Thaíse Santana

[Para garotas negras crescidas e pequenas]

ei, garotinha negra,
eu já estive no seu lugar
eu conheço esse olhar de medo
essa expressão fechada
que recusa encarar o espelho
para não se ver como se é
ei, garotinha negra,
eu já estive no seu lugar
eu conheço as palavras duras
que agridem seus ouvidos
que confundem os seus sentidos
que despedaçam o seu coração
ei, garotinha negra,
eu já estive no seu lugar
eu conheço essas cicatrizes
que te relembram dores
que te feriram horrores
e ainda hoje ferem
ei, garotinha negra,
eu já estive no seu lugar
eu conheço esse choro contido
essa voz embargada
que não sabe dizer o que sente
e nem o que se quer dizer
ei, garotinha negra,
eu já estive no seu lugar
e de onde estou agora
te confesso que não foi fácil
atravessar as barreiras
cruzar as fronteiras
para encontrar comigo mesma
ei, garotinha negra,
eu já estive no seu lugar
mas hoje posso te afirmar
que não há dúvidas na sua beleza
não há adjetivos
que expressem a sua grandeza
não há nada que vá te fazer parar
você não vai parar.

(Dentro da casa o vazio, 2024)

Thaíse Santana

Eu te vejo

eu te vejo na doçura que imprime na palavra
como se ela fosse música para os meus ouvidos
eu te vejo no cuidado que reveste o seu toque
como se os seus dedos fossem feitos de espumas
eu te vejo na luz que escapa dos teus olhos
como se nos meus ela achasse abrigo
eu te vejo no fogo que habita o teu corpo
como se buscasse refrigério nas minhas águas
eu te vejo nos atos de menino-homem solitário
como se no meu abraço encontrasse casa.

(Dentro da casa o vazio, 2024)

Thaíse Santana

Guerreira amorosa

antes de me saber sua filha
você já me habitava
na dança que alegra o meu corpo
na beleza que emoldura meu rosto
nas flores que enfeitam minha casa
antes de me saber sua filha
você já me habitava
na doçura cortante
que imprimo na minha letra
nas águas que banham minha Palavra
na verdade e justiça que regem minha cabeça
antes de me saber sua filha
você já me habitava
mas só agora entendo
porque me agrada o espelho
e também a espada.

(Dentro da casa o vazio, 2024)

Sou mais você

sou mais você preto

com suas palavras exatas

com sua lírica abstrata

com suas ideias revolucionárias

sou mais você preto

com sua cabeça sempre erguida

com sua arte compromissada

com sua “mania de ter fé na vida”

sou mais você preto

com esse seu jeito faceiro

com esse porte de homem feito

com seus sonhos de menino

sou mais você preto

com esse teu cabelo crespo

com esses olhos tão negros

com os seus atos de respeito

sou mais você preto

com sua fala aprumada

que diz coisas acertadas

que aplaca os meus medos

sou mais você preto

com mãos firmes e macias

que quando me acariciam

me fazem sentir segura

sou mais você preto

com todo esse chamego

com essa tua pele escura

com teu jeito sem frescura

sou mais você preto

com esse teu corpo fechado

com esse teu ori cuidado

com teu cheiro de alecrim

sou mais você preto

com o coração aberto

quero ter você por perto

quero ter você pra mim.

(Dentro da casa o vazio, 2024)

Alessandra Martins

Brasil (Parte I)


Cidade caótica,
bonita na orla,
tenebrosa por dentro das ruas que
beiram a Linha Vermelha e Amarela.
Não tem fantasia,
não existe sonho.
Sem príncipe, sem fada, sem
Cinderela.
A infância acaba cedo.
A impunidade é silenciada.
Status: preto, jovem, morto!
Quem se importa?
É apenas mais um “negô” da favela.
A mãe chora, mas desta vez
não é com o final da novela.
Perdeu o filho para o tráfico,
mas não terá tempo para acender
vela.
Precisa sair cedo, trabalhar,
cuidar do menino no Humaitá,
onde exerce a função de babá.
Polícia ou bandido?
Asfalto ou favela?
Politicagem barata!
Usa terno, sapato e gravata,
não se importa — apenas mata!

Matar um é homicídio,
matar uma nação é genocídio.
Quem é mais criminoso?
Quem está dentro ou fora da cela?
Distribuição incoerente,
desigual, inconsequente.
Facadas, tiros, socos, gritos.
Quem escapa?
Não tá suave,
não tá tranquilo
nem favorável viver dessa maneira.
Viatura de polícia, segurança — nem
pensar.
Só se encontra na Delfim Moreira,
Visconde de Pirajá.
Cidade maravilhosa é uma tremenda
ilusão.

Corre, corre, tem mais um arrastão.
Se bobear, será você o morto
nessa vida louca,
nesse mundo cão.
Segure o dinheiro,
guarde o iPhone.
No menor, quem manda é o frio,
quem controla é a fome.
Brasil!

(In: Voa, Sankofa, voa)