O proscrito

Maria Firmina dos Reis

Vou deixar meus pátrios lares,
Alheio clima habitar.
Ver outros céus, outros mares,
Noutros campos divagar;
Outras brisas, outros ares,
Longe do meu respirar...

Vou deixar-te, oh! Pátria minha,
Vou longe de ti - viver...
Oh! Essa ideia mesquinha,
Faz meu dorido sofrer;
Pálida, aflita rolinha
De mágoas a estremecer.

Deixar-te, pátria querida.
É deixar de respirar!
Pálida sombra, sentida
Serei - espectro a vagar:
Sem tino, sem ar, sem vida
Por esta terra além - mar.

Quem há de ouvir-me os gemidos
Que arranca profunda dor?
Quem há de meus ais transidos
De virulento amargor,
Escutar - tristes, sentidos,
Com mágoa, com dissabor?

Ninguém. Um rosto a sorrir-me
Não hei de aí encontrar!...
Quando a saudade afligir-me
Ninguém irá me consolar;
Quando a existência fugir-me,
Quem há de me prantear?

Quando sozinho estiver
Aí à noite a cismar
De minha terra, sequer
Não há de brisa passar,
Que agite todo o meu ser,
Com seu macio ondular...

(In: Cantos à beira-mar e Gupeva. 1a Edição atualizada 2017, p. 104, 105) 

 

A escrava 

 

 Maria Firmina dos Reis

Em um salão onde se achavam reunidas muitas pessoas distintas, e bem colocadas na sociedade e depois de versar a conversação sobre diversos assuntos mais ou menos interessantes, recaiu sobre o elemento servil.

         O assunto era por sem dúvida de alta importância. A conversação era geral; as opiniões, porém, divergiam. Começou a discussão.

     – Admira-me, disse uma senhora, de sentimentos sinceramente abolicionistas; faz-me até pasmar como se possa sentir, e expressar sentimentos escravocratas, no presente século, no século dezenove! A moral religiosa, e a moral cívica aí se erguem, e falam bem alto esmagando a hidra que envenena a família no mais sagrado santuário seu, e desmoraliza, e avilta a nação inteira!

        Levantai os olhos ao Gólgota, ou percorrei-os em torno da sociedade, e dizei-me:

        Para que se deu em sacrifício, o Homem Deus, que ali exalou seu derradeiro atento? Ah!

        Então não era verdade que seu sangue era o resgate do homem! É então uma mentira abominável ter esse sangue comprado a liberdade!? E depois, olhai a sociedade... Não verdes que a corrói constantemente!... Não sentis a desmoralização que a enerva, o cancro que a destrói?

      Por qualquer modo que encaremos a escravidão, ela é, e sempre será um grande mal. Dela a decadência do comércio; porque o comércio, e a lavoura caminham de mãos dadas, e o escravo não pode fazer florescer a lavoura; porque o seu trabalho é forçado. Ele não tem futuro; o seu trabalho não é indenizado; ainda dela nos vem o opróbrio, a vergonha; porque de fronte altiva e desassombrada não podemos encarar as nações livres; por isso que o estigma da escravidão, pelo cruzamento das raças, estampa-se na fronte de todos nós. Embalde procurará um dentro nós convencer ao estrangeiro que em suas veias não gira uma só gota de sangue escravo...

E depois, o caráter que nos imprime, e nos envergonha!

O escravo é olhado por todos como vítima – e o é.

O senhor, que papel representa na opinião social?

O senhor é o verdugo – e esta qualificação é hedionda.

      Eu vou narrar-vos, se me quiserdes prestar atenção, um fato que ultimamente se me deu. Poderia citar-vos uma infinidade deles; mas este basta, para provar o que acabo de dizer sobre o algoz e a vítima.

E ela começou:

       – Era uma tarde de agosto, bela com um ideal de mulher, poética como um suspiro de virgem, melancólica, e suave como sons longínquos de um alaúde misterioso.

Eu cismava embevecida na beleza natural das alterosas palmeiras, que se curvavam gemebundas, ao sopro do vento, que gemia na costa.

E o sol, dardejando seus raios multicores, pendia para o ocaso em rápida carreira.

Não sei que sensações desconhecidas me agitavam, não sei!... mas sentia-me com disposições para o pranto.

      De repente uns gritos lastimosos, uns soluços angustiados feriram-me os ouvidos, e uma mulher correndo, e em completo desalinho passou por diante de mim, e como uma sombra desapareceu.

Segui-a com a vista. Ela espavorida, e trêmula, deu volta em torno de uma grande moita de murta, e colando-se no chão nela se ocultou.

      Surpresa com a aparição daquela mulher, que parecida foragida, daquela mulher que um minuto antes quebrara a solidão com seus ais lamentosos, com gemidos magoados, com gritos de suprema angústia, permaneci com a vista alongada e olhar fixo no lugar que a vi ocultar-se.

Ela muda, e imóvel, ali quedou-se.

Eu então a mim mesma, interroguei: Quem será a desditosa?

Ia procurá-la – coitada! Uma palavra de animação, um socorro, algum serviço, lembrei-me, poderia prestar-lhe. Ergui-me.

      Mas no momento mesmo em que este pensamento, que acode a todo homem em idênticas circunstâncias, se me despertava, um homem apareceu no extremo oposto do caminho.

Era ele de cor parda, de estatura elevada, largas espáduas, cabelos negros, e anelados.

      Fisionomia sinistra era a desse homem, que brandia, brutalmente, na mão direita um azorrague repugnante; e da esquerda deixava pender uma delgada corda de linho.

       – Inferno! Maldição! Bradava ele, com voz rouca. Onde estará ela? E perscrutava com a vista por entre os arvoredos desiguais que desfilavam à margem da estrada.

– Tu me pagarás – resmungava ele. E aproximando-se de mim:

       Não viu, minha senhora, interrogou com acento, cuja dureza procurava reprimir –, não viu por aqui passar uma negra, que me fugiu das mãos ainda há pouco? Uma negra que se finge douda... Tenho as calças rotas de correr atrás dela por estas brenhas, já não tenho fôlego.

Aquele homem de aspecto feroz era o algoz daquela pobre vítima, compreendi com horror.

      De pronto tive um expediente. – Vi-a, tornei-lhe com a naturalidade que o caso exigia; – vi-a, e ela também me viu, corria em direção a este lugar; mas parecendo intimidar-se com a minha presença, tomou direção oposta, volvendo-se repentinamente sobre seus passos. Por fim a vi desaparecer, internando-se na espessura, muito além da senda que ali se abre.

E dizendo isto indiquei-lhe com um aceno a senda que ficava a mais de cem passos de distância , aquém do morro em que me achava.

Minhas palavras inexatas, o ardil de que me servi, visavam a fazê-lo retroceder: logrei o meu intento.

Franziu o sobrolho, e sua fisionomia traiu a cólera que o assaltou. Mordeu os beiços e rugiu:

        – Maldita negra! Esbaforido, consumido, a meter-me por estes caminhos, pelos matos a procura da preguiçosa... Ora! Hei de encontrar-te; mas, deixa estar, eu te juro, será esta derradeira vez que me incomodas. No tronco... no tronco: e de lá foge!

Então, perguntei-lhe, aparentando o mais profundo indiferentismo, pela sorte da desgraçada, – foge sempre?

– Sempre, minha senhora. Ao menor descuido foge. Quer fazer acreditar que é douda.

– Douda! Exclamei involuntariamente, e com acento que traía os meus sentimentos.

Mas o homem do azorrague não pareceu reparar nisso, e continuou:

– Douda... douda fingida, caro te há de custar.

Acreditei-o o senhor daquela mísera; mas empenhada em vê-lo desaparecer daquele lugar, disse-lhe:

– A noite se avizinha, e se a deixa ir mais longe, difícil lhe será encontrá-la.

     – Tem razão, minha senhora; eu parto imediatamente, e cumprimentando-me rudemente, retrocedeu correndo a mesma estrada que lhe tinha maliciosamente indicado.

Exalei um suspiro de alívio, ao vê-lo desaparecer na dobra do caminho.

       O sol de todo sumia-se na orla cinzenta do horizonte, o vento paralisado não agitava as franças dos anosos arvoredos, só o mar gemia ao longe da costa, semelhando o arquejar monótono de um agonizante.

Ergui ao céu um voto de gratidão; e lembrei-me que era tempo de procurar minha desditosa protegida.

      Ergui-me cônscia de que ninguém me observava, e acercava-me já da moita de murta, quando um homem rompendo a espessura, apareceu ofegante, trêmulo e desvairado.

       Confesso que semelhante aparição causou-me um terror imenso. Lembrei-me dos criados, que eu tinha convocado a essa hora naquele lugar, e que ainda não chegavam. Tive medo.

Parei! Instantemente, e fixei-o. Apesar do terror que me havia inspirado, fixei-o resolutamente.

De repente serenou o meu terror; olhei-o, e do medo, passei à consideração, ao interesse.

       Era quase uma ofensa ao pudor fixar a vista sobre aquele infeliz, cujo corpo seminu mostrava-se coberto de recentes cicatrizes; entretanto sua fisionomia era franca, e agradável. O rosto negro, e descarnado; suposto seu juvenil aspecto aljofarado de copioso suor, seus membros alquebrados de cansaço, seus olhos rasgados, ora lânguidos pela comoção de angústia que se lhe pintava na fronte, ora deferindo luz errante, e trêmula, agitada, e incerta traduzindo a excitação, e o terror, tinham um quê de altamente interessante.

No fundo do coração daquele pobre rapaz, devia haver rasgos de amor, e generosidade.

       Cruzamos, ele, e eu as vistas e ambos recuamos espavoridas. Eu, pelo aspecto comovente, e triste daquele infeliz, tão deserdado da sorte; ele, por que seria?

       Isto teve a duração de um segundo apenas: recobrei o ânimo em presença de tanta miséria, e tanta humilhação, e este ânimo procurei de pronto transmitir-lhe.

       Longe de lhe ser hostil, o pobre negro compreendeu que eu ia talvez minorar o rigor de sua sorte; parou instantaneamente, cruzou as mãos no peito, e com voz súplice, murmurou algumas palavras que eu não pude entender.

      Aquela atitude comovedora, despertou-me compaixão; apesar do medo que nos causa a presença de um calhambola, aproximei-me dele, e com voz, que vem compreendeu ser protetora e amiga, disse-lhe:

– Quem és, filho? O que procuras?

       – Ah! Minha senhora, exclamou erguendo os olhos aos céu, eu procuro minha mãe, que correu nesta direção, fugindo ao cruel feitor, que a perseguia. Eu também agora sou um fugido: porque há uma hora deixei o serviço para procurar minha pobre mãe, que além de douda está quase a morrer. Não sei se ele a encontrou; e o que será dela. Ah! Minha mãe! É preciso que eu corra, a ver se acho antes que o feitor a encontre. Aquele homem é um tigre, minha senhora, –uma fera.

Ouvia-o, sem o interromper, tanto interesse me inspirava o mísero escravo.

       – Amanhã, continuou ele, hei de ser castigado; porque saí do serviço, antes das seis horas, hei de ter trezentos açoites; mas minha mãe morrerá se ele a encontrar. Estava no serviço, coitada! Minha mãe caiu, desfalecida; o feitor lhe impôs que trabalhasse, dando-lhe açoites; ela deitou a correr gritando. Ele correu atrás. Eu corri também, corri até aqui porque foi esta a direção que tomaram. Mas, onde está ela, onde estará ele?

– Escuta, lhe tornei então, tua mãe está salva, salvou-a o acaso; e o feitor está agora bem longe daqui.

– Ah! Minha senhora, onde, onde está a minha mãe e quem a salvou?

– Segue-me, disse eu – tua mãe está ali – e apontei para a moita onde se refugiara.

– Minha mãe, sem receio de ser ouvido, ex­clamou o filho: minha mãe!...

Com efeito, ali com a fronte reclinada sobre um tronco decepado; e o corpo distendido no chão, dormia um sono agitado a infeliz foragida.

– Minha mãe, gritou-lhe ao ouvido curvando os joelhos em terra, tomando-a nos seus braços. Minha mãe... sou Gabriel...

A esta exclamação de pungente angústia, a mísera pareceu despertar.

Olhou-o fixamente; mas não articulou um som.

– Ah! redarguiu Gabriel, ah! Minha senhora! Minha mãe morre!

       Concheguei-me àquele grupo interessante a fim de prestar-lhe algum serviço. Com efeito, era tempo. Ela era presa dum ataque espasmódico. Estava hirta e parecia prestes a exalar o derradeiro suspiro.

– Não, ela não morre deste ataque; mas é preciso prestar-lhe pronto socorro, disse-lhe.

– Diga, minha senhora, tomou o rapaz na mais pungente ansiedade, que devo fazer?

Volte eu embora à fazenda, seja castigado com rigor; mas não quero, não posso ver minha mãe morrer aqui, sem socorro algum.

– Sossega, disse-lhe, vendo assomar ao mor­ro, donde observavam tudo que acabo de narrar, os meus criados, que me procuravam; – espera, disse-lhe:

– Vou fazer transportar tua mãe, à minha casa, e lhe farei tornar à vida.

– Diga, minha senhora, ordene.

– Não moro presentemente longe daqui. Sa­bes a distância que vai daqui à praia? Estou nos banhos salgados.

– Sei, sim, senhora, é muito perto. Que devo então fazer?

– Tu, e estes homens – os criados acabavam de chegar – vão transportá-la imediatamente à minha morada, e lá procurarei reanimá-Ia.

– Oh! Minha senhora, que bondade! Foi só o que disse, e, ato contínuo, tomou nos braços a pobre mãe, ainda entregue ao seu dorido paroxis­mo, e disse:

– Minha senhora, eu só levaria minha mãe ao fim do mundo.

Senti-me tocada de veneração em presença daquele amor filial, tão singelamente manifestado.

– Sigamos então – tornei eu.

Gabriel caminhava tão apressadamente que eu mal podia acompanhá-lo.

Em menos de quinze minutos transpúnha­mos o umbral da casinha, que há dois dias apenas eu habitava.

       Eu bem conhecia a gravidade do meu ato: – ­recebia em meu lar dois escravos foragidos, e es­cravos talvez de algum poderoso senhor; era expor-me à vindita da lei; mas em primeiro lugar o meu dever, e o meu dever era socorrer aqueles in­felizes.

Sim, a vindita da lei; lei que infelizmente ain­da perdura, lei que garante ao forte o direito abusivo, e execrando de oprimir o fraco.

       Mas, deixar de prestar auxílio àqueles des­graçados, tão abandonados, tão perseguidos, que nem para a agonia derradeira, nem para transpor esse tremendo portal da Eternidade, tinham sosse­go, ou tranqüilidade! Não.

Tomei com coragem a responsabilidade do meu ato: a humanidade me impunha esse santo dever.

       Fiz deitar a moribunda em uma cama, fiz abrir as portas todas para que a ventilação se fizesse livre e boa, e prestei-lhe os serviços que o caso urgia, e com tanta vantagem, que em pouco recu­perou os sentidos.

Olhou em tomo de si, como que espantada do que via, e tomou a fechar os olhos.

Minha mãe!... minha mãe, de novo exclamou o filho.

Ao som daquela voz chorosa, e tão grata, ela ergueu a cabeça, distendeu os braços, e, com voz débil, murmurou:

– Carlos!... Urbano...

– Não, minha mãe, sou Gabriel.

– Gabriel, tornou ela, com voz estridente. É noite, e eles para onde foram?

– De quem fala ela? Interroguei Gabriel, que limpava as lágrimas na coberta da cama de sua mãe.

       – É douda, minha senhora; fala de meus ir­mãos Carlos e Urbano, crianças de oito anos, que meu senhor vendeu para o Rio de Janeiro. Desde esse dia ela endoudeceu.

– Horror! exclamei com indignação, e dor. Pobre mãe!

       – Só lhe resto eu, continuou soluçando – só eu... só eu!... Entretanto a enferma pouco a pouco recobrava as forças, a vida, e a razão. Fenômenos da morte, por assim dizer: é luta imponente embo­ra, da natureza, com o extermínio.

– Gabriel? Gabriel - és tu?

– É noite. Eu morro... E o serviço? E o feitor?

– Estás em segurança, pobre mulher, disse­-lhe, – tu, e teu filho estão sob a minha proteção. Descansa, aqui ninguém lhes tocará com um dedo.

       Como não devem ignorar, eu já me havia constituído então membro da sociedade abolicionista da nossa província, e da do Rio de Janeiro. Expedi de pronto um próprio à capital.

Então ela fixou-me, e em seus olhos brilhou lucidez, esperança, e gratidão.

Sorriu-se e murmurou.

– Inda há neste mundo quem se compade­ça de um escravo?

– Há muita alma compassiva, retorqui-lhe, que se condói do sofrimento de seu irmão.

Naquela hora quase suprema, a infeliz excla­mou com voz distinta:

– Não sabe, minha senhora, eu morro, sem ver mais meus filhos! Meu senhor os vendeu... eram tão pequenos... eram gêmeos. Carlos, Urbano...

      Tenho a vista tão fraca... é a morte que che­ga. Não tenho pena de morrer, tenho pena de dei­xar meus filhos... Meus pobres filhos!... Aqueles que me arrancaram destes braços... este que também é escravo!...

E os soluços da mãe, confundiram-se por muito tempo, com os soluços do filho.

Era uma cena tocante, e lastimosa, que des­pedaçava o coração.

Ah! Maldição sobre a opressão! Maldição sobre o escravocrata!

Cheguei-lhe aos lábios o cal­mante, que a ia sustendo, e ordenei a Gabriel fosse tomar algum alimento. Era preciso separá-los.

       – Quem é vossemecê, minha senhora, que tão boa é pra mim, e para meu filho? Nunca encon­trei em vida um branco que se compadecesse de mim; creio que Deus me perdoa os meus peca­dos, e que já começo a ver seus anjos.

– E quem é esse senhor tão mau, esse senhor que te mata?

– Então, minha senhora, não conhece o se­nhor Tavares, do Cajuí?

       – Não, tomei-lhe com convicção: estou aqui apenas há dois dias, tudo me é estranho: não o conheço. É bom que colha algumas informações dele: Gabriel mas dará.

– Gabriel! Disse ela – não. Eu mesma. Ainda posso falar. E começou:

– Minha mãe era africana, meu pai de raça índia; mas eu de cor fusca. Era livre, minha mãe era escrava.

      Eram casados e desse matrimônio, nasci eu. Para minorar os castigos que este homem cruel infligia diariamente à minha pobre mãe, meu pai quase consumia seus dias ajudando-a nas suas desmedi­das tarefas; mas ainda assim, redobrando o trabalho, conseguiu um fundo de reserva em meu beneficio.

         Um dia apresentou a meu senhor a quantia realizada, dizendo que era para o meu resgate. Meu senhor recebeu a moeda sorrindo-se – tinha eu cin­co anos – e disse: A primeira vez que for à cidade trago a carta dela. Vai descansado.

        Custou a ir à cidade; quando foi demorou-se algumas semanas, e quando chegou entregou a meu pai uma folha de papel escrita, dizendo-lhe:

        – Toma, e guarda, com cuidado, é a carta de liberdade de Joana. Meu pai não sabia ler; de agradecido beijou as mãos daquela fera. Abraçou-­me, chorou de alegria, e guardou a suposta carta de liberdade.

Então furtivamente eu comecei a aprender a ler, com um escravo mulato, e a viver com alguma liberdade.

Isso durou dois anos. Meu pai morreu de re­pente, e no dia imediato meu senhor disse a minha mãe:

– Joana que vá para o serviço, tem já sete anos, e eu não admito escrava vadia.

Minha mãe, surpresa, e confundida, cumpriu a ordem sem articular uma palavra.

       Nunca a meu pai passou pela ideia, que aque­la suposta carta de liberdade era uma fraude; nun­ca deu a ler a ninguém; mas, minha mãe, à vista do rigor de semelhante ordem, tomou o papel, e deu­-o a ler, àquele que me dava as lições. Ah! Eram umas quatro palavras sem nexo, sem assinatura, sem data! Eu também a li, quando caiu das mãos do mulato. Minha pobre mãe deu um grito, e caiu estrebuchando.

Sobreveio-lhe febre ardente, delírios, e três dias depois estava com Deus.

Fiquei só no mundo, entregue ao rigor do cativeiro.

      Aqui ela interrompeu-se; agitou-lhe os mem­bros um tremor convulso. A morte fazia os seus progressos. De novo cheguei-lhe aos lábios a co­lher do calmante, que lhe aplicava, e pedi-lhe, não revocasse lembranças dolorosas que a podiam matar.

      – Ah! Minha senhora, começou de novo, mais reanimada – apadrinhe Gabriel, meu filho, ou esconda-o no fundo da terra; – olhe se ele for pre­so, morrerá debaixo do açoite, como tantos outros, que meu senhor tem feito expirar debaixo do azorrague! Meu filho acabará assim.

       – Não, não há de acabar assim, – descansa. Teu filho está sob minha proteção, e qualquer que seja a atitude que possa assumir esse homem, que é teu senhor, Gabriel não voltará mais ao seu poder.

Ela recolheu-se por algum tempo, depois tomando-me as mãos, beijou-as com reconhecimento.

– Ah! Se pudesse, nesta hora extrema ver meus pobres filhos, Carlos e Urbano!... Nunca mais os verei!

Tinham oito anos.

       Um homem apeou-se à porta do Engenho, onde juntos trabalhavam meus pobres filhos – era um traficante de carne humana. Ente abjeto, e sem coração! Homem a quem as lágrimas de uma mãe não podem comover, nem comovem os soluços do inocente.

Esse homem trocou ligeiras palavras com meu senhor, e saiu.

Eu tinha o coração opresso pressentia uma nova desgraça. .

      A hora permitida ao descanso, concheguei a mim meus pobres filhos, extenuados de cansaço, que logo adormeceram. Ouvi ao longe rumor, como de homens que conversavam. Alonguei os ouvi­dos; as vozes se aproximavam. Em breve reconheci a voz do senhor. Senti palpitar desordenadamente meu coração; lembrei-me do traficante... Corri para meus filhos, que dormiam, apertei-os ao coração. Então senti um zumbido nos ouvidos, fugiu-me a luz dos olhos e creio que perdi os sentidos.

Não sei quanto tempo durou este estado de torpor; acordei aos gritos de meus pobres filhos, que me arrastavam pela saia, chamando-me: ma­mãe! Mamãe!

      Ah! minha senhora! abriu os olhos. Que es­petáculo! Tinham metido adentro a porta da minha pobre casinha, e nela penetrado meu senhor, o fei­tor, e o infame traficante.

Ele, e o feitor arrastavam sem coração, os filhos que se abraçavam a sua mãe.

Gabriel entrava nesse momento. Basta, mi­nha mãe, disse-lhe, vendo em seu rosto debuxados todos os sintomas de uma morte próxima.

– Deixa concluir, meu filho, antes que a morte me cerre os lábios para sempre... deixa-me morrer amaldiçoando os meus carrascos.

– Por Deus, por Deus, gritei eu, tornando a mim, por Deus, levem-me com meus filhos!

– Cala-te! gritou meu feroz senhor. – Cala-te ou te farei calar.

– Por Deus, tornei eu de joelhos, e tomando as mãos do cruel traficante: – meus filhos!... meus filhos!

Mas ele dando um mais forte empuxão, e ameaçando-os com o chicote, que empunhava, entregou-os a alguém que os devia levar...

Aqui a mísera calou-se; eu respeitei o seu silêncio que era doloroso, quando lhe ouvi um arranco profundo, e magoado:

Curvei-me sobre ela. Gabriel ajoelhou-se, e juntos exclamamos:

– Morta!

Com efeito tinha cessado de sofrer. O embate tinha sido forte demais para suas débeis forças.

A lua percorria melancólica e solitária os páramos do céu, e cortava com uma fita de prata as vagas do oceano.

No mesmo instante, um homem assomou à porta. Era o homem do azorrague que eles intitulavam de feitor; era aquele homem de fisionomia sinistra e terrível, que me interpelara algumas horas antes, acerca da infeliz foragida; e este homem apa­recia agora mais hediondo ainda, seguido de dois negros, que, como ele, pararam à porta.

– Que pretende o senhor? Perguntei-lhe. Pode entrar.

O pobre Gabriel refugiou-se trêmulo, ao can­to mais escuro da casa.

– Anda, Gabriel, disse-lhe com voz segura, continua a tua obra, e voltando-me para o feitor, acrescentei:

Eu, e este desolado filho, ocupamo-nos em cerrar os olhos à infeliz, a quem o cativeiro, e o martírio despenharam tão depressa na sepultura.

      Comovidos em presença da morte, os dois escravos deixaram pender a fronte no peito; o pró­prio feitor, ao primeiro ímpeto, teve um impulso de homem: mas, recompondo de pronto na rude, e feroz fisionomia, disse-me:

       – É hoje a segunda vez que a encontro, mi­nha senhora, entretanto, não sei ainda a quem falo. Peço-lhe que me diga o seu nome, para que eu conheça o patrão, o senhor Tavares. É escandalo­sa, minha senhora, a proteção que dá a estes es­cravos fugidos.

Estas palavras inconvenientes mereceram o meu desdém; não lhe retorqui.

O meu silêncio lhe deu maior coragem, e, fazendo-se insolente, continuou:

– A senhora coadjuvou a mãe em sua fuga; acabou aqui, mais tarde saberemos de quê. Pretenderá também coadjuvar o filho?

É já o que havemos de ver!...

João, Félix! E com um aceno indicou-lhes o que deviam fazer.

Gabriel, que ao meu chamado voltara para junto do cadáver de sua mãe, sentindo que o vinham prender, levantou-se espavorido, sem saber o que fazer.

– Detém-te! Lhe gritei eu. Estás sob a minha imediata proteção; e voltando-me para o homem do azorrague, disse-lhe:

       – Insolente! Nem mais uma palavra. Vai-te, diz a teu amo, – miserável instrumento de um escravocrata; diz a ele que uma senhora recebeu em sua casa uma mísera escrava, louca porque lhe arrancaram dos braços dois fIlhos menores, e os venderam para o Sul; uma escrava moribunda; mas ainda assim perseguida por seus implacáveis algozes.

Vai-te, e entrega-lhe este cartão: aí achará o meu nome.

Vai, e que nunca mais nos tornemos a ver.

Ele mordeu os beiços para tragar o insulto, e desapareceu.

       No dia seguinte, era já de tarde, estava qua­se a desfilar o saimento da infeliz Joana, quando à porta da minha casinha, vi apear-se um homem. Era o senhor Tavares.

Cumprimentou-me com maneiras da alta sociedade, e disse-me:

– Desculpe-me, querida senhora, se me apresento em sua casa, tão brusca e desazadamente; entretanto...

– Sem cerimônia, senhor, disse-lhe, procurando abreviar aqueles cumprimentos que me incomodavam.

Sei o motivo que aqui o trouxe, e podemos, se quiser encetar já o assunto.

Custava-me, confesso, estar por longo tem­po em comunicação com aquele homem, que encarava sua vítima, sem consciência, sem horror.

– Peço-lhe mil desculpas, se a vim incomodar.

– Pelo contrário, retorqui-lhe. O senhor pou­pou-me o trabalho de o ir procurar.

       – Sei que esta negra está morta, exclamou ele, e o filho acha-se aqui: tudo isto teve a bondade de comunicar-me ontem. Esta negra, continuou, olhando fixamente para o cadáver – esta negra era alguma coisa monomaníaca, de tudo tinha medo, andava sempre foragida, nisto consumiu a existência. Morreu, não lamento esta perda; já para nada prestava. O Antônio, meu feitor, que é um excelen­te e zeloso servidor, é que se cansava em procurá-la. Porém, minha senhora, este negro! – designava o pobre Gabriel, com este negro a coisa muda de figura: minha querida senhora, este negro está fugi­do: espero, mo entregará, pois sou o seu legítimo senhor, e quero corrigi-lo.

– Pelo amor de Deus, minha mãe, gritou Gabriel, completamente desorientado – minha mãe, leva-me contigo.

– Tranquiliza-te, lhe tornei com calma; não te hei já dito que te achas sob a minha proteção? Não tem confiança em mim?

Aqui o senhor Tavares encarou-me estupefato – e depois perguntou-me:

– Que significam essas palavras, minha que­rida senhora? Não a compreendo.

– Vai compreender-me, retorqui, apresentan­do-lhe um volume de papéis subscritados e com­petentemente selados.

Rasgou o subscrito, e leu-os. Nunca em sua vida tinha sofrido tão extraordinária contrariedade.

       – Sim, minha cara senhora, redarguiu, ter­minando a leitura; o direito de propriedade, conferi­do outrora por lei a nossos avós, hoje nada mais é que uma burla...

A lei retrogradou, Hoje protege-se escanda­losamente o escravo, contra seu senhor; hoje qual­quer indivíduo diz a um juiz de órfãos.

Em troca desta quantia exijo a liberdade do escravo fulano – haja ou não aprovação do seu senhor.

Não acham isto interessante?

– Desculpe-me, senhor Tavares, disse-lhe:

Em conclusão, apresento-lhe um cadáver e um homem livre.

Gabriel ergue a fronte, Gabriel és livre!

O senhor Tavares, cumprimentou, e retroce­deu no seu fogoso alazão, sem dúvida alguma mais furioso que um tigre.

                                                         (In: Revista maranhense, n. 3, 1887. Republicado em Úrsula, 7.ed., 2018, p. 193-207).

 

Úrsula,  capítulo IX

A preta Susana

 Maria Firmina dos Reis

Estavam já feitos os aprestos da viagem, e Túlio, entanto no meio da sua felicidade parecia às vezes tocado por viva melancolia, que se lhe debuxava no rosto, onde uma lágrima recente ha­via deixado profundo sulco. Era por sem dúvida a saudade da separação, essa dor, que aflige a todo o coração sensível, que assim o consumia. Ia dei­xar a casa de sua senhora, onde senão ledos, pelo menos não muito amargos tinha ele passado seus primeiros anos. O negro sentia saudades.

        E aí havia uma mulher escrava, e negra como ele; mas boa, e compassiva, que lhe serviu de mãe enquanto lhe sorriu essa idade lisonjeira e feliz, única na vida do homem que se grava no coração com caracteres de amor – única, cuja recordação nos apraz, e em que ....*

        Susana, chama-se ela; trajava uma saia de grosseiro tecido de algodão preto, cuja orla chega­va-lhe ao meio das pernas magras e descarnadas como todo o seu corpo: na cabeça tinha cingido um lenço encarnado e amarelo, que mal lhe ocul­tava as alvíssirnas cãs.

       Túlio estava ante ela com os braços cruza­dos sobre o peito. Em seu semblante transparecia um quê de dor mal reprimida, que denuciava o seu profundo pesar.

        A velha deixou o fuso em que fiava, ergueu-se sem olhá-lo, tomou o cachimbo, encheu-o de tabaco, acendeu-o, tirou dele algumas baforadas de fumo, e de novo sentou-se: mas desta vez não pegou no fuso.

        Fitou então os olhos em Túlio, e disse-lhe:

– Onde vais, Túlio?

– Acompanhar o senhor Tancredo de *** – respondeu o interpelado.

– Acompanhar o senhor Tancredo! – conti­nuou a velha com acento repreensivo – Sabes tu o que fazes? Túlio, Túlio!

Depois de pausa, ajuntou:

– Não sentes saudades desta casa, ingrato?!

– Não, mãe Susana, não me alcunheis de ingrato. Quantas saudades levo eu de vós! Oh só Deus sabe quanto me pesam elas!

       – Tu!? – exclamou ela, procurando ler-lhe no fundo do coração os sentimentos que o anima­vam. – Tu não levas saudades algumas. Túlio; se as levasses, quem te obrigaria a deixar-nos?

– A gratidão – respondeu ele com presteza.

        – A gratidão!? E não a deves à senhora, que para ti tem sido quase que uma mãe? Não a deves à menina? e por que as deixas? É que não sentes saudades delas.

– Oh! Sinto-as, sinto-as, e muitas, mãe Susana!

       – Então não procures ir com esse homem, que apenas conheces! Olha, ainda há pouco vi uma lágrima pender dos olhos dessa boa menina, essa lágrima, creio que lhe arrancou do coração a notícia da tua partida... e tu vais-te! Quando voltarás aqui?

        – A nossa separação, disse-me o senhor Tancredo, será por pouco tempo. Volto para junto de vós, mãe Susana, e a senhora não reclamará em vão os meus serviços.

– A senhora! – Replicou a velha com má­goa – essa, meu filho, jamais reclamará os teus serviços; ou eu me engano, ou tu vais dizer-lhe o último adeus!

       – Túlio, – continuou – não sabes quanto sofro quando recordo-me de que a nossa querida menina vai tão breve ficar só no mundo! Só, Túlio! Quem a acompanhará? Quem poderá consolá-la! Eu? Não. Pouco poderei demorar-me neste mundo. Meu filho, acho bom que não te vás. Que te adianta trocares um cativeiro por outro! E sabes tu se aí o encontrarás melhor? Olha, chamar-te-ão, talvez, ingrato, e eu não terei uma palavra para defender-te.

        – Oh! quanto a isso não, mãe Susana – ­tornou Túlio – A senhora Luísa B... foi para mim boa e carinhosa, o céu lhe pague o bem que me fez, que eu nunca me esquecerei de que poupou­-me os mais acerbos desgostos da escravidão, mas quanto ao jovem cavaleiro, é bem diverso o meu sentir; sim, bem diverso. Não troco cativeiro por cativeiro, oh não! Troco escravidão por liberdade, por ampla liberdade! Veja, mãe Susana, se devo ter limites à minha gratidão: veja se devo, ou não, acompanhá-lo, se devo, ou não provar-lhe até a morte o meu reconhecimento!...

– Tu! tu livre? ah não me iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. Meu filho, tu és já livre?..

       – Iludi-la! – respondeu ele, rindo-se de feli­cidade – e para quê? Mãe Susana, graças à generosa alma deste mancebo sou hoje livre, livre como o pássaro, como as águas; livre como o éreis na vossa pátria.

       Estas últimas palavras despertaram no cora­ção da velha escrava uma recordação dolorosa; soltou um gemido magoado, curvou a fronte para a terra. e com ambas as mãos cobriu os olhos.

Túlio olhou-a com interesse; começava a compreender-lhe os pensamentos.

– Não se aflija – disse – Para que essas lágrimas? Ah! perdoe-me, eu despertei-lhe uma ideia bem triste!

A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois exclamou:

        – Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi caro! Liberdade! Liberdade... ah! eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com amargura – Túlio, meu filho, ninguém a go­zou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria às descarnadas e areno­sas praias, e aí com minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias daque­las vastas praias. Ah! meu filho! Mais tarde deram­-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o amor da minha alma: – uma filha, que era a minha vida, as minhas am­bições, a minha suprema ventura, veio selar a nos­sa tão santa união. E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamen­te amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! tudo, tudo até a própria liberdade!

Estava extenuada de aflição, a dor era-lhe viva, e assoberbava-lhe o coração.

– Ah! pelo céu! – exclamou o jovem negro enternecido – sim, pelo céu, para que essas re­cordações!?

– Não matam, meu filho. Se matassem, há muito que morrera, pois vivem comigo todas as horas.

Vou contar-te o meu cativeiro.

      Tinha chegado o tempo da colheita, e o mi­lho e o inhame e o mendubim eram em abundân­cia nas nossas roças. Era um destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos folga­res, era uma manhã risonha, e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enor­me no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah! nunca mais devia eu vê-la...

      Ainda não tinha vencido cem braças de ca­minho, quando um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente, que aí me aguardava. E logo dois homens apare­ceram, e amarraram-me com cordas. Era uma pri­sioneira – era uma escrava! Foi embalde que su­pliquei em nome de minha filha, que me restituís­sem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das mi­nhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Jul­guei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível... a sorte me reservava ainda longos com­bates. Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!...

       Meteram-me a mim e a mais trezentos com­panheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!

Muitos não deixavam chegar esse último ex­tremo – davam-se à morte.

        Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças do motim.

A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade foi sufocada nessa viagem pelo hor­ror constante de tamanhas atrocidades.

Não sei ainda como resisti – é que Deus quis poupar-me para provar a paciência de sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavam.

      O comendador P... foi o senhor que me es­colheu. Coração de tigre é o seu! Gelei de horror ao aspecto de meus irmãos... os tratos, por que pas­saram, doeram-me até o fundo do coração! O comendador P... derramava sem se horrorizar o sangue dos desgraçados negros por uma leve ne­gligência, por uma obrigação mais tibiamente cum­prida, por falta de inteligência! E eu sofri com resig­nação todos os tratos que se dava a meus irmãos, e tão rigorosos como os que eles sentiam. E eu também os sofri, como eles, e muitas vezes com a mais cruel injustiça.

Pouco depois casou-se a senhora Luísa B..., e ainda a mesma sorte: seu marido era um homem mau, e eu suportei em silêncio o peso do seu rigor.

       E ela chorava, porque doía-lhe na alma a dureza de seu esposo para com os míseros escra­vos, mas ele via-os expirar debaixo dos açoites os mais cruéis, das torturas do anjinho, do cepo e outros instrumentos de sua malvadeza, ou então nas prisões onde os sepultava vivos, onde, carre­gados de ferros, como malévolos assassinos aca­bavam a existência, amaldiçoando a escravidão; e quantas vezes aos mesmos céus!...

       O senhor Paulo B... morreu, e sua esposa, e sua filha procuraram em sua extrema bondade fazer-nos esquecer nossas passadas desditas! Túlio, meu filho, eu as amo de todo o coração, e lhes agradeço: mas a dor, que tenho no coração, só a morte poderá apagar! – Meu marido, minha filha, minha terra... minha liberdade...

E depois ela calou-se, e as lágrimas, que lhe banhavam o rosto rugoso, gotejaram na terra.

Túlio ajoelhou-se respeitoso ante tão profun­do sentir: tomou as mãos secas e enrugadas da africana, e nelas depositou um beijo.

       A velha sentiu-o, e duas lágrimas de sincero enternecimento desceram-lhe pela face: ergueu então seus olhos vermelhos de pranto, e arrancou a mão com brandura e elevando-a sobre a cabeça do jovem negro, disse-lhe tocada de gratidão:

– Vai, meu filho! Que o Senhor guie os teus passos, e te abençoe, como eu te abençoo.

(Úrsula, 7. ed., 2018, p. 99-104)

____________________________

* Falta uma linha no original fac-similar. O único exemplar da edição de 1859 foi extraviado pela família do ex-governador Nunes Freire, que o possuía.

 

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"Há pau que traça pau...”

Vinte e nove de junho de 1912.

 

O Candomblé de São Gonçalo parecia uma verdadeira colmeia, dado o "entra e sai" de gente na arrumação do "barracão"; cortava-se papel, para a confecção de bandeirinhas vermelhas e brancas, varria-se o chão, apanhavam-se folhas, cadeiras eram dispostas segundo a hierarquia dos donos; mulheres agitadas, na cozinha, preparavam as iguarias rituais; outras, incumbiam-se da arrumação das próprias roupas e, mais importante, das vestimentas dos principais convidados — os Orixás.

Visitantes chegavam de toda parte para a festa; queriam ver Mãe Aninha, serem abençoados, beijar-lhe as mãos.

Habitualmente Mãe Aninha não era lá de muita conversa; naquele dia encontrava-se mais reticente que nunca, falando somente o indispensável. Ordenou a Senhora de Oxum a remoção dos assentamentos dos Orixás, de suas respectivas casas; auxiliadas por Fortunata, deveria escondê-los no mato fechado, junto, às moitas de "peregun".

Senhora e Fortunata entreolharam-se. Mas que fazer? Ordens são ordens... Seguiram à risca a determinação.

Começou a festa. Horas tantas, o homenageado principal já chegara —, ouviu-se um tropel de cavalos; era a polícia que, a mando do "Homem", vinha acabar com aquela manifestação de negros, "coisa de gente ignorante, primitiva..."

Xangô dançava tranquilamente.

No melhor da dança, determinou a um Ogã que lhe trouxesse três rolos de linha: uma preta, uma vermelha e uma branca. Entoando cantigas, desenrolou os novelos, um a um.

O barulho das patas dos animais estava mais e mais perto; sentia-se o cheiro dos cavalos. Filhas de santo entravam em pânico, pensando no pior: surra dos policiais, atabaques furados, saias rasgadas.

Aconteceu o encanto; os soldados se embrenharam mato a dentro e "nada de conseguirem achar o barracão do candomblé"; continuou a festança, com atabaques e fogos, comidas, bastante aruá e muita alegria.

No dia seguinte. Mãe Aninha ficou sabendo o ocorrido. Explicou às filhas de santo a ordem exótica de transferência dos Orixás; tivera o pressentimento de que a polícia iria armar alguma "presepada". Para que fossem evitados estragos, tomou a atitude de determinar a remoção dos assentamentos, até tudo se normalizar. O melhor lugar era a moita de nativos.

Percebia, feliz, que fora precipitada. Nada aconteceu;

— "Há pau que traça pau..."

Ria-se muito, imaginando a raiva e decepção de "seu" Pedrito.1

(E daí aconteceu o encanto, 1988, p. 23-24).

 

Ìtan 2 (1ª versão)

Òṣósi, garoto ainda, mas já demonstrando paixão pela caça e consequentemente pela mata, saía todas as madrugadas e voltava sempre ao anoitecer, sempre, trazendo uma novidade. Ele tinha poucos amigos, pois era desconfiado. Falava pouco, mas quando escapava uma conversa, falava muito de um amigo, Òsányìn. A mãe não gostava muito das proezas do amigo. Este fazia as pessoas se perderem na floresta, assustava a quem passava distraído, sem pedir licença – “ago”.

Certo dia, a mãe o chamou e disse: – Tive um sonho desagradável com você, por isso, hoje não saia de casa. Ele insistiu e ela disse: – Então não vá para longe. Como Òṣósi era destemido, achou que era controle ou repressão. Sabia também que não era de briga ou agressão. Saiu. Adiante, encontrou com o amigo Òsányìn, que pulou em sua frente o assustando. Quando reconheceu o amigo, abraçaram-se e foram andando. Ele contou a conversa da mãe, ao que o outro respondeu: – Toda mãe é boba. Nem de briga você gosta. Você não é como Ògún. Andaram muito, tiveram sede. Odé, nas pressas, não pegou o embornal da água e se lamentou. O outro disse: – Tem nada não, tenho aqui uma coisa melhor que água. No primeiro gole, Odé achou forte e disse que não queria. O outro falou: – Você parece uma mocinha. Ao que ele respondeu – Sei que sou homem. E bebeu.

A sede aumentou, Odé bebeu mais e mais, ficou embriagado, sentou e dormiu. O outro gozador jogou a bebida pela cabeça do companheiro. A tal bebida era meladinha – aguardente e mel de abelha – e colocou um punhado de penas da cabeça aos pés, pelo rosto, braços. Pôs no corpo todo. Estando embriagado, Odé não sentiu. Ao acordar, horas depois, meio zonzo, achando-se estranho, pensou que era apenas efeito da bebida, foi para casa já bem tarde, depois da hora de costume. A mãe ao vê-lo fantasiado e trôpego, o expulsou de casa. Ele voltou para a mata desolado, não encontrou mais Òsányìn que tinha se tornado invisível, depois da peça que pregou. Odé tonto, triste, com fome e sede, todo cheio de penas, não teve condições de seguir em frente.

Pela madrugada chegou Ògún, encontra Odé nesse estado deplorável, toma conhecimento do ocorrido absurdo, manda que vá tomar banho no rio, prepara uma cabana de folhas e o põe dentro e fica de guarda até passar o efeito da embriaguez, até o amanhecer. Deste dia em diante, Ode tomou horror ao mel de abelhas, não quer nem ouvir falar no nome.

(Òṣósi: o caçador de alegrias, 2011, p. 29-31).

 

 

Ìtan 4

Outra vez o mel

Sabe-se que Logunedé é filho de Erinlę com Òşun. Ao ver sempre Erinlę solitário e sério, Òşun sentiu-se atraída, porém ele nem sequer reparava nos atos de sedução daquela. Ela foi sentindo rejeitada e procurou se aconselhar com as amigas. As invejosas diziam: – Você tão linda, tão reluzente! Algum defeito você tem que ele não lhe quer. Você deve desistir. As mais sensatas diziam: – Homem é assim mesmo. Insista!

Ensinavam remédios, ębo, e nada a ajudava. Uma das mais velhas a chamou e ensinou-lhe um segredo que ela guardou e executou a prática. No fundo do rio tem um tipo de argila chamada Lamó. Ela a passou por todo o corpo dizendo palavras de encantamento. Depois se lambuzou com bastante mel de abelha e ficou na beira do rio se secando. Eis que chega o cavaleiro muito sério sem olhar para ela.

Ela então foi se dirigindo para a água, jogou-se nela e começou a debater-se, como se estivesse se afogando. O sol bateu no corpo d'Ela e refletiu o dourado aí Ele notou. Quando firmou a vista viu que alguém se debatia para não ser levado pelas correntezas. Ele mergulhou na água e quando chegou perto se encantou pelo dourado e pela beleza da moça. Segurou com braços fortes a suposta afogada que começou acariciar. Ele tinha caído na armadilha! Só depois de muito tempo é que aquela massa de argila a e mel, com o movimento dos corpos dentro d'água, foi-se soltando, o que assombrou o cavaleiro, pensando que Ela estava se decompondo. Ao chegar à beira do rio, muito preocupado, notou que mais uma vez caiu em uma armadilha que envolveu o mel de abelha.

(Òṣósi: o caçador de alegrias, 2011, p. 61-62).

 

O futuro a Deus pertence

Todo início de ano, que é entendido pela população como início de um novo ciclo, instiga as pessoas a consultarem oráculos. São muitas as artes divinatórias, todas elas baseadas em um completo, minucioso e complexo sistema filosófico. Aliás, só pode ser considerado verdadeiramente um oráculo o sistema divinatório que possua um código de interpretação simbólica, e até mesmo matemática. Não basta apenas ser uma pessoa intuitiva para que esta se coloque em posição de ler oráculos, é preciso que esteja inteiramente vinculada a uma tradição religiosa ou filosófica e conheça realmente seus fundamentos.

Apesar de diferentes tipos de materiais poderem ser usados para que se estabeleça uma conexão com o divino, é imprescindível um grande conhecimento da padronização do código do sistema divinatório em que o objeto está inserido. Assim são utilizados baralhos, pedras, varetas, e no caso da cultura africana vários tipos de sementes, além do objeto mais conhecido no Brasil que são os búzios.

Faço sempre a opção de falar em sistema divinatório e não adivinhatório, pois a utilização de um oráculo é uma oração realizada com o intuito de receber respostas reveladas pelas divindades, sejam elas as divindades maiores ou a divindade pessoal de cada um que busca esclarecimentos para suas dúvidas e orientações para seus atos futuros.

O jogo de búzios não adivinha o futuro, mostra o caminho presente, levando o consulente a refletir sobre as melhores atitudes a serem tomadas para que a caminhada a seguir seja mais fácil. Afinal, o milionésimo de segundo após o presente já é futuro. O que me inspirou a escrever sobre esse tema foi um simpático e-mail que recebi e que, depois de ter obtido a devida autorização, transcrevo-o na íntegra para meus leitores:

Prezada Mãe Stella permita-me inicialmente saudá-la com respeito e reverência. Sou seu leitor assíduo na segunda página do jornal A TARDE. Admiro muito os seus posicionamentos e as suas reflexões que muito têm me ensinado. Sou cristão e católico, assim fui batizado, porém interesso-me por todas as religiões, leio sobre as mesmas e as respeito. ‘Muitos são os caminhos que levam à casa de Deus’. A senhora realmente acredita que se possa saber o futuro através dos búzios? Continue escrevendo e me ensinando. Vida longa e próspera. Respeitosamente. Benigno Alves dos Santos Bruno Bacelar.

O certo é o incerto. A certeza da vida está na dúvida. Quando procuramos entender, compreender a realidade, ela se transforma em torno de si mesma para gerar novo questionamento. E o futuro a Deus pertence. O futuro é o mistério que pertence ao maior de todos os mistérios – Deus. Espero ter respondido à pergunta do amigo Benigno, que como o próprio nome diz é uma pessoa do bem, assim como é do bem e para o bem devem ser utilizados os oráculos.

O hábito de se vestir de branco no primeiro dia do ano demonstra, de maneira talvez inconsciente, o desejo que têm as pessoas de praticarem o bem, afinal a cor branca é considerada a mais generosa de todas as cores do espectro, uma vez que, de acordo com o conceito de cor-energia, branca é a cor da luz, pois recebe todas as cores, mas não fica com nenhuma para si, reflete todas, iluminando assim o ambiente e a pessoa que a está usando. Branca é a cor de oxalá, considerado o mais puro dos orixás.

Este artigo será lido exatamente no dia em que se inicia um novo ano – 2014 –, momento em que muitos perguntam qual o odu (caminho) e o orixá que estará governando. Não me canso de repetir que quando a divinação é feita para uma coletividade, como é o caso do “jogo do ano” realizado pelos terreiros de candomblé, as respostas reveladas e interpretadas só são direcionadas às pessoas vinculadas àquela “casa de culto”.

Por exemplo: as orientações dadas pelo caminho e pelo orixá que se apresentar no jogo de búzios feito por mim, mãe Stella de Oxóssi, são dirigidas às pessoas que, de uma maneira ou de outra, por religiosidade ou afeto, têm um vínculo espiritual com o Ilê Axé Opô Afonjá. Quem muito se mistura não consegue se encontrar.

(In: A tarde, Salvador, 2 jan. 2014. Balaio de idéias.)

 

Os brincos de Oba Biyi

A lyalorixá de São Gonçalo criara uma Casa de Candomblé a qual, além dos misteres religiosos, tinha por objetivo dar abrigo aos filhos de santo menos favorecidos.

Mãe Aninha costumava dizer a sua "irmã carnal" Andreza, que criara a Roça para Xangô e seus filhos de santo. Ela era passageira; o "Axé", não.

Muitas famílias construíram residências no terreno da "Roça"; não só famílias, aliás, como, também, pessoas sós e desamparadas. Oba Biyi doou-lhes espaços para que edificassem suas casas.

Filhos de santo em dificuldades financeiras eram discretamente socorridos pela lyalorixá.

Uma ocasião, na feira, Mãe Aninha encontrou-se com uma filha de santo que, há muito, deixara de ir ao Axé a fim de cumprir as obrigações. Feliz, ao revê-la, conhecendo o bom caráter da "iaô", uma filha de Oyá, indagou-lhe o motivo da ausência. Esta, chorando muito, queixou-se de dificuldades financeiras; o marido perdera o emprego; ela, vendedora de acarajé, não possuía mais dinheiro para a compra do material da "vendagem"; as crianças, quase já não tinham o que comer... Como ir ao "Axé", se não podia pagar o transporte? Fora à feira, confessava, para ver se catava algumas frutas ou verduras postas fora, para dar de comer aos filhos.

A velha agiu como de costume; fez uma grande compra destinada à filha de santo e família; poderia vender o acarajé e, assim, equilibrar-se.

Ao pagar o português da barraca de cereais, conhecido pela "casquinhagem", notou insuficiência de dinheiro; saíra de casa desprevenida.

O comerciante conhecia Mãe Aninha; era seu "freguês"; mas não vendia fiado nem ao próprio pai; "ora, pá; não havia jeito"...

A lyalorixá tirou das orelhas os brincos, de ouro maciço, depositando-os no balcão; — "que o cavalheiro fizesse o favor de liberar as compras mediante a guarda da joia; assim que chegasse ao Terreiro, mandaria portador com a importância devida. Ela, Oba Biyi, confiava nas pessoas de bem; certamente as argolas lhe seriam restituídas..."

O português, envergonhadíssimo, pediu mil desculpas à senhora. (Ele mesmo faria publicidade deste episódio passado com a Mãe de Santo do Axé Opô Afonjá)!

(E daí aconteceu o encanto, 1988, p. 28-29).

****

Uma fruta do "pé do santo"

Vinte e cinco de dezembro de 1937.

D. Archanja de Azevedo Fernandes foi passar o Natal com a "Madrinha Mãe de Santo", levando consigo o esposo e três sobrinhas — (filhas de criação).

A lyalorixá prezava muito Dona "Menininha", como era conhecida a visitante. Como prova de consideração, estima e confiança, deu-lhe o "oiê" de "Sobaloju", naquele dia festivo, com abertura de "champagne", discursos e abraços de confraternização.

Perto das despedidas, conversa vai, conversa vem, a "Sobaloju" chegou ao assunto de que a "sobrinha do meio" estava muito estranha, rebelde, indisciplinada; não queria assunto com ninguém; se não gostava da pessoa — (que lhe dirigia a palavra) — fechava os olhos e nada de abri-los... ia muito mal na escola... O dia não era próprio para isto, mas, quem sabe, a madrinha marcaria uma consulta; acertou-se o retorno de tia e sobrinha para princípios de janeiro.

Mãe Aninha chamou a "menina do meio", Stella, e lhe deu uma fruta "do pé do Santo". (Importante salientar-se que no dia 8 de dezembro eram oferecidas todas "as frutas do tempo" ao Orixá, o mesmo acontecendo no dia de Natal; as frutas seriam repartidas entre os membros da Comunidade).

A garota de doze anos aceitou a maçã sem coragem de devorá-la. Isso porque ao lhe entregar a fruta, Mãe Aninha olhou-a de uma forma profunda, estranha, interessante, como de quem olha longe.

Stella nunca mais viu Oba Biyi; não pôde acontecer o encontro marcado. (A menina, iniciada no ano seguinte por Senhora de Oxum, levaria, em suas lembranças, aquele olhar da fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá).

(E daí aconteceu o encanto, 1988, p. 47).

 

1 Pedrito: conhecido delegado de polícia de Salvador célebre por suas ações de perseguição ao candomblé baiano. Em 1969, foi incorporado por Jorge Amado ao enredo do romance Tenda dos milagres.

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Metamorfose

No ano seguinte, já no primeiro dia de aula, levava na bolsa um poema de quatro versos que dizia assim:

Foi boa para os escravos,
E parecia um mel,
Acho que é irmã de Deus,
Viva a princesa Isabel.

De imediato, não tive coragem de mostrá-lo à professora.

Cada vez que tentava, ficava gelada e o coração já ia correndo bater na garganta.

Mas no segundo dia de aula, numa hora em que ela disse que a minha letra era bonita, arranquei da bolsa o poema e lhe entreguei.

Ela foi até a mesa e sentou-se com o meu papelzinho na mão. Leu e releu. Pegou a caneta, riscou qualquer coisa por sobre os meus versos e mandou o Pedro chamar o diretor.

Imediatamente me deu vontade de urinar e vomitar. Será que havia feito alguma coisa errada? E se houvesse feito, iria para os grãos de milho nos joelhos?

Chegou o diretor seguido do Pedro.

Dona Cacilda deu-lhe o papel. O diretor leu. Ficaram algum tempo conversando baixinho e apontando alguma coisa que eu havia escrito.

Depois ele saiu e a professora devolveu-me o poema e continuou a aula calmamente sem um gesto que me explicasse o bom ou ruim dos meus versos. Mas a qualquer barulhinho, ficava eu toda trêmula, ávida por um sinal, uma explicação por mais banal que fosse.

Assim fiquei até o final da aula, mas quando a minha fila saía e passava pela porta da diretoria, o diretor saiu, procurou-me com os olhos e disse:

– Parabéns!

– Não foi nada. Obrigada.

Fui para casa feliz. Sabiás empoleirados na cabeça da alma.

 * * * 

Devia ser dia 10 ou 11 do mês de maio.

A dona Cacilda, logo após o recreio, disse-nos:

– No dia 13 agora, vamos fazer uma festinha pra Princesa Isabel, que libertou os escravos. Quem quer recitar?

Várias crianças gritaram:

– Eu! Eu! Eu!

Pluft, pluft!... Meu coração lá foi de novo pulsar na garganta. Era a hora e a vez de expor meu poema. Não podia perder a chance. Mas como conseguir coragem? E se errasse?

– Assim não dá – gritou a professora. – Levantem a mão.

Levantei a minha, que timidamente luzia negritude em meio a cinco ou seis mãozinhas alvas, assanhadas.

– Você... Você... Você...

Não fui escolhida. Tantos não é possível, explicou-nos ela. Mas eu não podia perder a oportunidade. Corri atrás dela, sôfrega:

– Dona Cacilda, eu tenho aquela que eu fiz outro dia, que eu mostrei pra senhora e a senhora chamou o diretor e ele falou parabéns e eu deixo ela mais grande...

Falei tudo sem respirar. Sem piscar. Medo de não convencer, de apertar os olhos e as lágrimas escaparem do controle da emoção. Saturei.

– Está bem. Amanhã você traz a poesia e a gente ensaia.

Acariciou meu rosto e riu chochamente.

Sua mão parecia pena de galinha e seus lábios no riso tinham muito a ver com as casquinhas de tomate caipira que minha mãe colocava no tempero do arroz.

Fui para casa meio angustiada. Já estava quase arrependida de haver insistido. O aumentar e decorar o poema não era nada. Difícil era não tremer, não chorar, não esquecer na hora.

Pensei em não ir às aulas por uns dias, inventar uma dor de barriga... Mas não podia falhar com a Princesa Isabel. Ela merecia. Se não fosse ela...

Que pecado seria maior: mentir que estava doente ou não homenagear a Santa Princesa Isabel?

Optei por ir e não ficar em pecado.

Antes tremer, chorar, do que ser castigada por Deus. Por Deus ou por Santa Isabel?

Pelos dois, claro.

Ela teria que pedir o consentimento Dele para me punir, já que Ele é o Pai, o Chefe, dono de todas as decisões.

Haveria na certa uma reunião no céu entre santos e santas, anjos e anjas... Não. Anjos e anjas não. Crianças não opinam, não decidem nada. Nem votam. Ah! Mas se eles pudessem...

Se pudessem, seria fácil. Eu mesma conhecia vários anjinhos: A Tilica 1, que morreu de lombriga aguada; a Luzia 2, que morreu de bucho virado; o Jorge 3, que morreu de cair no poço...

É. E tinha mais ainda e, por sorte, todos da minha cor. Seriam votos a meu favor, certamente. Fora a Ana, que era branca, o João Cláudio... acho que até eles...

Mas não adiantava ficar pensando. Criança só ouve, quando pode. O fato é que, no céu, todo mundo ficaria sabendo. Uma vergonha imensa invadiu-me toda, como o dia em que fui pega tentando descobrir a passagem do ovo do galo para a barriga da galinha. Credo-em-cruz!

Não havia mesmo outro jeito. O negócio era assumir logo de uma vez, tentar fazer tudo bonito e direito.

Comi rapidamente no almoço. Engoli quase inteiros os alimentos. Engasguei com as espinhas de mandiúva. Pus-me a escrever afoitadamente. Aumentei. Criei quatro novos versos:

Os homens era teimosos
E o donos deles era bravo,
Por isso a linda Isabel
Soltou tudo os escravo.

Reli os versos antigos, e achei que deveriam ficar por último, para encerrar a declamação com o Viva a Princesa Isabel.

Ao meu poema dei um título: Santa Isabel. Assim ficou:

Santa Isabel

Os homes era teimosos,
E os donos deles era bravo,
Por isso a linda Isabel
Soltou tudo os escravo.

Foi boa que nem um doce,
E parecia um mel,
Acho que é irmã de Deus,
Viva a Princesa Isabel.

Dentro de meia hora, havia decorado tudo.

Daí comecei a declamar pausadamente. Às vezes, começava do fim e voltava para o começo. Tudo certinho: nem um pulo nas frases, nem um gaguejar, nada.

No dia seguinte, coloquei meus escritos sobre a mesa para a apreciação da professora. Ela os pegou, leu, fez as correções ortográficas, como, por exemplo, colocando ns no final da palavra homens, concordou os adjetivos, etc.

E me devolveu:

– Decora, que amanhã você recita, certo?

Não contei que tudo estava na ponta da língua.

A festa seria depois do recreio, na manhã seguinte.

Já no momento em que entramos na classe, ela se pôs a falar sobre a data:

– Hoje, comemoramos a libertação dos escravos. Escravos eram negros que vinham da África. Aqui eram forçados a trabalhar e, pelos serviços prestados, nada
recebiam. Eram amarrados nos troncos e espancados, às vezes, até a morte. Quando...

E foi ela discursando, por uns quinze minutos.

Vi que a narrativa da professora, não batia com a que nos fizera a Vó Rosária. Aqueles escravos da Vó Rosária eram bons, simples, humanos, religiosos.

Esses apresentados então eram bobos, covardes, imbecis. Não reagiam aos castigos, não se defendiam, ao menos.

Quando dei por mim, a classe inteira me olhava com pena ou sarcasmo. Eu era a única pessoa dali representando uma raça digna de compaixão, desprezo.

Quis sumir, evaporar, não pude.

Apenas pude levantar a mão suada e trêmula, pedir para ir ao banheiro. Sentada no vaso, estiquei o dedo indicador e no ar escrevi: lazarento. Era pouco. Acrescentei: morfético. Acentuei o e do f e voltei para a classe.

No recreio, a Sueli veio presentear-me com uma maçã e a Raquel, filha do administrador da fazenda, ofereceu-se para trocar o meu lanche de abobrinha abafada pelo dela, de presunto e mussarela.

Não os comi, é claro. A compensação desvalia. Não era como o leite que, derramado, passa-se um pano sobre e pronto.

Era sangue. Quem poderia devolvê-lo... Vida?

Que se enxugasse o fino rio a correr mansamente. Mas como estancá-lo lá dentro, onde a ferida aberta era um silêncio todo meu, dor sem parceria?

 

* * *

 Na hora da festa, estava um trapo.

No entanto, não me preocupavam mais os erros ou acertos, sucessos ou insucessos. Era a vergonha que me abatia. Pensava que era a grande da classe, só por ser a única a fazer versos. Quantas vezes deviam ter rido de mim, depois das minhas tontices em inventar cantigas de roda... Vinha mesmo era de uma raça medrosa, sem histórias de heroísmo. Morriam feito cães. Justo era mesmo homenagear Caxias, Tiradentes e todos os Dons Pedros da história. Lógico. Eles lutavam, defendiam-se e a seu país. Os idiotas dos negros, nada.

Por isso que o meu pai tinha medo do seu Godoy, o administrador, e minha mãe nos ensinava a não brigar com o Flávio. Negro era tudo bosta mesmo. Até meu pai, minha mãe.

Por isso é que eu tinha medo. O filho puxa o pai, que puxa o avô, que puxou o pai dele, que puxou. ... eu, consequentemente, ali, idiota, fazendo parte da linha.

Caí em mim com a professora falando:

– Esqueceu? Não faz mal. Na outra festa, você recita. Logo chega o dia de Anchieta, do Soldado... Vamos sentar. Não tem importância.

Levou-me com cuidado e me fez sentar numa cadeira ao lado dos outros professores, na frente. Eu sentia muito sono e sede. Estranhei o fato do meu coração estar quieto, sem saltar para a garganta.

Apalpei o pescoço de todas as maneiras. Já ia verificar se estava no peito, mas desisti. Será que ele morreu?

“Pro inferno. Se quiser morrer, que morra”, pensei, olhando a sujeira do nariz que saiu preguiçosa e caiu sobre as pregas estreitas da sainha azul novinha, novinha.

Naquele dia ninguém correu na volta para casa.

Iam todos a minha volta, preocupados porque eu não conseguia andar depressa. Sentia-me sem peso e quando mudava o passo, achava que o chão à frente estava em desnível, longe, mole.

Quando cheguei em casa minha mãe falou:

– Seu almoço está em cima do fogão. Depois você leva o prato lá na vasca, que eu já estou indo lavar os trens.

Desvencilhei-me do material escolar e peguei o prato de comida.

Já ia saindo para jogar tudo para as galinhas do terreiro, quando pensei que, se eu levasse o prato logo, minha mãe ia desconfiar, porque não se almoça em tão pouco tempo. Resolvi aguardar. Destampei a vasilha e comecei a remexer a comida. Separei os grãos de feijão preto com o cabo da colher, joguei-os no meio das labaredas que mantinham aceso o fogo do fogão. Depois atirei a comida no quintal e fui levar o prato como minha mãe havia recomendado.

Até então, as mulheres da zona rural não conheciam “as mil e uma utilidades do bombril” e, para fazerem brilhar os alumínios, elas trituravam tijolos e com o pó faziam a limpeza dos utensílios.

A idéia me surgiu quando minha mãe pegou o preparado e com ele se pôs a tirar da panela o carvão grudado no fundo.

Assim que ela terminou a arrumação, voltou para casa. Eu juntei o pó restante e, com ele, esfreguei a barriga da perna. Esfreguei, esfreguei, e vi que, diante de tanta dor, era impossível tirar todo o negro da pele.

Daí, então, passei o dedo sobre o sangue vermelho, grosso, quente, e com ele comecei a escrever pornografias no muro do tanque d’água.

Quando cheguei em casa, minha mãe, ao me ver toda esfolada, deixou os afazeres, foi para o fundo do quintal, apanhou um punhado de rubi e com a erva preparou um unguento para as minhas feridas.

Enquanto umedecia um paninho no preparado e colocava na minha perna, dizia:

– Deus me livre! Eu canso de falar: não sobe nos muros, não brinca de correr e que nada. Entra por um ouvido e sai para o outro. Parece moleque. Mentira: nem moleque faz isto. Vê se o Zezinho...

Eu ouvia sua voz distante, brava-doce. Bálsamo.

Dentro de uma semana, na perna só uns riscos denunciavam a violência contra mim, de mim para mim mesma. Só ficaram as chagas da alma esperando.

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(Leite do Peito, 3. ed., p. 55-66)

 

...

Eu sou a Preta. Era minha madrinha, a tia Carola, uma irmã querida de minha mãe, quem me chamava assim. Ela sempre chegava com um lencinho na cabeça e uma sacola de palha cheia de novidades, que eu abria sentindo cheirinho de boneca nova, de joguinhos para brincar, de roupa bonita, de livrinhos de história com perfume de papel colorido.

— Preta, vim te buscar!

As férias traziam com ela flores que eu nunca tinha visto e montanhas onde o mundo ficava embaixo, depois das nuvens. Numa dessas vezes, esqueci minha cordinha de pular em cima de uma pedra. Ficava triste lembrando dela sem mim, sozinha. Às vezes imagino que ela está lá até hoje.

Mas o melhor de tudo eram os aniversários, quando a tia chegava para ajudar minha mãe a preparar delícias.

— Preta, olha o bolo, os pastéis, a calça-virada, a cuca e os canudinhos que fiz pra ti!

Porém, o grande amor que nascia do coração de tia Carola ficou principalmente na minha lembrança de certos dias tristes em que ela chegava com sua sacolinha de carinhos. E só ela sabia me chamar de Preta desse jeito que ficou tão doce. Olha que engraçado: quando outros diziam que eu era preta eu achava estranho.

— Eu não sou preta, eu sou marrom. Cor de doce de leite, como a canela, como o chocolate, como brigadeiro. Cor de telha, cor de terra. Eu sou assim... da cor dos olhos dos meus pais!

E fui aos poucos descobrindo que eu era a Preta marrom, uma menina negra. Ser negra, como me percebem? Ou como eu me percebo? Ou como vejo e sinto me perceberem? Tenho um amigo que só às vezes é preto. Que fica preto quando vai à praia no verão. Mas ser negro é muito mais do que ter um bronze na pele.

Como é, afinal, ser uma pessoa negra? Eu só respondo quando responderem como é que é ser uma pessoa que não é negra.

Uma vez, sentei debaixo da parreira de uva, na casa da vó Lídia. Fiquei olhando para o alto, as bolinhas cheias de suco por dentro. Eram muito saborosas (quando eu não descobria formigas entre os gomos). A vó Lídia sempre ficava por ali, arrumando suas plantinhas, enchendo o mundo com cheiro de terra molhada. Nossa conversa era ela perguntar pouco e eu responder pouquinho. Mas tinha um amor que grudava a gente, uma na outra. Lá estava ela, a vó linda com sua cor negra, cabelo branquinho, olhos serenos, mãos fortes e uma perna manca. E aí eu perguntei:

— Vó, quem inventou a cor das pessoas?

Isso eu perguntei porque havia aprendido que uns são amarelos, outros brancos e outros vermelhos. Ela disse:

— Eu só respondo se tu me disser quem inventou o nome da cor das pessoas.

E eu fiquei lá, pensando e chupando uva, e ela continuou plantando suas sementes

(Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998. p. 9, 12, 13)

* * *

Nyame era uma princesa do reino medieval de Gana. Seu povo acredita que os mortos habitam um mundo que é a imagem espelhada do mundo dos vivos. Por isso, os antepassados não estão exatamente mortos, mas, sim, invisíveis. O país do lado de lá é igual ao do lado de cá. A diferença é que em um deles não se consegue acender fogueira.

Sentada à margem do rio Niger, a jovem pensava em invocar a poderosa avó, a rainha-mãe, que se tornara invisível. Ela, certamente, apareceria em seu sonho, "território" onde vivos e ancestrais podem se encontrar e falar (...)

O pai de Nyame era o chefe de um reino vizinho e havia abençoado a união de sua filha com o líder achanti. Mostrou-lhe também o tesouro em pepitas de ouro que deveria aumentar de geração em geração.

Mas, agora, o coração do guerreiro estava “arrebentado” com o desaparecimento de Nyame. Os dois encontravam-se desde crianças e sempre havia tempo para se alimentarem de alegria, amizade e amor (...)

(O espelho dourado. São Paulo: Peirópolis, 2003, p. 9, 11)

Você já colheu uma história?

Certa vez, eu andava de barco pela África, quando escutei algumas pessoas falarem de uma árvore que existe naquele continente. Me aproximei e quis saber mais, e então me disseram:

– É uma árvore de onde se colhem histórias.

Fiquei imaginando uma história dentro de uma fruta rechonchuda, perfumada, saborosa, que dá no pé de... qual era mesmo o nome da árvore?

Acabei descobrindo que um guri que more ao sul de algum país africano pode lhe dar um nome. Mas uma guria que vive ao norte da África pode lhe dar outro, bem diferente. Todos, no entanto, a reconhecem, porque ela vive muito. Mais de cem, de mil, até seis mil anos. Também não há quem não se espante ao cruzar com ela. Gigante na largura, pode ter até 45 metros (eu disse metros!) de cintura. Quanto você mede? Agora imagine trinta metros. Dizem que ela, na altura, pode chegar a atingir esse tamanhão.

Então ela pode ter muitos nomes, muita idade e muitos metros.

Daí tive a idéia de fazer este livro e convidei o Mário Lemos, que mora em Moçambique, e o Georges Gneka, que nasceu na Costa do Marfim, para escreverem o que contam sobre ela nas suas regiões. É a mesma árvore que nasce em muitos lugares. Por isso, dela se colhem várias histórias rechonchudas. Véronique Tadjo, que atualmente vive na África do Sul, ilustrou o que todo mundo escreveu.

Agora só falta uma coisa: quem vai descobrir o nome da árvore?

Mas esta história começa muito antes. No tempo em que a árvore ainda era semente.

(A semente que veio da África. São Paulo: Salamandra, 2005. p. 7)

Texto para download

 

Serão sempre as terras do Senhor?

É invasão
quando gente do campo
planta o espírito de Palmares
e dá vazão ao desejo de criar
um Quilombo
e trabalhar com seus pares?

É invasão
se as terras do Senhor
cobrem-se de mato
enquanto olhares à espreita
esperam que uma estrela
traga-lhes justiça e
desfaça o temor?

É invasão
quando em Luiza Mahin
outra mulher se transforma
pra acabar com a dor
de ser tratada como
coisa-ruim?

É invasão
o homem
fincar os pés na terra, pois
será a própria Terra que
vai devorá-lo como
um joão-ninguém?

Um dia, quem sabe,
depois dos 300, 400, 1000 anos de Palmares
gestaremos novos Zumbis, Acotirenes
para redesenhar
a Nação
e talvez do rubro solo
verdes frutos surgirão.

(Cadernos Negros 17, p. 20-21).

 

Olhar negro

Naufragam fragmentos
de mim
sob o poente
mas,
vou me recompondo
com o Sol
nascente,

Tem
Pe
Da
Ços

mas,
diante da vítrea lâmina
do espelho,
vou
refazendo em mim
o que é belo

Naufragam fragmentos
de mim
na coca
mas, junto os cacos, reinvento
sinto o perfume de um novo tempo,

Fragmentos
de mim
diluem-se na cachaça
mas,
pouco a pouco,
me refaço e me afasto
do danoso líquido
venenoso

Tem
Pe
Da
Ços

tem
empilhados nas prisões,
mas
vou determinando
meus passos para sair
dos porões

tem
fragmentos
no feminismo procurando
meu próprio olhar,
mas vou seguindo
com a certeza de sempre ser
mulher

Tem
Pe
Da
Ços,

mas
não desisto
vou
atravessando o meu oceano
vou
navegando
vou
buscando meu
olhar negro
perdido no azul do tempo
vou
vôo,

(Cadernos Negros: os melhores poemas, p. 64-66)

 

Sálùbá

Nanã Buruku
Divindade do povo Ashantí
embala com dignidade
àqueles de tez escura
jogados em qualquer vala dura
na lua sua banhe com altivez os corpos
daqueles sem rosto na multidão.

 

Sálùbá

Divina mãe
leva pro lago os segredos
encantados das avenidas
na brincadeira violenta da rua
o enredo termina em nó atado
nem minha, nem tuas sitiadas crianças.

Ancestral mãe revela pro mundo
porque há presentes letais:
cola, crack, outros tantos mais ofertados
para aqueles de tez escura
cuja figura é contornada pela lâmina
afiada do desprezo.

Afetuosa mãe, cuida desses filhos
que não são seus
agora, grandiosa mãe
só você zela em cerimônia secreta
corpos esquecidos que repousam
na fria cama do asfalto.

(Cadernos Negros 29, p. 112).

 

Interapresentação

Temos aparência de felino
de dia esconde suas presas
para soltá-las à noite,
com mios de canções solitárias
que atordoam a todos,
admirados com a Negrice e o
Negrume da N O I T E. 

(Cadernos Negros 7, p. 53).

 

 

Tenho cem razões entre mil para querer ser feliz.

 

A criação me pega, me abraça e beija minha testa. Daí um frenesi me domina. Quando passa a explosão, rasgo páginas, xingo, dou porrada, me desquito de vez da palavra. Mas, no entanto, a criação vem como paixão bem nutrida, me pega, me abraça e beija minha testa.

Tenho cem razões entre mil, para querer ser feliz.

Ligo a tv para me encher de ilusões e viro super-homem limpando janelas. Viro mulher maravilha, mas meus sonhos acabam, quando alguém grita do reino encantado: Epa! Super-herói preto aqui não entra.

A gente vale tantos milhões de dólares que até nos deixam morrer de fome.

Todos os dias em ponto, o click do relógio fotografa-me como o padrão de operária.

Almoço cheesburger com molho burguês, batata frita e arroto indigestão.

Não sinto vontade nenhuma de tomar água, me encho de palavras.

Tenho cem razões entre mil para querer ser feliz.

Beijo minha mãe com a sensação de estar beijando o chão da África. Meu pai, de um griôt, meus irmãos, de comunidade.
Tenho cem razoes entre mil para querer ser feliz.

(Cadernos Negros 11, p. 30).

 

 

 GUARDE SEGREDO

 

Prezada Senhora:

Recebo com surpresa sua carta perguntando-me so­bre vovó. Como descobriu o meu endereço? Vim para cá logo depois que presenciei aquela cena. Aqui ninguém sabe quem sou, mas, mesmo assim, estou atordoada. Sim, essa é a palavra certa, atordoada. A insônia me persegue. Sabe, fatos estranhos aconteceram enquanto morei naquela casa. "Foi ele quem pediu pra voltar", foi a última coisa que vovó disse.

Tudo começou quando eu, papai e mamãe fomos despejados da nossa quitinete em Copacabana. Fui morar com vovó Olívia no subúrbio do Rio de Janeiro. Moráva­mos na Rua Major Mascarenhas, no Bairro de Todos os Santos. Eu devia ter uns onze anos na época. Apesar de mamãe ser a filha única de vovó, as duas eram geniosas. Quando ficavam juntas, brigavam sem parar. Embora pa­pai adorasse vovó, eles foram obrigados a morar com um irmão de papai. A casa de vovó era antiga. Engraçado, nunca havia me prendido a esse detalhe. Percebi isso quan­do fui residir lá. Era de manhã, caía uma chuva fina. Na­quele dia fui a pé pra casa dela. Queria sentir a chuva miúda caindo em meu rosto. Demorei menos de uma hora para chegar lá. Levei comigo apenas a mochila da escola e uma pequena trouxa de roupa. Quando cheguei para abrir o portão, ele estava trancado e com cadeado. Não me lem­bro quantas vezes chamei por vovó. Parada ali fora, ob­servei a arquitetura da casa. O portão e o muro eram de madeira e bem altos. As paredes de concreto eram altas também. As janelas, amplas e com cortinas. As cortinas deviam ser muito pesadas, pois estavam todas fechadas. Conforme circulei ao redor da casa, contei sete janelas. Uma para cada cômodo. Em alguns momentos, podia ju­rar que ouvia sons vindos de um dos cômodos. Conver­sas, risos e um tec-tec-tec. Porém... Batia palmas e mais palmas com força, chamava e gritava, e nada. Acho que minha voz se perdia entre as folhas daquela jabuticabeira, porque quando tentava espiar pela fresta do portão, as fo­lhas da árvore se agitavam sem parar. Olhei daqui, olhei dali. De repente uma mulher surgiu lá na esquina. A mi­nha alegria foi logo embora. Parecia, mas não era vovó Olívia. Tinha a mesma cor, o rosto igualmente sem ne­nhuma ruga. Magra e baixinha, e cabelos de algodão. A diferença entre as duas estava nos óculos. A firmeza e a segurança no andar daquela senhora aliviaram um pouco a minha angústia. Fiquei muito envolvida na dança lenta da vida e, quando dei conta, ela passava por mim, res­mungando alguma coisa. Talvez consigo mesma. Meus olhos não desgrudavam daquela mulher. A partir daí co­meçaram a acontecer coisas estranhas. Quando virei o corpo, vovó Olívia se encontrava ali parada. Com o susto, caí pra trás com a mochila e a trouxa de roupa. Me recom­pus. Nem consegui especular por que havia demorado tanto para me atender. Ela sorriu e disse: "Eu te esperava. Entre”. Continuei com a mochila e a trouxa nas mãos. Ela havia dito aquilo como se já soubesse sobre o nosso des­pejo. Como se estivesse nos olhando sempre. Caminha­mos.

– Temos visita, vovó? – perguntei.

– Não. "Ele" já foi embora – respondeu.

– Por onde "ele" saiu, se a única saída era pelo portão? – insisti.

Deu uma pausa, fez um muxoxo e retrucou: "Vê se não me amola". Procurei com os olhos, mas não o encon­trei. Elas tinham o mesmo gênio. Mamãe também era fir­me e autoritária. É, vovó não respondeu. O silêncio pre­valeceu naquele momento. A cozinha e o quarto estavam limpos e arrumados. Parecia que sempre estivera sozinha. Usávamos apenas a cozinha e um quarto. Por causa da imensidão dos cômodos, sussurrávamos para evitar eco. Os outros quartos da casa estavam abandonados. Não. Não tão abandonados. Vovó guardava, além de cacarecos, al­gum segredo, porque eram todos trancados. Andava com o molho de chaves no bolso, não o largava nem para dor­mir. Eu achava essa atitude estranha, porém se a interro­gasse, com certeza ela diria: "Vê se não me amola". Sem­pre dizia essa frase. Acordávamos cedo um dia sim, outro não. Eu varria e passava vermelhão nos dois cômodos e lavava o banheiro. Só não limpava o quintal, porque vivia sempre coberto por folhas e flores das árvores. Depois da faxina, cuidava da horta, apanhava algumas mangas e brin­cava no balanço, na gangorra. Brincava sozinha. Sozinha, não. Um homem sempre aparecia pra gente brincar. Como surgia, também sumia, de repente. Parecíamos velhos co­nhecidos. Quem é ele? - pensava. Vovó Olívia costurava uma colcha de retalhos. Costurava ponto por ponto. Não tenho certeza, pois nunca vi a colcha pronta.

Certa vez, limpando o nosso quarto, olhei pra cima e lá estava, bem no alto da parede, um pequeno quadro. Apesar de empoeirado, reconheci os mesmos cabelos, rosto e terno daquele homem das brincadeiras no quintal. Vovó se encontrava no banho. Então aproveitei a oportunidade, subi na cadeira mas, quando estiquei a mão para pegar e ver melhor a foto, só consegui ler as iniciais L.B. Bati o corpo no prato de uvas pendurado um pouco mais abaixo. A porcelana se espatifou no chão. Vovó chorou e me xin­gou tanto por causa do incidente! Depois disso, fui cuidar dos meus afazeres e brincar lá fora, como de hábito. Eu não disse: a janela do nosso quarto era voltada para o quin­tal. Como dormíamos no mesmo espaço, conseguimos le­vantar a janela até a metade. Porém, quando olhei lá den­tro, no lugar de vovó costurando sobre a mesinha, vi o mesmo homem do quadro e que brincava comigo. Ele da­tilografava alguma coisa apressadamente. Espiei pela ja­nela, ele conversava e ria sozinho. Percorri o olhar pelo quarto e não a vi. Fui correndo para lá. Entretanto, quan­do cheguei, vovó Olívia costurava seus retalhos. Gritei não sei quantas vezes o seu nome, mas sua voz saiu baixa e abafada: "ô que foi, menina?" Talvez fosse impressão, porém ela tinha no rosto o mesmo sorriso daquele homem.

– Quem é o homem do quadro, vovó? – Perguntei. Ele foi uma pessoa muito importante para mim. Seu nome era Lima Barreto - respondeu, com a voz embargada de emoção.

Aproveitei a sua disposição e bombardeei-a com perguntas: "Por que a senhora nunca disse isso antes? Por que ele ainda vem aqui em nossa casa?"

Foi processando uma pergunta de cada vez. Fez um muxoxo. Quando ia responder, chegou um telegrama di­zendo que mamãe havia passado mal. Fomos correndo para o hospital. Nós duas não tínhamos o hábito de ir à casa de ninguém. Apesar da crise financeira ter levado papai a perder o emprego de carteiro e deixá-lo muito doente, ele aparecia uma vez ou outra para nos visitar. Sabíamos de mamãe através de papai.

Os anos foram passando, eu estava com dezessete anos, mas meu corpo parecia de uma mulher. Estudava à tarde no Ginásio Nacional e chegava à noitinha. Certa vez, quando voltava da escola, surgiu à minha frente aquele rapaz. Ficamos conversando horas e horas. Depois de al­guns dias começamos a namorar. Cassi Jones era sarden­to, usava goma nos cabelos e andava bem vestido. Íamos para lanchonetes e barzinhos. Ele morava num bairro de classe média no Rio de Janeiro, entretanto não acreditei quando contaram que não gostava de trabalhar. Não o amava, mas não conseguia resistir a todo aquele charme. Havia dias e semanas que não assistia às aulas. Não co­mentei com vovó sobre o meu romance, mas acho que já sabia. Um dia de manhã, me disse: "Como vai Cassi Jones?" Fiquei apavorada e não lhe respondi. Ela também não insistiu. Porém eu não conseguia entender.

 

***

 

Nunca mais esquecerei aquele dia, porque tudo aconteceu tão rápido. Era Dia de Todos os Santos. Come­çou de manhã, quando tomávamos chá. Vovó se encontra­va numa total absorção. Ficou assim por minutos, meia hora, não sei. O corpo estava ali sem alma. Suas mãos contornavam lentamente a xícara na boca. Ora os lábios davam a impressão de pronunciar frases, bem baixinho, ora ela abria a boca para engolir o líquido. Nunca havia reparado, já não controlava com firmeza os seus movi­mentos.

– O que a senhora tem hoje, vovó? – Perguntei.
– Hoje é o Dia D – respondeu.
– Como? – Insisti.
– Gosto da morte porque ela é o aniquilamento de todos nós – disse.

Ela falou todas essas coisas sem olhar pra mim. Procurando entender tudo aquilo, me distraí. Quando per­cebi, estava na hora de ir para o ginásio. Peguei minha mochila e corri pra escola. Era gostoso sentir a chuva miú­da caindo no rosto. Justamente naquele dia não havia nin­guém no colégio. Aproveitei e fui buscar umas coisas que mamãe tinha comprado para mim. Presenteou-me com um pacote de roupa. Quando voltava pra casa de vovó, fui interpelada por uma senhora gorda. Parecia muito com Cassi Jones. Ela cruzou o meu caminho e ficou parada na minha frente. Insultou-me tanto!... Disse coisas horríveis do tipo: "Você é a quinta negra que meu filho deflorou e também não vai ficar com ele. Nesse exato momento está com outra garota". Além de outros absurdos, cuspiu em mim e eu também cuspi nela. Odiei aquela mulher e seu querido filho. Todos saberiam que eu não poderia olhar mais para a minha família. Não iria deixar por menos. Então fui ao mercado e comprei uma faca. Não tomaria nada, coragem eu tinha de sobra. Procurei, igual uma lou­ca, o desgraçado. Encontrei-os na saleta de um hotelzinho. Ela fugiu, mas ele não teve tempo de reagir. Foram tantas facadas!... Parei quando caiu aos meus pés. Também ar­ranquei de seu pescoço um cordão de ouro. Guardei a faca no pacote de roupa e saí tranqüilamente. Demorei menos de uma hora para chegar à casa de vovó. Foi daí que vi, tenho certeza. A sala, antes trancada a chave, estava aber­ta. Escutava um tec-tec-tec. Entrei pela cozinha, passei pelo quarto e parei em frente à porta da sala. Gritei, cha­mando vovó. Fui entrando, entrando e ouvi o Lima Barreto escrevendo à máquina. Conversavam e riam muito. Por um momento, juro tê-lo ouvido dizer: "Esperávamos por você. Entre". Eu pensava: "Tudo está acontecendo ao mesmo tempo".

– Você matou Cassi Jones? – Ele interrompeu o meu devaneio.
– Matei – respondi. "Como soube disso?", inter­roguei-me.
– Bravo! Esse era o outro final que eu queria para o cafajeste do Cassi Jones.

O escritor tirou da máquina o papel, rasgou em pe­dacinhos e jogou no lixo. Olhou para vovó e disse: "Obri­gado. Eternamente obrigado". Então vóvó Olívia falou aquilo: "Tinha de ser assim, minha neta", e continuou: "Nós não devemos aceitar o destino com resignação". Fi­quei parada, olhando para os dois. Vovó prosseguiu: "Não tive culpa, foi ele quem pediu pra voltar".

- Como o trouxe de volta? - Perguntei à quei­ma-roupa.

Ela fez um muxoxo, resmungou consigo mesma. Quando ia me responder, escutamos um barulho de sirene bem longe dali. Alguém mandou: "Vá esconder a faca no pé da jabuticabeira! Vá depressa!" Eu estava muito ner­vosa, mas fui. Quando voltei, eles não se encontravam mais lá. Vi uma caveira perto da estante. Uma coisa bran­ca, quase do tamanho da sala, vinha pra cima de mim. Não sei como consegui escapar. Só deu tempo de sair cor­rendo do recinto e trancar a porta. Eu tinha de sair daquela casa rapidamente. Chamava por vovó, gritava, gritava e ela não me ouvia. Uma voz cantava uma música na cozi­nha. Cada vez que a chamava, a canção aumentava de tom. Não tenho certeza, mas senti as paredes vibrarem. Corri, corri, quando cheguei na esquina percebi que havia dei­xado a mochila e o pacote de roupas lá na sala. Depois daquele dia, nunca mais voltei àquela casa. Nunca mais soube de vovó Olívia. Sei que ainda existe o balanço e a gangorra, apesar do mato ter tomado conta de tudo.

Tenho muito medo. A insônia me persegue. Aqui onde moro ninguém sabe desse fato. Troquei meu nome.
Obrigada por ter escrito. Foi melhor ter contado isso a alguém.
Não sei como conseguiu me achar. Mas, por favor,

 guarde eternamente este segredo.

(Cadernos Negros: os melhores contos, p. 65-72.).

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