Guiniver

Rubro-Carmim

Esse vermelho,
Líquido,
Marcante
No paladar
além do carmim
Segredos
Tim-tim
o Brinde
Sorvendo desejos
Calando mistérios
Aroma, vários
Deleite, delícias
Rubor, quentura
Rubra seleta,
Vinhedos
A pele,
os pelos
Malícia num só gole
O acre do teu prazer
No ocre do meu sagrado feminino
Rubro,
carmim,
magenta
*In vino veritas est

*Caio Plínio Cecílio Segundo – Plínio, o Velho – Filósofo

(Infinito Rubro-Carmim, 2019)

A ganância

 

Sandra Menezes

 

Essa realidade me faz pensar em Wangari como um presente de Deus, descoberto pelo nosso povo e organizado com uma sociedade há muito tempo sonhada por nossos ancestrais. Um lugar para se viver sem discriminação, com respeito à existência de qualquer ser, sem poluição do ar ou sonora, com os bens básicos garantidos a todos. Essa era a história que nos estava sendo contada desde a infância, pelos mais velhos, nas rodas de conversas e ensinamentos, e nos grandes encontros familiares que há anos acontecem em nossa grande cidade. Com certeza, em alguma medida, permanece a utopia dos fundadores diante da visão esplendorosa da natureza do meu planeta natal, com suas florestas, águas límpidas, sob um imenso céu repleto de astros e estrelas. Entretanto, sua sociedade foi estruturada por humanos, e, como tal, mesmo tendo passado por grandes provações e mudanças ao longo dos tempos, inclusive do ponto de vista da genética, e do quanto foi descoberto sobre nossa capacidade física, mental e espiritual, ainda somos propensos a cometer erros.

Quanta coisa aconteceu na história da evolução do planeta Terra, que quase desapareceu por causa de atitudes irresponsáveis de poderosos, dos que enriqueceram invadindo territórios e se apossando de riquezas alheias, para depois, oprimir e colocar sob força do seu armamento os mais frágeis, os desvalidos, os pobres. E para quê? Me assusta pensar que, depois de tantos equívocos, ao longo de uma sucessão de anos, ainda vieram novas gerações com este mesmo pensamento. Em conversas com nossos mestres e com os anciões nos encontros familiares, soubemos que no passado, antes do início da destruição maior na Terra, não faltaram alertas dos ambientalistas, cientistas, antropólogos, astrônomos, enfim, todos prevendo o pior dos quadros, caso não acontecesse uma mudança profunda de comportamento. Mas a humanidade não os levou em conta. Quanto tempo mais será preciso para que se alcance o entendimento de que de nada adiantará conquistar outros planetas, se a consciência da preservação não for considerada como a maior das conquistas?

No nosso período escolar aprendemos que não tinha sido nada fácil para os exploradores africanos chegarem ao meu planeta. A partir do século XXI, foram necessários mais cem anos para que a primeira nave espacial atravessasse as fronteiras do Sistema Solar. Antes disso, gastou-se muito dinheiro e astronautas perderam a vida para que fosse possível a instalação de uma colônia em Marte. Entre os links que encontrei no setor de história da Terra na grande biblioteca de Wangari, estão relatórios de encontros internacionais em que estudos da Aaye Ile-ise Agência Pan Africana sobre possíveis planetas habitáveis em outros sistemas da Via Láctea foram sempre pouco considerados pelas outras nações, mesmo já se tendo constatado que a astronomia integrava o conhecimento africano desde o início das civilizações. Trabalhos acadêmicos de pesquisadores africanos apontaram que o conhecimento tecnológico foi identificado em vários setores das sociedades da África Antiga. Nos arquivos guardados em Wangari, há dados que informam que, em meados do Século XX, foram encontrados numa região do Quênia, próximo ao Lago Turkana, os restos pré-históricos de um observatório astronômico. Eles demonstram também que o povo Mali, no último milênio antes da Era Comum, já conhecia a Via Láctea, com sua estrutura espiral, as luas de Júpiter e os anéis de Saturno. Nos artigos mais recentes publicados nas revistas científicas reproduzidas em novas mídias, podemos ler que uma parte dos especialistas atestava que Marte não oferecia as melhores condições de permanência para os humanos, já que tudo teria que ser levado para lá, desde o próprio oxigênio, passando pelas estufas para produção de alimentos e também os recursos em termos de medicamentos e equipamentos de manutenção da saúde.

Os analistas de história das sociedades, especialmente os que se debruçavam sobre economias do mundo, eram pessimistas quanto ao sucesso da colonização do planeta vermelho. Eles denunciavam que os responsáveis pelas equipes de diferentes países tinham interesses que atendiam a corporações e empresas comerciais norteados pela competitividade, pela ganância, ocupando Marte com a mesma mentalidade e preceitos do que foi feito na Terra pelos colonizadores antes e depois da era industrial. As multinacionais se estabeleceram naquele planeta com intuito de explorar ao máximo os ganhos financeiros, em detrimento da boa convivência, da evolução das pesquisas com fins humanitários e do cuidado com o ambiente. Até que a missão africana encontrasse e colocasse a sua bandeira no planeta verde, muitos outros projetos espaciais europeus, americanos, japoneses, que eram considerados superiores ao do povo negro, fracassaram. Os antigos afirmam que a herança de civilizações pioneiras e o aperfeiçoamento de pesquisas com tecnologia própria, sem abrir mão da compreensão de que a união é primordial, foi o que guiou os africanos, e os levou muito além do que outros povos na Terra poderiam imaginar.

(In: O céu entre mundos, p. 81-3)

 

Texto para download

BRANCA HISTÓRIA
 
Hoje num esforço sobre humano
lutamos pela integridade do Ser
que a branca história
covardemente esfacelou.
 
Nossa luta deixou de ser
contra matas serradas
vegetações turbulentas
touceiras de espinhos
flechas, açoites.
Ela se dá bravamente
no asfalto, a céus claros
horizontes abertos.
 
No entanto hoje
não é menos intensa, imperiosa
explode ela na garganta do bóia-fria
nas veias da doméstica
e em todas as dignas bocas negras
que sobrevivem
à dizimação da abolição.
            (Cadernos Negros 9, p. 18) 

 MARIA

"Terrível e lastimosa sorte é a de um escravo.
Se some, é sempre
o pior e a mais vil iguaria,
se Veste, o pano é miais grosseiro e o traio
o mais desprezível,
se Dorme, o leito é muitas vezes a terra fria ou
uma tábua dura.
O trabalho é contínuo, a lida sem sossego,
o descanso
inquieto e assustado, o alivio pouco e quase nenhum;
quando se descui­
da, teme, quando não pode, violenta-se,
e tira da fraqueza força.”

Jones
Racismo e Preconceito
 

Sim, dizia ele, nós trazemos, dentro de nós, este espírito de luta de nossos antepassados.

Maria adora quando Jorge lhe declama este trecho, tirado não sabe de que livro mas que a encanta muito. Ele sempre lhe diz, mas ela sempre esquece. E ela cada vez mais se encantava com aquele rapaz, pois ele apresentava qualidades que até então ela só encontrara em brancos, mas também, dizia ela, é que ele fizera até o segundo ano de filosofia; não continuara devido a alguns problemas de família. Esta explicação era sempre dada quando Jorge impressionava também suas amigas.

Maria já não pensava em mais nada a não ser ter aquele cara que a impressionara tanto, não só a ela mas a sua família, amigos. Como era desembaraçado, como sabe dialogar, como parece saber a respeito de tudo, diziam todos.

Jorge, por sua vez, se sentia cada vez mais orgulhoso por ter despertado paixão naquela criatura aparentemente tão frágil, bem inde­fesa, com tudo para aprender, menina de família – estava quase sempre acompanhada de sua mãe, senhora já de meia idade ou de sua irmã bem mais nova que ela.

Maria encontra em Jorge tudo o que sempre procurara no negro e que foi sempre negado pela sociedade na qual vivemos, uma inteligência, um QI, como querem eles. Jorge encontra em Maria tudo aquilo que dignifica um homem, uma menina de família, nem muito inteli­gente e nem muito burra, e sobretudo com uma virgindade acima de qualquer suspeita; dizia sempre ele, virgindade é algo muito raro hoje em dia. Quando ele dizia isto ela sempre ficava um tanto confusa, pois varias vezes o escutara dizendo coisas contra virgindade, no centro comunitário do qual ele fazia parte, mas ela jamais ousou contestar o que quer que seja dito por ele, pois quem era ela para discutir com ele? As poucas vezes que tentara, saira mal, sobretudo no entender dele.

A idéia de casamento, cada vez mais, tomava vulto nos dois, mas como nem toda felicidade é completa, ambos se encontravam diante de um sério problema: mesmo com a grande inteligência e capacidade de apreensão da realidade social em que vive, Jorge não consegue um bom emprego. E Maria como toda boa moça de família costuma frequentar missas, e, como boa cristã, faz sempre promessas, pedindo isto e aquilo aos santos; pede pois, com todo fervor, para que Nossa Senhora, Mãe e padroeira deste imenso Brasil, ajude o seu Jorge conseguir uma boa colocação, graça esta que, acredita ela, não ser difícil para a Santa realizar, uma vez que Jorge é um cara instruído e de boa aparência.

Em maio e realizado o grande sonho de Maria, no dia 25, para ser mais precisa. Maria jamais irá esquecer este dia, sem dúvida o mais lindo de sua vida. A igreja fora toda enfeitada de margaridas brancas, estava linda, quase todos os convidados foram à igreja, sua mãe ficou bastante satisfeita pois até o candidato a deputado do bairro compa­receu às cerimônias. Jorge estava lindo. Não ficou nem um pouco nervoso durante as cerimônias. Neste dia, a família de Maria gastou nulo o que tinha e o que não tinha. Seu pai fizera questão de arcar com a festa e toda sua despesa sozinho, e já havia dito que não queria saber de qualquer comentário que não fosse favorável à festa, e realmente, tudo correu muito bem.

Maria, como havia prometido, um mês após o casamento, leva a Aparecida do Norte, conforme prometera, uma fotografia do seu grande dia, e deixa-a aos pés da Santa, isto pela graça concedida: O “emprego” de Jorge e seu casamento. Hoje, após 4 anos de casada, Maria com três filhos, na véspera do 4o, tem plena consciência da falta de sorte de Jorge, a inveja, disse uma comadre dela, deve ser o que mais atrapalha, por ser ele bonito, inteligente. Pois é, diz ela sempre com pesar: o máximo de tempo que ele conseguiu ficar em um emprego foram cinco meses. Às vezes, quando falta o que comer em casa, Maria chega até pensar que seria melhor se seu marido não fosse nem tão inteligente e nem tão bonito, mas logo ela apaga este pensamento de sua cabeça, ela ama em Jorge, sobretudo, sua grande inteligência. Em horas de grande desespero seu marido tem sempre palavras de alento. "Tudo, querida, tem remédio", e Maria sabe que po­de contar com sua mãe. Ela durante todos estes anos não lhe decepcio­nou nenhuma vez, como o próprio Jorge diz. Sua mãe é ponta, nunca dá furo. O que mais deixa Maria magoada são certos tipos de comentários. Por exemplo: sua irmã teve a ousadia de dizer, outro dia, que o seu Jorge é um grande vagabundo. Diante da infâmia, Maria deixou de conversar com sua irmã durante 5 meses. Uma amiga, outro dia, disse ter visto Jorge em uma festa com uma outra garota. Mas Maria não acredita nestes tipos de comentários a pedido mesmo do próprio Jorge, que diz sempre e com muito carinho: "Só quem pode realmente saber o que sou, ou quem sou é você, que convive comigo 24 horas no dia. Me diga, amor, quem mais pode saber?" Jorge, diz ela, é muito mais que um marido, é um amigo, um amante, a ele só falta um pouco mais de sorte que, sem dúvida nenhuma, um dia ele terá. Maria tem hoje mais certeza disto do que ontem, pois isto lhe foi dito por uma Mãe de Santo de um terreiro muito bom que lhe indicara a madrinha de sua filha mais nova que costuma frequentar terreiro. Quem não gosta deste tipo de coisa é sua mãe; seu maior desgosto, diz ela, é ver sua filha atrás disto. Diz ela ser crendice de preto ignorante. Mas na verdade Maria já não acredita na força destes Santos de Igreja, só oração ela acredita que não funciona, e outra coisa que ela costuma dizer é que neste mundo onde o dinheiro impera, todos, inclusive os Santos, só lhes prestarão favores mediante pagamentos. Jorge costuma também dizer que ignorância é achar que as religiões africanas são crendice. Apesar de Jorge lhe dizer sempre isto, ele não gosta também que Maria vá a centros, o que ela sempre faz escondido para não vê-lo nervoso.

Jorge sempre lhe explica o porquê de não gostar que ela frequente isto mas ela nunca entendeu. Em dias chuvosos ela se angustia muito, mas ela sempre fora assim, os dias de chuva foram sempre os piores. E é nestes dias que ela maldiz sua sorte, sente vontade de deixar tudo, mesmo o bonito e inteligente Jorge, chega mesmo a pensar que sua irmã tem razão, de que ele deveria se esforçar um pouco mais, que beleza, como diz o outro, não vai à mesa. Ma$ assim que Jorge chega, todo mal pensamento se vai. Jorge tem um poder mágico de lhe aliviar a canseira quando ela chega da faxina da casa de alguma branca azeda; de lhe aliviar o cansaço depois de um tanque de roupa lavado, de uma noite mal dormida devido ao choro de uma criança que quer mamar, que sujou as fraldas ou que está com dor de barriga. Enfim ele tem o poder mágico de aliviar o cansaço da luta pela manutenção do lar que, claro, ele só não o faz devido à falta de sorte, sorte que hoje ele não tem mas que terá amanhã, assim lhe dissera uma cartomante e, mais recentemente uma Mãe de Santo.

Maria de vez em quando, aproveitando o humor de Jorge, pede para que ele declame aquele trecho. Jorge é muito bom, quase sempre entende, e a parte mais comovente é a final, pois toca-lhe bem no fundo, diz ela.

“Quando não pode, violenta e tira da fraqueza força”. 

(Cadernos Negros 4, p. 97-100)

JUREMA PRETA
 
Ri, Jurema, Ri
Das leis que regem
a discriminação racial.
 
Ri e muito Ri
                 gargalha
Daqueles que dizem que  (–De maneira
alguma!) ela é Natural
pois para eles, Só naturalmente
O Branco é o Natural.
Mas!?
         se teus olhos cheiram
se teu nariz mira
se tua boca escancara um riso largo
se teus cabelos ao vento se impõem
  
se teus braços abraçam
se tuas pernas te conduzem
É natural que somente natural
é o que podes ser.
Então Ri, Jurema, e muito Ri
gargalha
da falta de originalidade
– na naturalidade –
Do Branco O Natural.
                  (Cadernos Negros 9, p. 19)