Meu orgasmo é cura


Quando a explosão
Toma conta
E aquece o estado
Líquido...
Toda dor
Que esse mundo criou
Para me levar
A exaustão de banzo
Evapora...


Meu corpo
Transcende
Como brisa leve
Beleza africana
Consagração
De um espírito livre
Quilombola


De quem goza 
Por rebeldia e pirraça
Pois o meu prazer
Você racista
Não mata

(Estado de Libido ou poesias de prazer e cura, p. 28)

 

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Samba em Primeira Pessoa é…

Olhar para o espelho de mim
Sentir no coração
As memórias de uma batucada
Que ficou lá atrás
E hoje
Trazem ritmo
Para os meus passos
Acalanto para a saudade
Do quintal sincopado

O surdo-coração
Ressoar no corpo rígido
Gingas as amarras
Tradição é ser livre

Cordas vibram
E afinal o tom
Para ecoar alto a voz
Da melodia que sou

Mulher Negra.

(Coleção Sambas Escritos, p. 76)

 

Texto para download.

Quarto de despejo

(excertos)

Carolina Maria de Jesus

13 de Maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.

...Nas prisões os negros eram os bodes expiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com desprezo. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz. 

Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair. ...Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada:

– Viva a mamãe!

A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura a Dona Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim:

– “Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude catar papel. Agradeço, Carolina”.

...Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetaculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.

E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!

****

15 de maio. Tem noite que eles improvisam uma batucada e não deixa ninguém dormir. Os visinhos de alvenaria já tentaram com abaixo assinado retirar os favelados. Mas não conseguiram. Os visinhos das casas de tijolos diz

– Os políticos protegem os favelados.

Quem nos protege é o povo e os Vicentinos. Os políticos só aparecem aqui nas epocas eleitoraes. O senhor Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. Ele era tão agradavel. Tomava nosso café, bebia nas nossas xicaras. Ele nos dirigia as suas frases de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou boas impressões por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas na Câmara dos Deputados não criou um progeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais.

...Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.

...A noite está tepida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido. Começo ouvir uns brados. Saio para a rua. É o Ramiro que quer dar no senhor Binidito. Mal entendido. Caiu uma ripa num fio da luz da casa do Ramiro. Por isso o Ramiro queria bater no senhor Binidito. Porque o Ramiro é forte e o senhor Binidito é fraco.

O Ramiro ficou zangado porque eu fui a favor do senhor Binidito. Tentei consertar os fios. Enquanto eu tentava concertar o fio o Ramiro queria espancar o Binidito que estava alcoolisado e não podia para em pé. Estava inconciente. Eu não posso descrever o efeito do alcool porque não bebo. Já bebi uma vez, em caráter experimental, mas o alcool não me tonteia.

Enquanto eu pretendia concertar a luz o Ramiro dizia:

– Liga a luz, liga a luz sinão eu te quebro a cara.

O fio não dava para ligar a luz. Precisava emendá-lo. Sou leiga na eletricidade. Mandei chamar o senhor Alfredo, que é o atual encarregado da luz. Ele estava nervoso. Olhava o senhor Binidito com despreso. A Juana que é esposa do Binidito deu cinquenta cruzeiros para o senhor Alfredo. Ele pegou o dinheiro. Não sorriu. Mas ficou alegre. Percebi pela sua fisionomia. Enfim o dinheiro dissipou o nervosismo.

16 de maio. Eu amanheci nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas eu não tinha nada para comer.

...Eu não ia comer porque o pão era pouco. Será que é só eu que levo esta vida? O que posso esperar do futuro? Um leito em Campos do Jordão. Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos.

****

17 de maio. Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro País sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava discontente que até cheguei a brigar com meu filho José Carlos sem motivo.

...Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: é assim que fazem esses comerciantes insaciaveis. Ficam esperando os preços subir na ganancia de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados.

Não houve briga. Eu até estou achando isto aqui monotono. Vejo as crianças abrir as latas de linguiça e exclamar satisfeitas:

– Hum! Tá gostosa!

A dona Alice deu-me uma para experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre.

(Quarto de despejo, p. 29-31)

Meu estranho diário

(excerto)

Carolina Maria de Jesus

1 de novembro de 1958

Dêixei o lêito as 5 e 44. E fui carregar agua. Não havia fila. 

Mandei o João comprar 10 de pão e Fiz café. O João e o José Carlos sairam comigo. Fui no Frigorifico Incapre pegar os ossos. Depôis fui na Pedacha. Não ganhei porque já havia acabado. Depôis fui no deposito de ferro vender uns ferros. Ganhei 23. Passei na padaria guine a Dona Madalena deu-me bananas pão docê 15 paes docê. Pedaços de queijo presunto, e salame. Fiquei contente. Achei um saco de fuba no lixo e trouxe para dar ao porco. Eu ja estou tao habituada com as latas de lixo que não sei passar por elas sem ver o que ha dentro. 

Hoje eu não fui catar papel porquê sei que não vou encontrar nada. Tem um velho que circula na minha frente. Hontem eu li aque fabula da rã e a vaca

Tenho a impressão que sou rã. Que queria crescer ate ficar do tamanho da vaca – Eu desêjei varios empregos. Não acêitaram-me por causa da minha linguagem poetica. porisso eu não gosto de conversar com ninguém.

Hoje eu fu pidir esmola.

(Meu estranho diário, p. 33, 38).

Quarto de despejo

(excerto)

Carolina Maria de Jesus

22 de maio. Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou saio correndo sem parar até cair inconsciente. É que hoje amanheceu chovendo. E eu não saí para arranjar dinheiro. Passei o dia escrevendo. Sobrou macarrão, e eu vou esquentar para os meninos. Cozinhei as batatas, eles comeram. Tem uns metais e um pouco de ferro que eu vou vender no seu Manuel. Quando João chegou da escola eu mandei ele vender os ferros. Recebeu 13 cruzeiros. Comprou um copo de água mineral, 2 cruzeiros. Zanguei com ele. Onde já se viu favelado com estas finezas?

...Os meninos come muito pão. Eles gostam de pão mole. Mas quando não tem eles comem pão duro. 

Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.

Oh! São Paulo rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro que são os arranha-céus. Que veste viludo e seda e calça meias de algodão que é a favela.

...O dinheiro não deu para comprar carne, eu fiz macarrão com cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera é a única que reclama e pede mais. E pede:

– Mamãe, vende eu para a Dona Julita, porque lá tem comida gostosa.

Eu sei que existe brasileiros aqui dentro de São Paulo que sofre mais do que eu. Em junho de 1957 eu fiquei doente e percorri as sedes do Serviço Social. Devido eu carregar muito ferro fiquei com dor nos rins. Para não ver os meus filhos passar fome fui pedir auxilio ao propalado Serviço Social. Foi lá que eu vi as lagrimas deslizar dos olhos dos pobres. Como é pungente ver os dramas que ali se desenrola. A ironia com que são tratados os pobres. A unica coisa que eles querem saber são os nomes e os endereços dos pobres.

Fui no Palacio, o Palacio mandou-me para a sede na Av. Brigadeiro Luís Antonio. Avenida Brigadeiro me enviou para o Serviço Social da Santa Casa. Falei com a Dona Maria Aparecida que ouviu-me e respondeu-me tantas coisas e não disse nada. Resolvi ir no Palacio e entrei na fila. Falei com o senhor Alcides. Um homem que não é niponico, mas é amarelo como manteiga deteriorada. Falei com o senhor Alcides:

– Eu vim aqui pedir um auxilio porque estou doente. O senhor mandou-me ir na Avenida Brigadeiro Luís Antonio, eu fui. Avenida Brigadeiro mandou-me ir na Santa Casa. E eu gastei o unico dinheiro que eu tinha com as conduções.

– Prende ela!

Não me deixaram sair. E um soldado pois a baioneta no meu peito. Olhei o soldado nos olhos e percebi que ele estava com dó de mim. Disse-lhe.

– Eu sou pobre, porisso é que vim aqui.

Surgiu o Dr. Osvaldo de Barros, o falso filantropico de São Paulo que está fantasiado de São Vicente de Paula. E disse:

– Chama um carro de preso!

23 de maio. Levantei de manhã triste porque estava chovendo. [...] O barraco está numa desordem horrivel. É que eu não tenho sabão para lavar as louças. Digo louça por hábito. Mas é as latas. Se tivesse sabão eu ia lavar as roupas. Eu não sou desmazelada. Se ando suja é devido a reviravolta da vida de um favelado. Cheguei a conclusão que quem não tem de ir pro céu, não adianta olhar pra cima. É igual a nós que não gostamos da favela, mas somos obrigados a residir na favela.

...Fiz a comida. Achei bonito a gordura frigindo na panela. Que espetáculo deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver nas panelas. Ainda mais quando é arroz e feijão, é um dia de festa para eles.

Antigamente era a macarronada o prato mais caro. Agora é o arroz e feijão que suplanta a macarronada. São os novos ricos. Passou para o lado dos fidalgos. Até vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo. Quem não nos despresou foi o fubá. Mas as crianças não gostam de fubá.

Quando puis a comida o João sorriu. Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia.

...Nas ruas e casas comerciais já se vê as faixas indicando os nomes dos futuros deputados. Alguns nomes já são conhecidos. São reincidentes que já foram preteridos nas urnas. Mas o povo não está interessado nas eleições, que é o cavalo de troia que aparece de quatro em quatro anos.

...O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há várias coisas belas no mundo que não é possível descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas que existe.

A Theresa irmã da Meyri bebeu soda. E sem motivo. Disse que encontrou um bilhete de uma mulher no bolso do seu amado. Perdeu muito sangue. Os médicos diz que se ela sarar ficará imprestável. Tem dois filhos, um de quatro anos e outro de nove meses.

(In: Quarto de despejo, p. 39-42)