinhas. Sueli ficou encantada com o mar mais azul que o céu refletia. Para ela o azul do céu era reflexo do mar. Os Teixeira de Castro olhavam, da mesa do restaurante, a boba sem memória.
Pagaram a conta. No carro, de volta a Recife, ninguém tocou no assunto. Quando o avião pousou em São Paulo, a esposa de Heitor perguntou se Sueli conhecia alguém em Porto de Galinhas. Heitor respondeu apenas que sua família já fizera muito por ela. Já era hora de Sueli seguir seu destino. Sozinha.
(In: Invisíveis, p. 45-48).
Adriano Moura
Porque me cortas a cidade
E o peito
Com águas e lembranças,
Deságuas nos meus olhos
Alegrias e detritos,
Alimentas e derrubas
Minhas casas e esperanças
E quando seco
Meninos brincam nas areias de teus quintais
Porque inspiras protestos e poesias
Dais abrigo a beatas e piranhas,
Lavas homens e animais...
Rio
E te atravesso apesar das correntezas
E
Só
Rio
Porque tens lágrimas demais
E meus dentes se misturaram a teu lodo fértil,
Manguezais formaram-se em minha boca,
Guaiamuns fartaram-se de poesia
E as palavras tragaram os catadores de livros
E puãs
Entre a minha
e a tua vida
há o naufrágio de grandes vapores
e a teimosia de pequenos barcos
Rio
Porque me guarda um beijo quente
O oceano.
(In: Liquidificador: poesia para vita mina)