Sálùbá

Nanã Buruku
Divindade do povo Ashantí
embala com dignidade
àqueles de tez escura
jogados em qualquer vala dura
na lua sua banhe com altivez os corpos
daqueles sem rosto na multidão.

 

Sálùbá

Divina mãe
leva pro lago os segredos
encantados das avenidas
na brincadeira violenta da rua
o enredo termina em nó atado
nem minha, nem tuas sitiadas crianças.

Ancestral mãe revela pro mundo
porque há presentes letais:
cola, crack, outros tantos mais ofertados
para aqueles de tez escura
cuja figura é contornada pela lâmina
afiada do desprezo.

Afetuosa mãe, cuida desses filhos
que não são seus
agora, grandiosa mãe
só você zela em cerimônia secreta
corpos esquecidos que repousam
na fria cama do asfalto.

(Cadernos Negros 29, p. 112).

 

Olhar negro

Naufragam fragmentos
de mim
sob o poente
mas,
vou me recompondo
com o Sol
nascente,

Tem
Pe
Da
Ços

mas,
diante da vítrea lâmina
do espelho,
vou
refazendo em mim
o que é belo

Naufragam fragmentos
de mim
na coca
mas, junto os cacos, reinvento
sinto o perfume de um novo tempo,

Fragmentos
de mim
diluem-se na cachaça
mas,
pouco a pouco,
me refaço e me afasto
do danoso líquido
venenoso

Tem
Pe
Da
Ços

tem
empilhados nas prisões,
mas
vou determinando
meus passos para sair
dos porões

tem
fragmentos
no feminismo procurando
meu próprio olhar,
mas vou seguindo
com a certeza de sempre ser
mulher

Tem
Pe
Da
Ços,

mas
não desisto
vou
atravessando o meu oceano
vou
navegando
vou
buscando meu
olhar negro
perdido no azul do tempo
vou
vôo,

(Cadernos Negros: os melhores poemas, p. 64-66)

Cena sertaneja
 
Serpentes negras foscas invadem
ameaçando o sertão
incompreensíveis na paisagem
avançam canaviais adentro
rebolando sinuosas no ventre
miserável. A fome
se instala às margens de
mãos e rostos enegrecidos
 
Sol, fuligem e muita dor
sugam canas impróprias
não mais caules em fruto
apenas seca matéria-prima
rostos e mãos carregam armas
afiadas (para o trabalho) e cegas
(na parelha com a justiça)
 
A serpente asfáltica
plana e lisa ressalta na paisagem
(estrada do coronel
asfalto do coronel)
fazendas canaviais usina.
Por enquanto a Miséria estende o braço
e implora por mais um dia
((re)confesso poesia, 2009, p. 78).

 

Serão sempre as terras do Senhor?

É invasão
quando gente do campo
planta o espírito de Palmares
e dá vazão ao desejo de criar
um Quilombo
e trabalhar com seus pares?

É invasão
se as terras do Senhor
cobrem-se de mato
enquanto olhares à espreita
esperam que uma estrela
traga-lhes justiça e
desfaça o temor?

É invasão
quando em Luiza Mahin
outra mulher se transforma
pra acabar com a dor
de ser tratada como
coisa-ruim?

É invasão
o homem
fincar os pés na terra, pois
será a própria Terra que
vai devorá-lo como
um joão-ninguém?

Um dia, quem sabe,
depois dos 300, 400, 1000 anos de Palmares
gestaremos novos Zumbis, Acotirenes
para redesenhar
a Nação
e talvez do rubro solo
verdes frutos surgirão.

(Cadernos Negros 17, p. 20-21).

 

Separação de corpos
 
Há sempre um mar
separando dois corpos
Certas vezes há ilhas
arquipélagos desunidos
que afastam suas almas
Mares de todo tipo
separam sempre dois corpos
revoltos de espuma calmos na espera
Há raras pontes sobre mares
mares de muitas cores
afastam corpos distintos
Oceanos frios e espumosos trazem
cadáveres à praia, um por vez
é o que fazem enquanto venta
é o que dizem se silenciam
 
Corpos vivos são sempre
separados por mares
A distância maior é aquela
que sempre separa dois corpos
(porque às vezes
os mares
são de lágrimas)
((re)confesso poesia, 2009, p. 64).