quando vieres ver um banzo cor de fogo

3.

quando vieres ver um banzo cor de fogo

minhas mãos nunca mais terão tocado a lama
nenhuma sede ou qualquer cheiro

só um souvenir, como precisão
de palavra bonita mais que poema

um e outro relicário:

porque as minhas mãos não
fizeram isto. quiçá o sim, o nome antes

diz-me ainda a minha sinto:

 sim. amor e palavras são
para guardar até quem sabe talvez

ardo uma dicção inventada para dizer
você pode sentir o meu abraço?


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sereia no copo d’água

leio “changing diapers”
cada verso me detém tua visão bebê nadador
- nadadora? nunca terá um sexo que te definha
o índio geronimo me aparece enquanto agonizo tua visão
                                                              [antes da queda

por que voa, tupã?
pra onde quer ir tão fundo n’água
se meu corpo te prende todo líquido?

voaríamos muito além essa cidade submersa
casinhas com jabuticabeiras, bancos cimentados
galinhas que ciscam a generosidade e nos dão
                                                              [seus filhos-ovos

te dei meus melhores ovários
- o melhor desejo é o desejo, essa vontade e potência 

me foge água, sangre
pedaços por entre as pernas
essa dor mais dilacerante que o parto da tua irmã

nada por entre os meus fundos num rasante até o fundo
                                                                    [da privada

tão longe parece o esgoto e visto daqui em nada parece
                                                                  [uma roseira

meus olhos são seu líquido amniótico
seu mergulho que me dói o corpo torna real
                                                                   [dilaceramento que brota

do coração. rasga o ventre da tua mãe, tupã!
rasga esse corpo ex prenhe que te prende!

“ausência de batimentos cardíacos”
o que faz teu coração que não bate
e me bate, me bate?

ponho as mãos no coração
só posso escutar naufrágio correndo pelos olhos
- escuta! minhas pernas bambas te esperam
te vejo o mergulho, bebê translúcido-encarnado
tem o tamanho da palma da minha mão mais bonita
teus braços e pernas incompletos dão forma
se fecho o tríptico o mundo se me fecha
fecho os olhos
choro tão alto a convulsão
mãe no copo d’água 

afundo a mão no sangue
minha vagina dói tanto
- oxalá pudesse conceber a poema mais feliz de
                                                                  [se dizer boceta

te afundo a mão no sangue
até as mãos a todo sangre

bebê na palma da minha mão mais bonita
te mergulho nessas lágrimas o corpo mais cheio 

não te dou a vida
também me a perco
os peitos se me derramam
ardo, rasgo a noite, atravesso o dia
e você é o pássaro que me foge o corpo-jaula
eu-jaula não me converto pássaro
abro a boca 

tupã. tupã. tupã. 

por que me voa se tenho os pés pegados em terra árida?
por que me voa se a jaula me fecha/
ardo, rasgo a noite, atravesso o dia
e deliro que frutos muito amargos se misturam às minhas
                                                                  [vísceras em maus-augúrios

abro a boca

tupã. tupã. tupã.

metade de mim morre quando homédico me diz aborto
metade de mim morre com tua visão de mergulhaor
                                                                   [ da provada

e voa, voa pássaro coração-de-pedra. nada esse corp’água
nada mais que até o fundo
nada mais que longe das crianças que sonham leites
nada mais que o largo da palavra mãe       
você me deixa. você me deixa. você me deixa.

o delírio me cobre os olhos
estou dormindo?
não temos a casinha, as jabuticabeiras, as cabrinhas 

não te seguro mais
mergulha e voa até o fim
nada mais que até o fundo
desaparece o corpo, eu também sou essa dissolução
a sombra da tua sombra 

a grande mãe da noite vem me visitar
estou dormindo, mãe?
que posso ser agora se não posso te ser a mãe?
a mãe imensa abre a boca da noite
é um copo
eu sou uma mulher
sereia no copo d’água

                             (In: Nossos poemas conjuram e gritam, p. 60-63)

O elefantinho da tromba caída (fragmentos)

Consuelo Dores Silva

Um elefantinho nasceu numa floresta muito longe daqui, num país chamado Quênia, no continente africano, e os animais que lá moravem lhe deram um nome esquisito: Tromba Caída (p.3).

Mamãe-elefanta se acasalou mais velha e não teve outros filhos. Por isso, ficou muito contente com o nascimento de seu bebê, mas vivia muito preocupada com a saúde dele: Tromba Caída era diferente das outras crias de elefante. Imaginem vocês que ele não levantava a tromba. Os elefantinhos do grupo caçoavam dele e não o aceitavam em suas brincadeiras. Por isso, ele se escondia pelos cantos da floresta e sua avó o consolava; dizia-lhe para não se incomodar com as gozações daqueles elefantinhos bobos. (p. 5).

O outo chegou e, com ele, veio a seca. Um grupo de elefantes atravessou savanas (terrenos sem mata, mas com árvores esparsas), à procura de água e comida, e só encontrou capim seco e filetes d’água pelo caminho.

Os dias se passaram e, finalmente, eles encontraram um lugar cheio de árvores: era o Parque Tsavo, uma grande área verde, cheia de animais e aves e, durante algum tempo, comeram muitas folhas novas. Depois, andaram um pouco e ouviram o barulho de um rio. Logo avistaram ave que bebiam água. (p. 9)

A manada, morta de sede, correu para chegar logo às margens do rio. A vovó-elefanta correu também, mas seus cascos estavam feridos de tanto andar pela savana e ela caiu. (p. 11)

Tromba Caída se desesperou ao vê-la tentando se levantar do chão. De que jeito ele a ajudaria, se não tinha forças na tromba? O elefantinho envergonhou-se por ser tão fraco, mas logo se lembrou das gozações de sua manada e sentiu uma raiva imensa. Em seguida, uma coisa extraordinária aconteceu: a sua tromba se enroscou no corpo da vovó-elefanta, levantando-a. Quanto mais o elefantinho se lembrava dos risos de deboche de seus colegas, mais força ele sentia na tromba. (p. 13)

Decerto seus antepassados, lá do céu dos animais, imaginaram que o elefantinho merecia uma ajuda e lhe mandaram energia, que o tornou forte, ajudando-o a levantar a tromba.

Os pais de Tromba Caída se surpreenderam, ao vê-lo ajudando a avó. Durante anos, os dois desejaram que ele fosse igual aos outros elefantes, mas perderam a esperança: seu filho jamais suspenderia a tromba como os paquidermes normais; no entanto, a partir daquele dia, os machos daquele grupo o tratariam de forma respeitosa. O elefantinho também possuía força na tromba como seus colegas de manada. (p. 15)

Conta a lenda que o deus dos animais queria povoar o céu com muitos elefantes, porque eles são animais amorosos com suas crias e ajudam os mais velhos e mais fracos da manada. São, portanto, bons exemplos de solidariedade para os homens e, por isso, mereciam flutuar sobre a Terra, acima dos outros animais. Assim, ele ordenou aos elefantes que, depois de mortos, fossem para o céu transformados em pequenas estrelas, e todos lhe obedeceram (p. 37).

Por isso, se você olhar o céu, à noite, verá luzes brilhantes piscando e correndo entre as nuvens: elas são os espíritos dos elefantes que, lá de cima, protegem os animais das florestas africanas. (p. 39)

 

Nota

1. Originalmente publicado na obra O elefantinho da tromba caída. (2008).

Referência

SILVA, Consuelo Dores. O elefantinho da tromba caída. Ilustrações de Marcial Ávila. Belo Horizonte: Mazza, 2008.

 

 

O crime do Cais do Valongo
(excertos)

 

“O senhor Bernardo Lourenço Viana, conhecido comerciante do Valongo, foi achado morto na Rua Detraz do Hospício N. 137, em frente a huma morada de cazas de sobrado com três janellas de frente, que encontra-se vazia para venda. A Intendência Geral da Polícia está a investigar as estranhas circunstâncias em que foi encontrado o corpo.”

Gazeta do Rio de Janeiro – Avisos –  23/08/1809


Escrevi a notícia inteira com luxos de detalhes, mas sabia que não sairia na Gazeta do Rio de Janeiro. Este libreto de repórter enfadonho, de um palmo de medida, que só falava das guerras e conflitos da Europa, dos assuntos ligados a Dom João e sua família ou, ainda, de avisos de compras, vendas, viagens... Queria que este periódico fosse como os que o marujo Caetano me trazia entre os seus contrabandos: moderno. Se assim o fosse, não escaparia de ter nele escrito que o todo poderoso Intendente-Geral de Polícia, Paulo Fernandes Viana em pessoa, coçava a cabeça e franzia s testa enquanto comprimia um lenço de linho bordado no nariz, se defendendo dos odores da decomposição que já fazia seu trabalho corrosivo.

Acompanhado de dois guardas da Divisão Militar da Guarda Real, olhava a face intumescida de seu parente distante e vizinho na chácara Andarahí Grande sem entender nada. O morto estava envolto em uma colcha sob medida, com uma faca cravada na barriga e com duas partes do corpo decepadas. Era o defunto mais estranho de toda São Sebastião do Rio de Janeiro.

Ele, que despachava a cada dois dias com D. João VI em pessoa e dominava a área de segurança pública, nunca vira nada parecido. Palavras deles. E era a sua responsabilidade patrulhar as ruas, expedir passaportes, vigiar os estrangeiros, fiscalizar as condições sanitárias dos depósitos de escravos e providenciar moradia para os novos habitantes que a cidade recebeu com a chegada da corte ao país.

– Há menos de uma semana estava este gajo na chácara oferecendo uma festa “daquelas” dignas de um vice-rei! Mas o que terá passado...? Murmurava Paulo Fernandes, enquanto verificava o defunto.

O corpo do comerciante Bernardo Lourenço Vianna estava acomodado em um caixote, a um canto da Rua Detrás do Hospício, ali bem perto da Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos, que, além do mais, ficava muito próxima da residência do intendente, uma imponente casa da Rua do Conde, perto do Campo de Sant´Anna. Sua famosa carroça estava estacionada a poucos metros. O intendente pensava que o primo, próspero negociante do Valongo era, decerto, uma figura presunçosa e bastante desagradável. Conhecia-o bastante bem das históricas desavenças familiares e também porque a sua hospedaria –a Vale Longo – um pulgueiro bem próximo aos armazéns, trapiches e tabernas daqueles subúrbios, por vezes recebia quem chegava fugindo dos conflitos da Europa e atraído pela presença da Família Real em solo brasileiro, mas não tinha dinheiro para ocupar os lugares nobres da cidade. Também tivera vários arranca-rabos com ele por conta dos depósitos de escravos; o intendente estava a fiscalizar as condições daqueles locais.

Ficou famosa uma briga entre ambos após a inspeção do armazém 23, quase defronte à hospedaria. Bernardo não queria gastar um único vintém para fazer as modificações recomendadas e sempre se valia do parentesco distante com o intendente para escapar. Desta vez foi multado. O bate-boca entre os primos aumentou o tom e ganhou as ruas, para assombro dos transeuntes. Bernardo apelou para os assuntos familiares e privados. Pronto. Por muito pouco o comerciante não saiu dali direto para a prisão.

Paulo Fernandes sempre achou que o temperamento de Bernardo o colocaria em desventuras infinitas ao longo da vida, mas nunca imaginou que o acharia morto daquela forma tão estranha e justo naquele momento, em que parecia estar no auge de suas posses, finalmente com o título de barão, cuja obtenção tanto o perturbara, e prestes a se casar com uma moça belíssima, de uma das famílias mais tradicionais da cidade, Emerenciana Campelo D´Ávila. 

(O crime do cais do Valongo, p. 7-11)

****

Certo dia, no princípio da noite, os feitores trouxeram um homem que diziam ter feito algo abominável. O senhor Lima de Azeredo, dono daquelas terras, reuniu os pretos da casa e da lavoura e também os brancos seus convidados. Todos se acomodaram como que em um teatro igual àqueles a que vez por outra meus senhores iam assistir nas casas distintas. Ficamos todos ao redor de um enorme caldeirão com água fervente. Eu estremecia imaginando o que estava para ocorrer. Nenhum dos pretos queria ver, e percebi que alguns brancos, principalmente senhoras, também não, mas o senhor Lima de Azeredo nos obrigava com voz enérgica e uma ameaça no olhar. O senhor Bernardo e dona Ignácia estavam entre os mais excitados da assistência.

O homem foi trazido por dois capatazes enormes, cada um segurando em um braço. Estava altivo, mas só começou a gritar quando viu o que seria feito. O senhor falava muito exaltado.

– Se em sua terra selvagem permitem-se estas imundícies e sujidades, vestidos como mulheres e servindo de pacientes uns aos outros, não o farão em minhas terras! Não o farão em terras de verdadeiros cristãos de bem!

Este senhor não sabia o que estava a fazer. Enquanto era conduzido para o caldeirão, entre os gritos, o homem maldizia toda geração dos senhores e jogava encantamentos. Ele era um jimbanda¹ e muitos tinham tradições em feitiçarias. Dizia as coisas fortes em sua língua, que aprendi a reconhecer um pouco nos meus tempos do mercado em Quelimane, na minha Moçambique. Ele era acusado de somitigo. Se fossem pretos fazendo outros pretos de mulher, não sei se o castigo chegaria àquele ponto, mas o condenado estava de caso com um sinhozinho branco, embora no caldeirão tivesse apenas uma cor.

Quando finalmente foi mergulhado, o pobre desmaiou de tanta dor antes de a água lhe chegar aos joelhos. Não sei o que foi pior, os gritos ou aquele silêncio cheio de odores, sons da noite e respirações ofegantes. Os rostos de uns escondendo a todo custo o medo e a aflição e os outros aproveitando o espetáculo.

Senti as tripas revirando e uma nuvem passou em minhas vistas. Calafrios de pavor percorreram meu corpo. Estava pela primeira vez em um engenho e nunca mais esqueceria aquele momento porque ele, o escravo escaldado, viria a se juntar aos muitos que me cercavam chegados do outro mundo. Disse que se chamava Joaquim Mani Congo e pediu uma coisa que eu sabia como dar: a paz no mundo dos ancestrais.

1. Homossexual 

(O crime do cais do Valongo, p. 21-23)

**** 

Fechei os olhos para ver as imagens dentro de mim e elas surgiram límpidas como cristal fino de uma taça da cristaleira do engenho Tamarineiras. Como diz um proverbio da minha terra “é melhor perder a vista que a alma” e sempre nesta mesma hora – sim, conversamos muito cedo... ou seria muito tarde? – eu desperto, pois, esse céu de escuridão quase clara faz meu espirito enxergar o meu povoado num momento mágico em que apenas três coisas havia: a imensidão úmida da planície verde, o silêncio de doer os ouvidos e o monte dominante na paisagem. Posso sentir o ar fresco depois de muitas chuvas abundantes caírem no sopé do monte Namuli. Nunca mais esquecerei essa sensação e o cheiro de natureza misturado com a terra encharcada.

O verde que domina a paisagem no meu local encantado impressiona. Todo o povoado transborda com uma abundância de espécies de plantas e animais que só existem lá. O solo fértil onde minha família plantava milho e criava cabras abrigava dezenas de casas circulares de terra batida e telhado de palha. Havia um rio, o Licungo, com milhares de pedregulhos em sua extensão onde nós, crianças, nos divertíamos quando ele não estava muito cheio e bravo. Nos trechos em que as mulheres lavavam as roupas, as pedras ficavam cobertas pelos panos estampados secando ao sol, o que dava um colorido especial e inusitado à paisagem.

(O crime do Cais do Valongo, p. 44-45)

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Guiniver

O mar me inspirou


Brisa, leve remanso
Chuva brava e hostil
Sol, calor e saudade
Mar de beleza sutil
Casco de barco molhado
Olhar pescador a vagar
Breve desejo do toque
Tuas mãos a me tatear
Vida pulsando latente
Pele com pele a queimar
Queixumes de amor estridente,
Férteis na terra a brotar
Lança sagaz tua rede
Que o Mar já me enfeitiçou
Mesmo fugaz, vem e sente
Minha chama intensa de Amor

(Infinito Rubro-Carmim, 2019)