As tranças

procurando uma explosão impossível.
sua voz, o engano que trancei junto aos meus cabelos
enquanto eu não olhava o espelho.
o couro cabeludo à mostra.
precisei desenhar na minha cabeça
algo que parecesse a estrada até a sua casa.
então a verdade seria um penteado bonito
que eu pudesse exibir na rua pros desconhecidos.
o pente meu cúmplice dizia
não se atreva
mal senti o sol bater
ardi como jamais.
se até ontem nada me escapava
teve aquela festa
onde dancei feito uma mariposa perdida
a alegria nos quadris não passava de um jogo
que acreditei conhecer as cartas.

             (In: Nossos poemas conjuram e gritam, p. 45)

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sereia no copo d’água

leio “changing diapers”
cada verso me detém tua visão bebê nadador
- nadadora? nunca terá um sexo que te definha
o índio geronimo me aparece enquanto agonizo tua visão
                                                              [antes da queda

por que voa, tupã?
pra onde quer ir tão fundo n’água
se meu corpo te prende todo líquido?

voaríamos muito além essa cidade submersa
casinhas com jabuticabeiras, bancos cimentados
galinhas que ciscam a generosidade e nos dão
                                                              [seus filhos-ovos

te dei meus melhores ovários
- o melhor desejo é o desejo, essa vontade e potência 

me foge água, sangre
pedaços por entre as pernas
essa dor mais dilacerante que o parto da tua irmã

nada por entre os meus fundos num rasante até o fundo
                                                                    [da privada

tão longe parece o esgoto e visto daqui em nada parece
                                                                  [uma roseira

meus olhos são seu líquido amniótico
seu mergulho que me dói o corpo torna real
                                                                   [dilaceramento que brota

do coração. rasga o ventre da tua mãe, tupã!
rasga esse corpo ex prenhe que te prende!

“ausência de batimentos cardíacos”
o que faz teu coração que não bate
e me bate, me bate?

ponho as mãos no coração
só posso escutar naufrágio correndo pelos olhos
- escuta! minhas pernas bambas te esperam
te vejo o mergulho, bebê translúcido-encarnado
tem o tamanho da palma da minha mão mais bonita
teus braços e pernas incompletos dão forma
se fecho o tríptico o mundo se me fecha
fecho os olhos
choro tão alto a convulsão
mãe no copo d’água 

afundo a mão no sangue
minha vagina dói tanto
- oxalá pudesse conceber a poema mais feliz de
                                                                  [se dizer boceta

te afundo a mão no sangue
até as mãos a todo sangre

bebê na palma da minha mão mais bonita
te mergulho nessas lágrimas o corpo mais cheio 

não te dou a vida
também me a perco
os peitos se me derramam
ardo, rasgo a noite, atravesso o dia
e você é o pássaro que me foge o corpo-jaula
eu-jaula não me converto pássaro
abro a boca 

tupã. tupã. tupã. 

por que me voa se tenho os pés pegados em terra árida?
por que me voa se a jaula me fecha/
ardo, rasgo a noite, atravesso o dia
e deliro que frutos muito amargos se misturam às minhas
                                                                  [vísceras em maus-augúrios

abro a boca

tupã. tupã. tupã.

metade de mim morre quando homédico me diz aborto
metade de mim morre com tua visão de mergulhaor
                                                                   [ da provada

e voa, voa pássaro coração-de-pedra. nada esse corp’água
nada mais que até o fundo
nada mais que longe das crianças que sonham leites
nada mais que o largo da palavra mãe       
você me deixa. você me deixa. você me deixa.

o delírio me cobre os olhos
estou dormindo?
não temos a casinha, as jabuticabeiras, as cabrinhas 

não te seguro mais
mergulha e voa até o fim
nada mais que até o fundo
desaparece o corpo, eu também sou essa dissolução
a sombra da tua sombra 

a grande mãe da noite vem me visitar
estou dormindo, mãe?
que posso ser agora se não posso te ser a mãe?
a mãe imensa abre a boca da noite
é um copo
eu sou uma mulher
sereia no copo d’água

                             (In: Nossos poemas conjuram e gritam, p. 60-63)

ceciliana  

escorre o óleo do mundo - lima
de rícino, refino

mínima grama ou toda
canteiro, fecundo

a poesia é de quem
precisa, disse o carteiro

lhe ria, além a lama
ternas de exílio e poda

te revisto, o mundo - olha
entre as pernas

(In: Nossos poemas conjuram e gritam , p. 57)

pastoral da ribeira

uma casinha incendiada surge no prédio ao lado
o rio cobre as vigas e pedras e cimento e pó
sob o rio se eriçam casas-lama os homens prontos          
                                                                            [e um emprego

trilhos e pregos e gente balouçam na casinha incendiada
                                                                                      [ao lado]

afunda os pés de brincar co’ua nanã que ri o ferro que
                                                                                  [afunda largo

um afogamento pronto pra uma cidade que nasce com
                                                                    [seus homens fortes

na peneira a colher demora a massa e mofa e demora
                                                                [a massa

o fogão de barro submerso no lugar que nasce

acena um oi para a gente que vem incendiada
arde o fogo e a água a pedra e ferro da gente que vem

olha para  a direita          mais adiante
folhas de palmeira pra palhoça um pouquinho de amianto
entulho e câncer e as cabritinhas tão bonitinhas ó as galinhas
cisca cisca cisca

ôôôôôôôôôôô
camisas numeradas regatas largas e de manguinhas
uma cidade emerge submersa
uma ponte metálica de madeira uma ponte
escaiada caiada com luzinhas para piscar e muda muda
olha o novacor de dez em dez segundos

um conjunto habitacional popular há quase cem quilômetros
da gente que levanta e nasce uma cidade submersa
sete prediozinhos de três andares pra amontoar a gente
saída de uma favela onde se gritar um estádio de futebol

ôôôôôôôôôôô

uma cidade surge submersa no prédio ao lado
é tanta gente é tanta gente e tudo que sente e faz a gente

incendeia, amor

incendeia

           (In: Nossos poemas conjuram e gritam, p. 58-59)

DAS VEZES QUE ME TORNEI BRANCA

 

da primeira vez
não dei por isto ou aquilo
uma pá de cal
tão branquinha
atirada pelas criancinhas
como flecha
cabelo de repolho bozo
Esquisita suja fedida

e a vez de querer muito muito forte
esfregar o tijolo na cara até a carne se saber a sangue
sangue azul sangue branco

cresce cresce cresce

nove aninhos
que peitinhos mais lindinhos
ai ai ai
que bunda tão grande como pode sem celulite
ai ai ai
já pode aprender usar a boca
ai ai ai
que virgindade mais apertada
ai ai ai
que mulatinha tão gostosa
ai ai ai
você é tão inteligente pra sua idade
ai ai ai

pode pode pode
você quer leitinho?
olha que branquinho

cresce cresce cresce

as vielas na periferia
o campinho de futebol
a goela seca

não cotas não
sim samba sim
sim chapinha sim
não raiva não

cresce cresce cresce

oi amiga
não hoje não
oi joana
sim hoje sim

uma luta maior que a outra
uma lata mais vã que a outra
bares caçambas papel picado absorvente

cresce cresce cresce

NOTÍCIA DE JORNAL
hoje na jornada de arte negra
a poeta x
a novíssima literatura negra
pra ser lida nas escolas

SOU NEGRA
SOU NEGRA?
SOU NEGRA!

cresce cresce cresce

os beiços imensos roxos
os bicos dos peitos pretos
o pixaim armado
a vulva roxa
os bisavós escravizados
o avô fugido da servidão
uma avó tão branca

neta de quem?

se me querem por fêmea
NEGRA
se me querem por intelectual
MULHER?
se me querem por profissional
HETEROCISGÊNERA
se me querem por escritora

BRANCA
se me querem
COSPEM OS LÁBIOS LIVRES

cresce cresce cresce

o homenzinho violenta a mulher
digo porque sim ela é mulher
ele diz ninguém estava dentro do quarto
sou negro sou negro você é racista
poetisazinha de versos de merda

e ainda uma índia a voar
paloma negra

PELOS ARES COM SEUS SANGUE PODRE

cresce cresce cresce

da múltipla vez
não dei por mim
estava a gaguejar um verso que me martel
TERESA TERESA TERESA
uma avó esquecida de tão negra
um poema tão macho um poema tão arraigadinho
que qualquer poema só sabe dar bandeira

a filhinha chora
meus beiços meus pelos meus cabelos meus peitinhos minha história
e essa maldita pele tão branca 

a poeta x negra é invisível pra todos os machos
a poeta lésbica branca é alvejada por todos os machos
a poeta gorda trans é batida por todos machos
as mulheres são odiadas por todas as instâncias
ó por todas as feministas

da última vez
disse sim

mulher
mulher negra coberta das poemas mais ternas das poemas mais raivosas das poemas mais poemas porque sim eu quis assim
a poeta negra
A IMENSA POETA NEGRÍSSIMA


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