Deus Negro

                                      Lílian Paula Serra e Deus

Habita em mim um Deus negro,
que me chama de minha filha
porque sabe correr em minhas veias o DNA do criador.
 

Habitam em mim bênçãos de deuses açúcar mascavo,
que me sabem África sem precisar de certidões.
O meu choro é negro,
nele habitam dores por séculos chicoteadas.
O meu canto tem um eco msaho, capoeira e ritual.
 

Sou o retinto na pele e Oxóssi na voz.
Habitam em mim deuses África,
Direcionam-me a estrada Ogum, Iansã, Yemanjá, Obaluaê.
Banham-me de preto por fora e fazem pulsar por dentro um
Sangue Negro para o qual não quero a libertação.

                           (In: A palavra em preto e branco, p. 27)

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Necropolítica

Lílian Paula Serra e Deus

 

Jura que eles pensavam que encontrariam algo ali? Não, eles tinham a certeza de que o que procuravam não estaria ali, mas era preciso atirar em alguém.

A ordem era mirar nas cabecinhas.... e fogo. Enquanto sobrevoavam nas suas aeronaves milionárias, munidos da certeza dos alvos, sabiam que ali só havia aviõezinhos. Sabiam de tudo, eles sempre souberam, desde o início. Quando Dona Dores chorou o corpo de seu filho estendido no chão, como bicho, boi abatido pelas costas e exibido como troféu, resultante da caça empreendida com sucesso, também sabia que não seria a lágrima derradeira. Eles nunca erraram a mira, nunca perderam o alvo, mesmo que para isso engendrassem oitenta precisos disparos.

Assim como em todos os anos, em janeiro, quando as chuvas cairão com a força de rebentação anunciada, será ali a foz de todas as perdas, bem ali que a correnteza desfará vidas e arrastará, junto ao lixo, gente. Aquela gente que não era gente, gente-bicho, gente-lixo, apenas pontos sujos em meio ao espaço-lixo da cidade-luxo que não poderia se desfazer.

Quando a esperança de Maria desmoronou junto ao corpo de seu marido soterrado em meio aos escombros do prédio que cedeu a força das águas, na Muzema vizinha, ela sabia que a disputa por espaços tem custado as sobrevidas da não-gente que não cabe na regularidade de um lugar para existir.

Era manhã de sexta-feira quando os dois prédios desabaram. Elisa viu pela TV que as construções eram irregulares. Eles sempre souberam, eles, nós,  Maria, Elisa e você. São as cidades maravilhosas  (des)organizando vidas, é o Cristo que a ela não dará a redenção. À Guanabara os braços abertos, a ela a porta  dos fundos, quando houver portas.

Assim como Elisa, Maria sabia que os prédios, projetados para cair, regulavam a sua existência. Sabia também que a Angra caberiam os grandes castelos  para neles habitarem os que se viam reis. E para isso era preciso refazer senzalas, atear fogo nos quilombos, demarcar território, desapossar indígenas, aniquilar indigentes e empreender a guerra em nome da hipócrita paz.

Nos meses anteriores, foi também na TV que ouviram que era preciso limpar a cidade para o Natal. Era preciso apagar algumas luzes para que outras brilhassem mais. Todos os anos, no projeto de arquitetura das luzes de Natal estava previsto o descarte das lâmpadas queimadas e sua substituição por aquelas naturalmente criadas para a(s)-cen-der.

Elisa nunca havia gostado do Natal. Era uma festa para a qual nunca tinha sido convidada; seu nome não constava na lista oficial. Sem convites, sem banquetes, sem presença, sem ouro, incenso ou mirra, só mesmo a fome apertando no vazio do último mês do ano que não se contrapôs aos demais. E naquele ano seu desgosto natalino era quase um ódio, uma raiva que não tinha a quem endereçar, por uma infelicidade que não teria com quem partilhar.

Era noite de segunda-feira, Elisa e seus três filhos, dois ao seu lado e um ainda amparado pelo aconchego da casa-primeira, talvez o único efetivo lar que viesse a conhecer, caminhavam ao encontro de Silva, pai das crianças e seu companheiro de vida, que os esperava ali, na zona Sul, no Chapéu da Mangueira, com a missão de protegê-los das águas, aquelas que já davam indícios da força com a qual cairiam em janeiro, quando se deparou com um corpo estendido no chão. Foram três balas; três projéteis disparados pela polícia contra um guarda-chuva fuzil preto, contra mais um Silva, metralhado em nome da pacificação, em nome da Zona sul e suas luzes de Natal, que arrastariam Elisa para manjedoura, onde no dia vinte e quatro de dezembro daria a não-luz, ao não ser, ao menino-bicho, menino-lixo, que não traria as festejadas feições do abençoado menino-luz tão esperado para as comemorações de Natal.

(In: Não é preciso ter útero para ser mulher, p. 42-45).

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EGO
                                        Lílian Paula Serra e Deus

Exponham-se todas as hipocrisias
Afaguem-se as vaidades
Contemplem-se os egos
Mas, não fujam das guerras criadas pelo reinado do eu

Hoje, o espelho do Narciso é a self
Mas, não se alcança a paz com o ego nas mãos

A história só faz sentido quando contada no plural
história no singular é poder
É livro sem contracapa
diálogo sem interlocutor
é Ocidente, sem Oriente
é centro sem periferia
é ego, sem alter ego
é texto sem polifonia
é monólogo

Há quem diga que Tiradentes foi herói. Foi?
E Njinga? Foi o quê?

Quem conta as histórias das margens?
Quem ouve o grito dos Malês
a resistência dos corpos
as vozes por vezes roucas
que a história escolhe não perceber?

Como sanar o ato falho de uma História que se centra no ego do ocidente?
Egocêntrica, eurocêntrica, egoísta.

Sejamos a contra voz
O contradiscurso
O avesso
o dorso
a contramão, a margem

E quem contará as nossas histórias?
Quem exaltará os nossos egos?

Será preciso buscar no inconsciente a inconsistência de uma
história que por séculos se quis única?

                                          (In: A palavra em preto e branco, p. 55-57)

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Guerra Santa

                                    Lílian Paula Serra e Deus

Em nome do Pai nós matamos.
Em nome do filho nós destruímos.
Em nome do espírito santo nós traímos.
Em nome do ser humano, não deveríamos dizer amém.

                     (In: A palavra em preto e branco, p. 20)

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Aruanda

           Lílian Paula Serra e Deus

Ó minha santa de Aruanda,
Quitéria, minha mãe.
 

Ó minha santa de África.
Vós que habita meus versos pretos,
meus livres versos pretos.
 

Vós que é rosa branca.
Vós que me banha a aura,
traga Aruanda pra mim.
 

Lave minha alma, minha mãe,
que eu lhe devolvo
alecrim, alecrim, alecrim.
 

Ó minha santa mãe África,
Ó minha santa mãe negra,
 

Que antes de santidade é terra,
Que antes de luz é corpo,
que antes de mulher é minha mãe.
 

Traga pra minha vida Aruanda,
que eu lhe devolvo
 

Alecrim, alecrim, alecrim

(In: A palavra em preto e branco, p. 69-70)

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