Amigas

O elevador chegou ao térreo. O alarido do vozerio, logo que a porta se abriu, dominou o hall de entrada do prédio, estridente como canto de cigarra ao sol. Não condizia aquela felicidade de piquenique num dia que amanheceu nublado; agora, chovia garoa fina e irritante. Elas sorriam, falavam alto. Carregavam nas mãos objetos coloridos di­fíceis de distinguir. Alguma coisa brilhava, não só nelas, mas também em suas vestes, ao seu redor.

Não tive tempo de me arrepender. Notei pedaços humanos espalhados por toda a sala, forravam o tapete e as paredes como enfeites, bibelôs, pareciam ofertados. Minha cabeça doía. Foi tudo muito rápido.

A garoa molhava as cabeças das ruidosas transeuntes. As vestes coloridas e vistosas brilhavam como se o sol reinasse naquele dia nublado. Falavam ao mesmo tempo. A linguagem era incompreensível aos demais, que corriam meio a esmo para esconder-se do vento que jogava as gotas finas da chuva contra os passantes. Elas não se incomodavam com a chuva, sorriam, falavam, gesticulavam.

Não, não foi rápido. Demorou para acontecer. O encontro tecido há anos nas entranhas do tempo, sem sabermos. Aquele dia mudaria as nossas vidas. Encostei o pensamento em algum espaço neutro. Dirigi-me à cozinha, copos de vinho sujos na pia.

Quem trouxe o vinho? Não me lembro. Preocupei-me com a faxina, sem esquecer ou lembrar. Pelo estado da casa, havia sido uma revolução. Aglomerei as louças na pia. Abri a torneira, a água escorria forte e constante. Ao virar-me para a mesa imponente no centro do cômodo, deparei com um ser sentado sobre ela, com as pernas entrelaçadas, os braços cruzados sobre o peito e um olhar zombeteiro, imóvel qual um vaso.

Sorri entre espantos. Qual delas teria deixado aquela criatura ali, esquecendo de levá-la? Sorriu-me com os olhos fechados, mantendo a posição de meditação. Havia algo de indecifrável nela. Abriu os olhos e, sem abrir a boca, afirmou ir embora. "Bom mesmo que fosse" – pensei. Não tinha serventia, ao contrário, estorvava-me. Eu estava tão cansada, os sentimentos em torvelinho, a paciência se extinguia. A criatura sentada em posição peculiar repetia em comunicação muda, falava dentro da minha cabeça que iria embora, porém não se movia.

Elas atravessavam agora uma larga avenida. O asfalto molhado brilhava. E a noite descia mansa e silenciosa. Sobre elas pairava uma luz. Emanava de cada uma um brilho especial, inexplicável, próprio das pessoas que encontravam suas próprias vidas. Irradiavam um bem-estar vindo de um tempo. Um Tempo! Movimentavam-se mais leves, mais certas.

Aquele ser ali sentado, sem serventia, não me pertencia. Eu conhecia todos os meus fantasmas, não era nenhum deles. Ignorei-o. Disse-me: "Vou embora".

Que fosse, porém não se movia. A cozinha cheirava a alho. Tudo cheirava a alho! Lembrei: "Alho purifica o sangue e o ambiente". A julgar pelo odor de alho e a quantidade de alho que ingerimos, tudo estava purificado. Ele ali aparentemente inútil, incomodando e estorvando. Fiz menção de tocá-lo. Impediu-me, levantando o dedo indicador numa ordem silenciosa. Apontou-me um seio vazando leite sobre a cadeira, era mais um pedaço humano que forrava a casa sem cerimônia.

O seio vazava leite, fazendo uma poça que escorria para o infinito, rompendo o limite do pequeno apartamento. Impedia minha passagem para fora do aposento. Lembrei que, na conversa ruidosa no encontro daquela tarde, uma das cinco o havia tirado, mostrando a todas como relíquia, dizendo: "Às vezes, me faz sonhar. Leva-me ao infinito da imaginação". Tirava-o, fazia com que todas o acariciassem como talismã, afirmava: "É preciso navegar, ir mais longe". Fiquei comovida por ela querer dividir emoções e sentimentos tão importantes, tão íntimos. Todas, cada qual na sua vez, acariciaram, experimentando sensações próprias e únicas. Agradeci a oferta, num sorriso, e acariciei tímida, sentindo a maciez e o calor da pele.

Caminhando nas ruas da cidade, elas agora relutavam em se separar e seguir seus destinos de pássaras. E eu ali no espaço, que, naquela tarde, serviu para quebrarmos limites. E os pedaços dessa quebra espalhavam-se por todos os cantos. E ficou aquela estranha criatura sobre a mesa. E acreditar que aquela tarde diáfana, de encontro de existências, aconteceu apenas para nos alimentar naquilo que teríamos que fazer na vida. O caminhar. Na passagem do plural do ser para a singularidade de ir, prolongando sensações, adiando a separação. Eu fiquei, elas foram per­correr outros mundos. Havíamos nos reconhecido como um clã distinto. Quem sabe éramos herdeiras das sacerdotisas Geledes, e por uma trajetória trágica tínhamos comido do fruto da árvore do esquecimento. E naquela tarde juntaram -se em nós os murmúrios de vozes seculares, infundindo verdades, quem sabe?

Apesar do mau tempo, riam, um bem-estar percorria-lhes as veias. Pararam um pouco na esquina. O momento chegava. Hora de ir, não dava mais para adiar. Tarde de muitas descobertas, de muitos sonhos, como se o invisível nos tivesse reunido ali com intenções secretas, separando-nos depois para vivermos nossas importâncias. Eu ali fisicamente em meu apartamento, mas ligada a elas por um fulgor de intensa magia; de olhos fechados vi as luzes arco-íris, igual à cauda de um cometa, magnetizá-las lá na distância da rua e alastrar-se irrompendo em minha pequena residência, onde conhecemos a certeza de não estarmos sós.

Elas, as pontas de um pentagrama, estrela do cometa, vieram de longe, de muito longe para além delas mesmas, para encontrar-me cadente a procurar esperanças. Percorremos dúvidas e certezas; juntas, misturamos nossas marcas, trocamos e espalhamos belezas. Abri os olhos, deparei com a estranha figura instalada em minha casa; sem abandonar a postura corporal, moveu um dedo, e todos os pedaços humanos espalhados na casa grudaram-se a ela de maneira desordenada.

Uma luz, uma breve luz colorida qual relâmpago acendeu-se no ambiente no centro de tudo; assistia, via e ouvia, porém sem poder interromper. Depois, tudo se apagara. Quando tudo voltou ao real, minha casa reluzia.

Eu sabia que não tinha sido um sonho. Eu sabia! Sentia-me mais forte, capaz de voar, flutuar, dançar. Na esquina, elas também criaram asas, foram cada uma para um lado deixando um rastro de luz na paisagem.

(Cadernos Negros 2, p.103)

 

Bará na trilha do vento

O ar, ao adentrar abrupto nas fendas estreitas do poço do elevador, fez vibrar objetos metálicos soltos, reverberou qual agogôs, como a despertar sensibilidades adormecidas. Ela abriu a mão, aspirou o odor do sumo da folha, uma vertigem acometeu-lhe, teve a impressão de girar no eixo do próprio corpo, o medo a apossou. Desapareceram os contornos do corpo, um tilintar estridente, qual chamado, inicialmente distante, mais próximo e forte na medida em que a sensação de ser mais leve que o ar a dominava. Flutuava em direção ao tilintar de campainha que soava alto. Os pés tocaram o chão, reconheceu cada canto, cada cheiro, fez menção de levar as mãos em concha aos ouvidos, para abafar o ruído, não concretizou a intenção. Espantada, percebeu que não trajava mais o robe confortável de seda azul, com estampas sutis de estrelas e nuvens brancas, sobre a camisola curta, azul claro, sensual, com sofisticado brilho e suave caimento, atada aos ombros por alças finas, delicadas e enfeitadas com detalhes de strass e pérolas. Embaixo da camisola os seios firmes, livres do sutiã, balançavam discretos e naturais, roçando docemente o tecido fluido escorregadio.

O tilintar de um relógio despertador ecoava intermitente, com pausas breves. Através da névoa que se dissipava lentamente, ela entrevia detalhes do ambiente e caminhou às cegas pelos cômodos da casa. Pisando o assoalho de tábuas de peroba encerado, guiada pelo ruído, encaminhou-se em direção a uma porta robusta, de madeira pintada, fechada. Ao chegar à soleira, reteve um gritinho quando o despertador, dentro do cômodo, tornou a soar. Aproximou, com dificuldade, a mão até a maçaneta, não a alcançando; a estrutura corporal tinha diminuído para a de uma criança de sete anos. Nas pontas dos pés, esforçou-se para girá-­la e a porta, ressoando um clique, destrancou. Empurrou-a lentamente, espiou pela abertura, o coração batendo descompassado; vislumbrou a cama de casal de seus pais, em madeira escura, a cabeceira sustentada por duas colunas em forma de lança. A colcha violácea bordada à mão, flores brancas, e os babados franjados, quase até o chão, tudo intacto, como se, num capricho inexplicável, o tempo tivesse perpetuado o cenário vivenciado na infância. "Mas, como?". Abismou-se, os anos se passaram, ela cresceu, tornou-se mulher, no entanto, encontrava-se na sua antiga casa, criança ainda. Cabelos trançados, enfeitados com grande laço de fita branca, esmerado na goma do tecido e no capricho da amarradura da laçada, vestidinho sempre bem passado, as meias soquete brancas e sapatos pretos engraxados e lustrados, por obra e arte de Dona Trude.

Emoção mista apossou-se dela, a criança temerosa em ser flagrada a bisbilhotar, a adulta, presa no corpo criança, impotente. Confusa, desejou voltar à segurança do confortável apartamento, respirar o ar morno e umedecido após a chuva. Mas, presa ao passado, vivenciava o pretérito do futuro, mergulhada, impulsionada por desejos e curiosidades infantis; apesar da presença da consciência adulta, perdera o comando das ações. Guiada pelo som do despertador, reconheceu de imediato o relógio preto sobre o criado-mudo, se encaminhou até ele e o apanhou. "O despertador preto. Os números e ponteiros verdes brilham no escuro". Balbuciou, assustando­-se com o timbre acriançado da fala. "O despertador preto". Repetiu mais alto, tentando reconhecer, naquele tom infantil, a voz aveludada, com um quê rouco e sedutor, que possuía e do qual se orgulhava. Utilizava­-se deste recurso natural, como os antigos flautistas hindus valiam-se do instrumento para neutralizar o instinto de ataque do ofídio venenoso que, encantado, aquietava-se tornando-se aparentemente inofensivo.

(Bará na trilha do vento, p. 31-33).

Mahin Amanhã

Ouve-se nos cantos a conspiração
vozes baixas sussurram frases precisas
escorre nos becos a lâmina das adagas
Multidão tropeça nas pedras
Revolta
há revoada de pássaros
sussurro, sussurro:
“é amanhã, é amanhã.
Mahin falou, é amanha”
A cidade toda se prepara
Malês
bantus
geges
nagôs
vestes coloridas resguardam esperanças
aguardam a luta
Arma-se a grande derrubada branca
a luta é tramada na língua dos Orixás
é aminhã, aminhã”
sussuram
Malês
bantus
geges
nagôs
“é aminhã, Luiza Mahin falô”

(Cadernos negros: melhores poemas, p. 104)

Gotas

Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
a chuva e o vento
purificam a terra
Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
Orixás iluminam e refletem-me
derramando
gotas

iluminadas de Axé no meu Ori

( (De) Clamar, p. 27)

Pedra no cachimbo

A pedra quando chega acerta
acerta bem no meio dos meus sonhos
bem nos olhos da esperança
e cega
a pedra quando chega
é fumaça em cachimbos improvisados
é cinco segundos de noia eufórica

fúria em descontrole
A pedra quando chega é demo-crática
acerta brancos negros pobre e ricos

Mas os poderes públicos só se sensibilizam
quando a pedra no cachimbo acerta
a vidraça das coberturas dos jardins
à beira-mar
E ameaça transbordar
somando todas as lágrimas de verdes olhos
aos das piscinas de sonhos
senhoriais.

( (De) Clamar, p. 10)