Indira

Acordei com um medo danado de não ver mais Washington. Tomei café apressando minha mãe, que não entendeu tanta afobação. Saí de casa com o coração apertado, mas o alívio chegou assim que o vi lá na entrada do Boqueirão, segurando a mão de Dona Fia. Dessa vez, não me importei de ouvi-lo gritar o meu nome, nem de ele segurar minha mão e minha pasta. Quis falar muitas coisas pra ele, porém, não consegui. Caminhamos em silêncio até a escola.

Nessa manhã, não me concentrei. A professora gesticulava muito lá na frente e enchia o quadro de informações. Os meninos jogavam, de vez em quando, bolinhas de papel nas outras meninas, que viravam para trás tentando reconhecer o engraçadinho. Mas eu ficava pensando na possibilidade de o Washington ir mesmo morar com a avó no interior. Nós nos conhecemos há bastante tempo, ele é meu melhor amigo. E se ele fosse mesmo embora, como seriam as idas para a escola?

Washington nem sabe que eu estou aqui pensando nele. Ele está concentrado, a aula é de história (disciplina que adora). Eu também gosto, mas não sei por que estou aqui reparando nas mãos dele, no jeito que ele morde a tampa da caneta (hábito que Dona Fia detesta). Só agora percebo um certo brilho naquela pele muito negra. Os cabelos de Washington são bonitos e crespos, e o pai dele, quando o leva ao barbeiro, pede para Seu Juca fazer um corte diferente, bater a nuca, fazer uns desenhos que homenageiam suas raízes africanas. O Washington adora esses desenhos na nuca; ele diz que marcam sua diferença, e, agora, vejo que ele é mesmo diferente.

Quando cheguei em casa, perguntei a minha mãe:

– O Washington vai mesmo embora?

– Não sei minha filha. Talvez, por quê?

Não respondi.

(In: Indira, p. 15).

Texto para download

Por um feminismo Afro-latino-americano

Lélia Gonzalez

 

Neste ano de 1988, Brasil, o país com a maior população negra das Américas, comemora o centenário da lei que estabeleceu o fim da escravização neste país. As celebrações se estendem por todo território nacional, promovidas por inúmeras instituições de caráter público e privado, que festejam os “cem anos da abolição”.

Porém, para o Movimento Negro, o momento é muito mais de reflexão do que de celebração. Reflexão porque o texto da lei de 13 de maio de 1888 (conhecida como Lei Áurea), simplesmente declarou como abolida a escravização, revogando todas as disposições contrarias e... nada mais. Para nós, mulheres negras e homens negros, nossa luta pela liberdade começou muito antes desse ato de formalidade jurídica e se estende até hoje.

Nosso empenho, portanto, se dá no sentido de que a sociedade brasileira ao refletir sobre a situação do seguimento negro que dela faz parte (daí a importância de ocupar todos os espaços possíveis para que isso suceda) possa voltar-se sobre si mesma e reconhecer nas suas contradições internas as profundas desigualdades raciais que a caracterizam. Neste sentido, as outras sociedades que também compõem essa região, neste continente chamado América Latina, quase não diferem da sociedade brasileira.

E este trabalho, como reflexão de uma das contradições internas do feminismo latino-americano, pretende ser, com suas evidentes limitações, uma modesta contribuição para o seu avanço (afinal, sou feminista). Ao evidenciar a ênfase direcionada à dimensão racial (quando se trata da percepção e do entendimento da situação das mulheres no continente) tentarei mostrar que, no interior do movimento, as negras e as indígenas são as testemunhas vivas dessa exclusão. Por outro lado, baseada nas minhas experiências de mulher negra, tratarei de evidenciar as iniciativas de aproximação, de solidariedade e respeito pelas diferenças por parte de companheiras brancas efetivamente comprometidas com a causa feminina. A essa mulheres-exceção eu as chamo de irmãs.

Quando falo de experiência, quero dizer um processo de aprendizado difícil na busca de minha identidade como mulher negra dentro de uma sociedade que me oprime e me discrimina justamente por isso. Mas uma questão de ordem ético-política prevalece imediatamente. Não posso falar na primeira pessoa do singular de algo dolorosamente comum a milhões de mulheres que vivem na região; refiro-me às ameríndias e amefricanas1, subordinadas a uma latinidade que legitima sua inferioridade.

Feminismo e Racismo

É inegável que o feminismo como teoria e prática vem desempenhando um papel fundamental em nossas lutas e conquistas, e à medida que, ao apresentar novas questões, não somente estimulou a formação de grupos e redes, também desenvolveu a busca de uma nova forma de ser mulher. Ao centralizar suas análises em torno do conceito do capitalismo patriarcal (ou patriarcado capitalista), evidenciou as bases materiais e simbólicas da opressão das mulheres, o que constitui uma contribuição de crucial importância para o encaminhamento das nossas lutas como movimento. Ao demonstrar, por exemplo, o caráter político do mundo privado, desencadeou todo um debate público em que surgiu a tematização de questões totalmente novas – sexualidade, violência, direitos reprodutivos, etc. – que se revelaram articulados às relações tradicionais de dominação/submissão. Ao propor a discussão sobre sexualidade, o feminismo estimulou a conquista de espaços por parte de homossexuais de ambos os sexos, discriminados pela sua orientação sexual2. O extremismo estabelecido pelo feminismo fez irreversível a busca de um modelo alternativo de sociedade. Graças a sua produção teórica e a sua ação como movimento, o mundo não é mais o mesmo.

Mas, apesar das suas contribuições fundamentais para a discussão da discriminação pela orientação sexual, o mesmo não ocorreu diante de outro tipo de discriminação, tão grave como a sofrida pela mulher: a de caráter racial. Aqui, se nos reportarmos ao feminismo norte-americano, a relação foi inversa; ele foi consequência de importante contribuições do movimento negro: “A Luta dos anos 1960 [...] sem a Irmandade Negra, não haveria  irmandade das Mulheres (sisterhood); sem Black Power, não haveria existido poder gay e orgulho gay”.3. A feminista Leslie Cagan afirma: “O fato de que o movimento dos direitos civis tenha quebrado os propósitos sobre a liberdade e a igualdade na América, nos abriu espaço para questionar a realidade da nossa liberdade como mulheres”.

Mas o que geralmente encontramos ao ler os textos e a prática feminista, são referências formais que denotam uma espécie de esquecimento da questão racial. Vamos dar um exemplo de definição do feminismo: ela se baseia na “resistência das mulheres em aceitar papéis, situações sociais, econômicas, políticas, ideológicas e características psicológicas que tenham como fundamento a existência de uma hierarquia entre homens e mulheres, a partir da qual a mulher é discriminada”.4 Bastaria substituir os termos homens e mulheres por brancos e negros (ou índios), respectivamente, para ter uma excelente definição de racismo.

Exatamente porque tanto o racismo como o feminismo partem das diferenças biológicas para estabelecerem-se como ideologias de dominação. Cabe, então, a pergunta: como se explica este “esquecimento” por parte do feminismo? A resposta, na nossa opinião, está no que alguns cientistas sociais caracterizam como racismo por omissão e cujas raízes, dizemos, se encontram em uma visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista.

Vale a pena retomar aqui duas categorias do pensamento lacaniano que ajudam nossa reflexão. Intimamente articuladas, as categorias de infans e de sujeito suposto saber nos levam à questão da alienação. A primeira designa a aquele que não é sujeito do seu próprio discurso, a medida em que é falado pelos outros. O conceito de infans é constituído a partir de uma análise da formação psíquica da criança que, quando falada por adultos na terceira pessoa, é, consequentemente, excluída, ignorada, ausente apesar da sua presença. Esse discurso é então reproduzido e ela fala de si mesma em terceira pessoa (até o momento em que aprende a trocar os pronomes pessoais). Do mesmo modo, nós mulheres e não-brancas, somos convocadas, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza. Ao nos impor um lugar inferior dentro de sua hierarquia (sustentado por nossas condições biológicas de sexo e raça), suprime nossa humanidade justamente porque nos nega o direito de ser sujeitos não só do nosso próprio discurso, senão da nossa própria história. É desnecessário dizer que, com todas essas características, estamos nos referindo ao sistema patriarcal-racista. Consequentemente, o feminismo coerente consigo mesmo não pode enfatizar a dimensão racial. Se assim fosse, seria contraditório aceitar e reproduzir a infantilização desse sistema; e isso é alienação.

A categoria de sujeito suposto saber se refere à identificações imaginárias com determinadas figuras, às quais é atribuído um conhecimento que elas não possuem (mãe, pai, psicanalista, professor, etc.). E aqui nos reportamos à análise de um Frantz Fanon e de um Alberto Memmi, que descrevem a psicologia do colonizado frente ao colonizador. Em nossa opinião, a categoria de sujeito suposto saber enriquece ainda mais a compreensão dos mecanismos psíquicos inconscientes que são explicados na superioridade que o colonizado atribui ao colonizador. Nesse sentido, o eurocentrismo e seu efeito neocolonialista  mencionados acima, também são formas alienadas de uma teoria e de uma prática que são percebidas como libertadoras.

Por tudo isso, o feminismo latino-americano perde muito da sua força ao abstrair um dado da realidade da maior importância: o caráter multirracial e pluricultural das sociedades dessa região. Lidar, por exemplo, com a divisão sexual do trabalho sem articulá-la com a correspondente em nível racial, é cair em uma espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizante e branco. Falar de opressão da mulher latino-americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não ser brancas. Concordamos plenamente com Jenny Bourne, quando afirma: “Eu vejo o antirracismo como algo que não está fora do Movimento de Mulheres senão como algo intrínseco aos melhores princípios feministas”.

Mas esse olhar que não vê a dimensão racial, essa análise e essa prática que a “esquecem”, não são características que se fazem evidentes apenas no feminismo latino-americano. Como veremos em seguida, a questão racial na região tem sido ocultada no interior das suas sociedades hierárquicas.

A questão racial na América Latina

Cabe aqui um mínimo de reflexão histórica para poder ter uma ideia deste processo na região. Principalmente nos países de colonização ibérica.

Em primeiro lugar, não se pode esquecer que a formação histórica de Espanha e Portugal se fez a partir da luta de muitos séculos contra os mouros, que invadiram a Península Ibérica no ano de 711. Além disso, a guerra entre mouros e cristãos (ainda lembrada em nossas festas populares) não teve na dimensão religiosa a sua única força propulsora. Constantemente silenciada, a dimensão racial desempenhou um importante papel ideológico nas lutas da Reconquista. De fato, os mouros invasores eram predominantemente negros. Além disso, as duas últimas dinastias do seu império – a dos almorávidas e a dos Almóadas – o provinham de África Ocidental.5 Com base no exposto, queremos dizer que os espanhóis e os portugueses adquiriram uma sólida experiência em relação à maneira de articular as relações raciais.

Em segundo lugar, as sociedades ibéricas foram estruturadas de maneira altamente hierárquica, com muitas camadas sociais diferentes e complementares. A força da hierarquia era tal que se explicitava até nas formas nominais de tratamento, transformadas em lei pelo rei de Portugal e de Espanha em 1597. Desnecessário dizer que, neste tipo de estrutura, onde tudo e todos têm um lugar determinado, não há espaço para a igualdade, principalmente para grupos étnicos como os mouros e os judeus, sujeitos a um violento controle social e político.6

Herdeiras históricas das ideologias de classificação social (racial e sexual), bem como das técnicas legais e administrativas das metrópoles ibéricas, as sociedades latino-americanas não podiam deixar de se caracterizarem como hierárquicas. Racialmente estratificadas, apresentam um tipo de contínuo de cor que se manifesta num verdadeiro arco-íris classificatório (no Brasil, por exemplo, existem mais de cem denominações para designar a cor das pessoas). Neste contexto, a segregação de mestiços, indígenas e negros se torna desnecessária, porque as hierarquias garantem a superioridade dos brancos como grupo dominante.

Desse modo, a afirmação de que todos são iguais perante a lei assume um caráter nitidamente formalista em nossas sociedades. O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento, tão bem analisada por cientistas brasileiros. Transmitida pelos meios de comunicação de massa e pelos aparatos ideológicos tradicionais, reproduz e perpetua a crença de que as classificações e valores da cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca prova a sua eficácia e os efeitos da violenta desintegração e fragmentação da identidade étnica produzida por ele; o desejo de se tornar branco (“limpar o sangue” como se diz no Brasil), é internalizado com a consequente negação da própria raça, da própria cultura.

Não são poucos os países latino-americanos que, desde a sua independência, aboliram o uso de indicadores raciais nos seus censos e em outros documentos. Alguns deles reabilitaram o indígena como símbolo místico da resistência contra a agressão colonial e neocolonial, apesar de, ao mesmo tempo, manterem a subordinação da população indígena. Em relação aos negros, são abundantes os estudos sobre a sua condição durante o regime escravista. Mas historiadores e sociólogos silenciam sua situação desde a abolição da escravização até o presente, estabelecendo uma prática que torna invisível este segmento social. O argumento utilizado por alguns cientistas sociais é que a ausência da variável racial nas suas análises se deve ao fato de que os negros foram absorvidos pela população em condições de relativa igualdade com outros grupos raciais.7

Essa postura tem muito mais a ver com estudos de língua espanhola, uma vez que o Brasil se coloca quase como exceção dentro desse quadro; sua literatura científica sobre o negro na sociedade atual é bastante significativa.

Pelo exposto, não é difícil concluir a existência de grandes obstáculos para o estudo e encaminhamento das relações raciais na América Latina, com base em suas configurações regionais e variações internas, em comparação com outras sociedades multirraciais, fora do continente. Na verdade, esse silêncio ruidoso sobre as contradições raciais se fundamenta, nos tempos modernos, num dos mitos mais eficazes de dominação ideológica: o da democracia racial.

Na sequência da suposta igualdade de todos perante a lei, ele afirma a existência de uma grande harmonia racial... desde que estejam sob o escudo do grupo branco dominante, o que revela sua articulação com a ideologia do branqueamento. Em nossa opinião, quem melhor sintetizou esse tipo de dominação racial foi um humorista brasileiro ao afirmar: “no Brasil não existe racismo porque o negro conhece o seu lugar”. (Millor Fernandes). Vale a pena notar que mesmo as esquerdas absorveram a tese da “democracia racial”, na medida em que suas análises sobre nossa realidade social nunca conseguiram vislumbrar qualquer coisa mais além das contradições de classe.

Metodologicamente mecanicistas (por eurocêntricas), elas acabaram se tornando cúmplices de uma dominação que pretendiam combater. No Brasil, este tipo de perspectiva começou a sofrer uma reformulação com o retorno dos exilados que haviam combatido a ditadura militar no início dos anos 1980. Isso porque muitos deles (considerados brancos no Brasil) foram objeto de discriminação racial no exterior.

Apesar disso, em um país do continente encontramos a grande e única exceção no que diz respeito a uma ação concreta no sentido de abolir as desigualdades raciais, étnicas e culturais. Trata-se de um país geograficamente pequeno, mas gigantesco na busca do encontro consigo mesmo: a Nicarágua. Em setembro de 1987, a Assembleia Nacional aprovou e promulgou o Estatuto de Autonomia das Regiões da Costa Atlântica da Nicarágua. Nelas há uma população de trezentos mil habitantes, divididos em seis grupos étnicos caracterizados por diferenças linguísticas: 182 mil mestiços, 75 mil misquitos, 26 mil creoles (negros), 9 mil sumus, 1750 garífunas (negros) e 850 ramas. Composto de seis títulos e cinco artigos, o Estatuto de Autonomia implica em um novo reordenamento político, econômico, social e cultural que responde às reivindicações de participação das comunidades costeiras. Além de garantir a eleição das autoridades locais e regionais, o Estatuto assegura a participação da comunidade na definição dos projetos que beneficiem a região e reconhece o direito de propriedade sobre as terras comuns. Por outro lado, não só garante a igualdade absoluta dos grupos étnicos mas também reconhece seus direitos religiosos e linguísticos, repudiando todos os tipos de discriminação. Um dos seus grandes efeitos foi o repatriamento de 19 mil indígenas que deixaram o país. Coroação de um longo processo em que se acumularam erros e acertos, o Estatuto de Autonomia é uma das grandes conquistas de um povo que luta “para construir uma nação multiétnica, pluricultural e multilíngue, baseada na democracia, no pluralismo, no anti-imperialismo e na eliminação da exploração social e opressão em todas as suas formas”.

É importante insistir que dentro da estrutura das profundas desigualdades raciais existentes no continente, a desigualdade sexual está inscrita e muito bem articulada. Trata-se de uma dupla discriminação de mulheres não-brancas na região: as amefricanas e as ameríndias. O caráter duplo da sua condição biológica – racial e/ou sexual – as torna as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente. Precisamente porque este sistema transforma diferenças em desigualdades, a discriminação que sofrem assume um caráter triplo, dada sua posição de classe: as mulheres ameríndias e amefricanas são, na maioria, parte do proletariado afro-latino-americano.

Por um feminismo afro-latino-americano

É Virginia Vargas V. quem nos diz:

A presença das mulheres no cenário social tem sido um fato incontestável nos últimos anos, buscando novas soluções frente aos problemas  impostos por uma ordem social, política e econômica que historicamente as marginalizou. Nessa presença, a crise econômica, política, social e cultural [...] tem sido um elemento desencadeador que acelera processos que vinham se formando. De fato, se por um lado a crise acentuou a evidência do esgotamento de um modelo de desenvolvimento do capitalismo dependente, por outro expôs como seus efeitos são recebidos diferentemente em amplos setores sociais, de acordo com as contradições específicas nas quais se encontram imersos, incentivando assim o surgimento de novos campos de conflito e novos atores sociais. Assim, no terreno das relações sociais, o efeito da crise foi nos dar uma visão muito mais complexa e heterogênea da dinâmica social, econômica e política. É nessa complexidade que se localizam o surgimento e o reconhecimento de novos movimentos sociais entre eles o de mulheres, que avançaram desde as suas contradições específicas a um profundo questionamento da lógica estrutural da sociedade e potencialmente contêm uma visão alternativa da sociedade.8

Ao caracterizar distintas modalidades de participação, ela aponta para três aspectos dentro do movimento, diferenciados por uma expressão: popular, político-partidária e feminista. E é justamente na popular que vamos encontrar maior participação de mulheres afro-americanas e ameríndias que, preocupadas com o problema da sobrevivência familiar, procuram se organizar coletivamente; por outro lado, sua presença sobretudo no mercado informal de trabalho as remete a novas demandas. Dada sua posição social, que se articula com a discriminação racial e sexual, são elas que sofrem mais brutalmente os efeitos da crise. Se se pensa no tipo de modelo econômico adotado e no tipo de modernização que dele decorre – conservador e excludente, devido aos seus efeitos de concentração de renda e de benefícios sociais –, não é difícil concluir a situação dessas mulheres, como no caso  brasileiro, em tempos de crise.9

Nessa perspectiva, não podemos ignorar o importante papel dos movimentos étnicos como movimentos sociais. Por um lado, o movimento indígena,  cada vez mais mais forte na América do Sul (Bolívia, Brasil, Peru, Colômbia, Equador) e Central (Guatemala, Panamá e Nicarágua, como já vimos), não apenas propõe novas discussões sobre as estruturas sociais tradicionais, mas busca a reconstrução da sua identidade ameríndia e o resgate da sua própria história. Por outro lado o movimento negro – e vamos falar do caso brasileiro esclarecendo a articulação entre as categorias de raça, classe, sexo e poder – desmascara as estruturas de dominação de uma sociedade e de um estado que consideram "natural" o fato de que quatro quintos da forca de trabalho negra sejam mantidos presos em uma espécie de cinturão socioeconômico que lhes “oferece e oportunidade” de trabalho manual e não qualificado.  Desnecessário dizer que, para o mesmo trabalho exercido por brancos, os rendimentos são sempre menores para trabalhadores negros de qualquer categoria profissional (especialmente aquelas que exigem qualificações mais altas). Enquanto isso, a apropriação lucrativa da produção cultural afro-brasileira (transfigurada em brasileira, nacional, etc.) também é vista como “natural”.

Cabe aqui um dado importante de nossa realidade histórica: para nós, amefricanas do Brasil e de outros países da região – assim como para as ameríndias –, a conscientização da opressão ocorre, antes de tudo, por causa da raça. Exploração de classe e a discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes a um grupo étnico subordinado. A experiência histórica da escravização negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e mulheres, fossem crianças, adultos ou idosos. E foi dentro da comunidade escravizada que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular pela libertação. A mesma reflexão é válida para as comunidades indígenas. Por isso, nossa presença nos movimentos étnicos é bastante visível; lá nós amefricanas e ameríndias temos participação ativa e em muitos casos somos protagonistas.

Mas é exatamente essa participação que nos leva à consciência da discriminação sexual. Nossos parceiros do movimento reproduzem as práticas sexistas do patriarcado dominante e tentam nos excluir da esfera de decisão do movimento. E é justamente por esse motivo que buscamos o movimento de mulheres, a teoria e a prática feministas, acreditando aí encontrar ali uma solidariedade tão cara à questão racial: a irmandade. Contudo, o que realmente encontramos são as práticas de exclusão e dominação racistas que tratamos na primeira sessão deste trabalho. Nos somos invisíveis nos três aspectos do movimento de mulheres; mesmo naquele em que a nossa presença é maior, somos descoloridas ou desracializadas e colocadas na categoria popular (os poucos textos que incluem a dimensão racial só confirmam a regra geral). Um exemplo ilustrativo: duas famílias pobres – uma negra e outra branca – cuja renda mensal é de 180 dólares (que corresponde a três salários mínimos atualmente no Brasil); a desigualdade se faz evidente pelo fato de que a taxa de atividade da família negra é maior que a da branca.10 Isso explica a nossa escassa presença nas outras dois aspectos.

Pelo exposto, não é difícil compreender que nossa alternativa, em termos de movimento de mulheres, foi nos organizarmos como grupos étnicos. E, na medida em que lutamos em duas frentes, estamos contribuindo para o avanço tanto dos movimentos étnicos e do movimento de mulheres (vice-versa, evidentemente). No Brasil, já em 1975, com a ocasião do encontro histórico das latinas que marcaria o início do movimento de mulheres no Rio de Janeiro, as mulheres amefricanas se fizeram presentes e distribuíram um manifesto que evidenciava a exploração econômico-racial sexual e o consequente tratamento “degradante, sujo e sem respeito” de que somos objeto. Semovimento negro desse país: Linha de Ação Feminina do Instituto de Investigações Afro-peruanas e Grupo de Mulheres do Movimento Negro Francisco Congo. Denunciando sua situação de discriminadas entre os discriminados, elas afirmam: “fomos moldadas como uma imagem perfeita em tudo o que se refere a atividades domésticas, artísticas e servis; fomos consideradas 'especialistas em sexo'. É dessa maneira que se foi alimentando o preconceito de que a mulher negra apenas atende a essas necessidades".  

Vale ressaltar que os doze anos de existência dos dois documentos nada significam frente a quase cinco séculos de exploração que ambos denunciam. Além disso, observa-se que a situação das amefricanas nos dois países é praticamente a mesma,sob todos os pontos de vista. Um ditado "popular" brasileiro sintetiza essa situação ao afirmar: “branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar”. Atribuir às mulheres amefricanas (pardas e mulatas) tais papéis é abolir sua humanidade, e seus corpos são vistos como corpos animalizados: de certa forma, são os “burros de carga” do sexo (dos quais as mulatas brasileiras são um modelo). Desse modo, se constata como a superexploração socioeconômica se  alia à super exploração sexual das mulheres amefricanas.

Nos dois grupos de mulheres africanas do Peru se confirma uma prática que também é comum a nós: é a partir do movimento negro que nos organizamos, e não do movimento de mulheres. No caso da dissolução de qualquer grupo, a tendência é continuar a militância dentro do movimento negro, onde, apesar dos pesares, a nossa rebelião e espírito crítico ocorrem num clima de maior familiaridade histórica e cultural. Já no movimento de mulheres, essas nossas manifestações muitas vezes foram caracterizadas como antifeministas e até como “racistas às avessas” (o que pressupõe um “racismo às direitas”, ou seja, legítimo); daí nossos desencontros e ressentimentos. De qualquer forma, os grupos de mulheres amefricanas de mulheres se organizaram em todo o país, especialmente nos anos 1980. Também Realizamos nossas reuniões regionais, e neste ano teremos o Primeiro Encontro Nacional de Mulheres Negras. Enquanto isso nossas irmãs ameríndias também estão organizadas na União das Nações Indígenas, a expressão máxima do movimento indígena no nosso país.

Neste processo, é importante ressaltar que as relações dentro do movimento de mulheres não são apenas compostas de discordâncias e ressentimentos com as latinas. Já nos anos 1970, algumas s se aproximaram de nós e nos ajudaram e aprenderam conosco em uma troca eficaz de experiências, consistente no seu igualitarismo. O entendimento e a solidariedade se ampliaram na década de 1980, graças às próprias modificações ideológicas e de conduta dentro do movimento de mulheres: um novo feminismo foi delineado nos nossos horizontes, aumentando nossas esperanças pela expansão de suas perspectivas. A criação de novas redes como o Taller de Mulheres das Américas (que prioriza a luta contra o racismo e o patriarcalismo numa perspectiva anti-imperialista) e a Dawn/Mudar, são exemplos de uma nova maneira de olhar feminista, brilhante e iluminada por ser inclusiva, por estar aberta à participação de mulheres étnica e culturalmente diferentes. E Nairóbi foi o marco desta mudança, deste aprofundamento, deste encontro do feminismo consigo mesmo.

Prova disso foram as experiências muito fortes que tivemos o privilégio de compartilhar. A primeira em novembro de 1987, no II Encontro del Taller de Mujeres de las Américas na cidade do Panamá, onde as análises e discussões acabaram por derrubar barreiras – no reconhecimento do racismo pelas feministas – e preconceitos antifeministas por parte das ameríndias e amefricanas dos setores populares. A segunda foi no mês seguinte, em La Paz, no Encuentro Regional de Dawn/Mudar, com participação das mulheres mais representativas do feminismo latino-americano, tanto por sua produção teórica como por sua prática efetiva. E uma só presença amefricana discutiu ao longo de todo o encontro sobre as contradições já apontadas neste trabalho. Foi realmente uma experiência extraordinária para mim, diante dos testemunhos francos e honestos por parte das latinas ali presentes, frente à questão racial. Saí de lá revigorada, confiante de que uma nova era estava se abrindo para todas nós, mulheres da região. Mais do que nunca, meu feminismo foi fortalecido. E o título deste trabalho foi inspirado nessa experiência. É por isso que eu o dedico a Neuma, Leo, Carmen, Virginia, Irma (teu cartão de natal me fez chorar), Tais, Margarita, Socorro, Magdalena, Stella, Rocío, Gloria e as ameríndias Lucila e Marta.

Muita sorte, mulheres!

(In: Caderno de Formação Política do Círculo Palmarino, n. 1, 2011. Disponível em   https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%20um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf.          Acesso em 03/03/2021. Texto conferido e revisado de acordo com a versão impressa, 2020).

 Notas

1. Lélia Gonzalez, "Racismo e sexismo na cultura brasileira".
2. Virgínia Vargas, Feminismo e movimiento social de mujeres.
3. David Edgar, "Reagen's Bidden Agenda".
4. Judith Astelarra, El Femininsmo como perspectiva y como prática política.
5. Wayne B. Chandler, "The Moor: Light of Europe's Dark Age".
6. Roberto da Matta, Relativizando: uma introdução à antropologia.
7. George R. Andrews, The Afro-Argentines of Buenos Aires: 1800-1900.
8.  Virginia Vargas, op. cit.
9. Lucia E. Oliveira, Rosa M. Porcaro e Teresa C. N. Araújo, "Efeitos da crise no mercado de trabalho urbano e a reprodução das desigualdades raciais".
10. Ibid.

 

 

Leda Martins: escrituras e evocações

por Guilherme Diniz

“Toda história é sempre
sua invenção
qualquer memória é sempre
um hiato no vazio.”
(Solstício, em Os dias anônimos)

 

Leda Maria Martins se manifesta pelas vias da palavra, em dicção detalhadamente vocalizada; do verbo modelado como expressão poética do pensamento; e de suas escrituras, irradiadoras de memórias e saberes. Pois, da teoria à poesia, do Reinado à academia, e do texto à performance, Leda Martins prefere se apresentar, sobretudo, como poeta; pensadora e inventora de linguagens.

Nascida no Rio de Janeiro, Leda sempre manteve uma indisfarçável afeição pelos estudos, presente desde a tenra idade, nutrindo precocemente suas inclinações poéticas. Com apenas quatro anos, aprendera a ler, e aos sete a paixão pelas letras já se plasmava em pequenos poemas, ensaiados pela curiosa menina:

Eu sempre gostei de estudar, acho que essa é a minha vocação. Desde criança o meu passatempo predileto eram livros, revistas em quadrinhos, lia o que caia na mão e tinha uma facilidade muito grande com escritura. (MARTINS, 2009, p. 73)

A despeito das agudas dificuldades socioeconômicas para prosseguir nos estudos, ao concluir seu segundo grau (ensino médio), Leda, apoiada pelo estímulo terno de sua mãe, resolve prestar vestibular para o curso de Letras, na UFMG, se desdobrando entre trabalho e estudo, de modo a se manter na academia.

O esmero acadêmico rendeu-lhe uma bolsa de estudos para realizar o mestrado em Artes, na Indiana University, de 1978 a 1981. A vivência nos Estados Unidos, como nos relata Leda Martins, acarretou um agudo amadurecimento intelectual e, principalmente, um radical processo de conscientização sociorracial, ao se deparar, no estrangeiro, com a fortíssima discriminação enfrentada pela população negra norte-americana. Embora sempre refletisse aqui no Brasil sobre as agruras experimentadas pelos negros, vivenciar o racismo nos Estados Unidos (país que mantinha constitucionalmente um regime de apartheid, pouco antes de sua viagem) intensificou visceralmente sua consciência.

Em seu mestrado, Leda Martins analisa minunciosamente a modernidade dramatúrgica de Qorpo-Santo, em seus aspectos constitutivos, formais e temáticos, investigando as numerosas qualidades textuais que fazem do autor sulino um vanguardista nos oitocentos. O resultado de sua pesquisa se condensa na obra O Moderno Teatro de Qorpo Santo, publicado em 1991. Em termos gerais, Leda examina, na dramaturgia Qorpo-santense, a reincidente fragmentação da estrutura narrativa, a desagregação da personagem – elaborada não mais nos moldes tradicionais de cariz realista-naturalista –, bem como os mecanismos e recursos empregados pelo autor para dar a ver a própria realidade artificial do teatro, de modo metalinguístico. No teatro de Qorpo-Santo a arte é a sua própria referência, desdobrando em si mesma, e nesse movimento a realidade que constrói nasce e morre em seu próprio universo arbitrário e ficcional. Ademais, a moral, as ideologias e condutas éticas, das personagens, são encenadas numa conjuntura ilusória atravessada por elementos derrisórios, ambíguos e irônicos, conforme Martins (1991).

Leda ratifica o parecer de outros estudiosos que associam a dramaturgia de Qorpo-Santo à estética do Absurdo, porém assevera que em muitos aspectos o dramaturgo brasileiro fora ainda mais radical nas suas criações, afirmando:

O espaço e o tempo sofrem também uma nova manipulação por parte do autor. Ambos perdem em suas peças qualquer dimensão lógica ou contato com a realidade objetiva. Sua coerência é sempre interna, transcendendo qualquer lei física ou linear de medida. A relação dos personagens com o tempo e espaço das peças só se torna possível no teatro que tem a teatralidade como um dos seus elementos fundamentais, através da qual a fantasia rompe todas as barreiras do impossível. (MARTINS, 1991, p. 66).

Nos Estados Unidos, Leda conhece uma obra que, como divisor de águas, marcará profundamente os rumos futuros de suas investigações acadêmicas, a saber, o livro Drama para negros e Prólogos para brancos, coletânea, organizada por Abdias Nascimento, de textos dramáticos escritos para o Teatro Experimental do Negro – TEN. É ela que nos conta: “Era a primeira vez que eu me defrontava com peças em que o negro era o tema central, era o protagonista. Isso era inusitado para mim, porque conhecia razoavelmente bem o teatro brasileiro.” (MARTINS, 2009, p. 75).

De volta ao Brasil, Leda é convidada a implantar o Curso de Letras na Universidade Federal de Ouro Preto, onde lecionará Literatura Brasileira e Teoria da Literatura, ao passo que assumirá igualmente cargos administrativos, especialmente, no âmbito artístico-cultural daquela instituição.

Leda Martins ingressa no doutoramento em 1987, na UFMG, materializando academicamente algumas de suas inquirições ao ler ávida e curiosamente, ainda no exterior, a trajetória cênico-política do Teatro Experimental do Negro. Leda investigará agora, de modo analiticamente comparativo, a formação do Teatro Negro (Black Drama) nos Estados Unidos e o percurso do TEN, no Brasil, traçando paralelos históricos, ao sublinhar as similitudes e as diferenças estético-discursivas nos dois contextos artísticos. A culminação de suas reflexões é a antológica obra: A Cena em Sombras, publicado em 1995. Tal livro ainda relevante nas discussões teatrais contemporâneas portou, aquando do seu lançamento, algumas novidades para a academia brasileira.

Em primeiro lugar, Leda Martins volta-se, com percuciência, para o arcabouço cultural negro-brasileiro, reconhecendo ali noções e perspectivas fulcrais para embasar a sua volição crítica do Teatro Negro estudado. A autora parte dos saberes e cosmovisões afro-diaspóricas para estruturar as suas meditações e leituras, recusando óticas etnocêntricas para apreciar tais teatralidades, e evocando uma outra gama de epistemologias, ainda hoje subalternizadas, em sua fundamentação teórico-crítica. A ressemantização do termo encruzilhada e das figurações mito-poéticas de Exu, são encarados no texto de Leda como princípios de cognição que traduzem, recriam e desvelam movimentos culturais, bases filosóficas e distintos modos operacionais de interpretação da realidade, construídos pelas simbologias africanas e afro-americanas.

Em segundo lugar, A Cena em Sombras inaugura uma narrativa historiográfica e crítica, a partir de outras perspectivas, sobre a experiência do Teatro Experimental do Negro. Embora Flora Sussekind e Miriam Garcia Mendes, para citarmos dois exemplos, tenham se versado sobre a iniciativa de Abdias Nascimento, será a partir da obra de Leda Martins que outros sentidos e conceituações sobre o Teatro Negro se concretizarão. Pois doravante este teatro será avistado na qualidade de linguagem, pensamento e formalização estética que promove rupturas com sistemas narrativos, imagéticos e criativos hegemonicamente eurocentrados. Assim, Leda apresenta seu objeto de análise:

Na construção de sua enunciação, nas metáforas cênicas arquitetadas e nos seus enunciados, o Teatro Negro, em suas mais ricas realizações, corrompe a figuração e a representação estereotípicas, deslocando-as pelo acréscimo de outras elaborações e fabulações possíveis. Esse teatro realça, assim, a diferença, como um traço distintivo que, nos vazios da semelhança, faz aflorar o eu e o outro, quebrando, ainda, a repetição dos papéis e dos discursos que sombreia a plural magia do palco. (MARTINS, 1995, p. 29).

Em sua perscrutação, Leda amplia as significações estético-culturais de tais teatralidades negras, salientando seu caráter polissêmico, multifocal, como configuração artística que reatualiza o manancial de memórias (coletivas e pessoais), as expressões rituais e as imagéticas sócio-históricas, cujas ressonâncias decompõem as representações emblemáticas também da brancura. (MARTINS, 1995). Ainda hoje, décadas após sua elaboração inicial, A Cena em Sombras é, por assim dizer, paradigmático no pensamento cênico afro-brasileiro; pedra angular de um vasto enfeixe de reflexões, leituras e análises a respeito do teatro negro, cujas bases teóricas estão, mesmo indiretamente, nos princípios críticos desenvolvidos por Leda Martins.

A autora nos narra que sempre encontra alguém, em suas andanças pelo Brasil, que tem o supracitado livro como referência, entre grupos teatrais e artistas em geral.

Ao ver-se doutora, em um país estruturalmente racista, Leda, segundo o seu relato, compreende, de modo diametral, a sistemática discriminação à qual a população negra está sujeita, nas diversas instâncias sociais de suas vidas. A conjuntura acadêmica, sobretudo em seus quadros docentes, reproduz as dinâmicas excludentes de inúmeros grupos historicamente marginalizados, solidificando aquilo que José Jorge de Carvalho (2006) denomina de “confinamento racial” no mundo acadêmico, isto é, a predominância, por vezes quase absoluta, de professores universitários brancos nas muitas instituições brasileiras. Vejamos as palavras de Leda Martins:

Em 91, eu era uma das raras professoras negras doutoras neste País. Quantas negras doutoras temos hoje? Eu sou um pouco responsável por isso. Eu sou uma das raras professoras negras dessa universidade [UFMG], como eu fui da Federal de Ouro Preto. (MARTINS, 2009, p. 77)            

Na qualidade de chefe de departamento, na presidência de colegiados, membra do Conselho de Ensino e Pesquisa, integrante do Conselho Universitário, Coordenadora de Pós-Graduação em Letras (UFMG), membra de organizações nacionais e internacionais, de caráter acadêmico-político, pesquisadora do CNPQ, entre outras funções, Leda ressalta que a presença de sujeitos negros era fortemente escassa. (MARTINS, 2009)

Leda sempre ressalta a importância dos afetos familiares e comunitários em toda a sua trajetória. A ternura para com sua mãe, Alzira, a fez compreender amplas e profundas noções de espiritualidade, majestade e resiliência, segundo suas memórias nos revelam. A sua família, como nos conta, se constitui profusamente diversa, cultural e linguisticamente plural, em contextos conviviais matizados pela multiplicidade étnica. “Família pequena envolta em comunidades afetivas grandes”. (MARTINS, 2009, p. 80). Leda destaca duas determinantes instâncias culturais nas quais esteve imersa; fontes vivas de ancestral sapiência: o samba, adorado pela mãe, e o Reinado, na Irmandade Nossa Senhora do Rosário, em Jatobá, Minas Gerais. Atentemo-nos para as suas sensíveis recordações:

No congado, era a princesa Conga, agia como uma princesa, então nada podia me dobrar. Essa nobreza de caráter e de postura acho que me veio dessas duas comunidades. E a nobreza dos reis e rainhas do congado em Minas Gerais? Minha mãe se tornou rainha em 92. Foi rainha até 2005. Quando faleceu, a comunidade me chamou para assumir o cargo. Atualmente sou rainha de Nossa Senhora das Mercês. (MARTINS, 2009, p. 80)

O universo cosmológico, simbólico e sagrado dos Reinados Negros, em especial as ritualidades da Irmandade N.S. do Rosário, de intrincada riqueza litúrgica e mítica, são apresentados por Leda Martins, em Afrografias da Memória, publicado em 1997. Nesta obra, Leda conjuga, singularmente, o rigor investigativo de caráter arquivístico e documental; a fina sagacidade na coleta e análise de informações e memórias, por meio de entrevistas e depoimentos orais; bem como a maestria acadêmica na manipulação dos conceitos e termos teóricos a fim de elaborar uma densa narrativa de sujeitos, eventos e fábulas que traçam os contornos históricos das antiquíssimas linhagens congadeiras em Minas Gerais. Quiçá a mais marcante qualidade escritural deste livro resida em sua ímpar justaposição de agudeza reflexivo-conceitual e vivacidade poética na linguagem, de modo que as terminologias adotadas são postas como um elegante versejar, em que a beleza, na expressão do pensamento, intensifica a sua relevância teorética.

encruzilhada, já introduzida em A Cena em Sombras, é por excelência, o grande operador conceitual, articulado por Leda, para compreender: os deslocamentos simbólicos matizados pelos Reinados, em que suas linguagens performáticas produzem sentidos móveis e dinâmicos; os processos trans e interculturais que subjazem as relações semióticas e discursivas entre as cosmovisões bantos/africanas e católicas/europeias; as especificidades históricas da formação espetacular, filosófica e social dos Reinados, para os quais a noção de sincretismo é insuficiente na apreensão de seus elementos culturais moventes e duplos.

Afrografias da Memória perspectiva os festejos dos Congados e dos Reinados Negros, como reterritorializações da filosofia bantu na diáspora, em que a vitalidade comunal africana, ao fissurar e imprimir seus valores simbólico-epistêmicos no espaço americano, desenvolveu estratégias culturais de enfrentamento ao sistema escravocrata dominante, assim como de continuação e renovação dos ritos matriciais no continente africano. Leda detalha cuidadosamente a complexa rede semântica elaborada pelos ritos, coreografias, cânticos, gestuais, línguas e elementos sagrados agenciados pelas festividades congadeiras cujas performances refazem, há séculos, as fábulas místicas, bases da comunidade.

Os Congados expressam muito do saber banto, que concebe o indivíduo como expressão de um cruzamento triádico: os ancestrais fundadores, as divindades e “outras existências sensíveis”, o grupo social e a série cultural. (MARTINS, 1997, p. 37).

As interrelações entre as performances rituais, a memória e as vocalidades vivificadas pelas corporeidades, nos Congados, são lidas por Leda em seu fundamental conceito de oralitura:

Aos atos de fala e de performance dos congadeiros denominei oralitura, matizando neste termo a singular inscrição do registro oral que, como littera, letra, grafa o sujeito no território narratário e enunciativo de uma nação, imprimindo, ainda, no neologismo, seu valor de litura, rasura da linguagem, alteração significante, constituinte da diferença e da alteridade dos sujeitos, da cultura e das suas representações simbólicas. (MARTINS, 1997, p. 21).

Nos meandros conceituais da oralitura, a oralidade, consubstancial a todos os âmbitos socioculturais dos Reinados Negros, ressignifica a memória, em movimento pendular, entre o recordar e o esquecer. As palavras cantadas, narradas, corporificadas presentificam os ancestrais, o indivíduo, sua coletividade e todo um espectro mítico e místico de saberes e sentidos. É pela dicção verbo-corporal que a comunidade se atualiza, encarnando as fábulas e histórias que as integra.

Leda relata que Afrografias da Memória é o seu livro mais amado, cujas reflexões e narrações despertam afetos em quem o lê. A obra, conforme nos conta, atinge os mais variegados perfis, faixas etárias e áreas do conhecimento, fora e dentro dos circuitos acadêmicos.

Nos anos 1998 e 1999, Leda Martins preside a comissão de Criação do Curso de Graduação em Artes Cênicas da UFMG e preside também a comissão Implantação do Curso de Graduação em Artes Cênicas (hoje denominado simplesmente Teatro), sendo a coordenadora do curso até agosto de 1999; fato este que inscreve, uma vez mais, a relevância inconteste de Leda no panorama artístico do país. Ela também será a primeira mulher a integrar a equipe de curadoria do Festival de Arte Negra, de Belo Horizonte.

Ao longo das décadas, Leda, em seu lastro profissional, acumula poemas e ensaios publicados no exterior, especialmente, Estados Unidos, França, Inglaterra e em países de língua espanhola. Em 95, para mencionar um significativo exemplo, Leda coedita o número 18 da prestigiada revista norte-americana Callaloo – dedicada singularmente às letras, às culturas e artes africanas e afro-diaspóricas – nesta edição, o periódico debruçou-se sobre os autores afro-brasileiros, tais como Cuti, Conceição Evaristo, Geni Guimarães, Miriam Alves, Oliveira Silveira, entre outros. A atividade como escritora e acadêmica se estende, paralelamente, aos trabalhos artísticos realizados no Brasil e nos Estados Unidos, sobretudo na qualidade de diretora, dramaturga e produtora teatral. Ademais, dois pós-doutorados em Nova York (1999-2000 e em 2009-2010), onde Leda foi professora visitante na New York University, aprofundaram os seus estudos na área da performance e promoveram importantes parcerias acadêmicas; uma das quais com a pesquisadora Diana Taylor.

Leda, no início dos anos 2000, apresenta uma de suas mais destacadas reflexões filosóficas, a partir das culturas e saberes africanos e afro-diaspóricos; concepção que ecoará ainda mais o seu nome nacional e internacionalmente: a noção de tempo espiralar:

(...) o tempo espiralar é uma percepção cósmica e filosófica que entrelaça, no mesmo circuito de significância, a ancestralidade e a morte. Nela o passado habita o presente e o futuro, o que faz com que os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estejam em processo de uma perene transformação e, concomitantemente, corelacionados. (MARTINS, 2000, p. 79).

Esta compreensão curvilínea do tempo está fundada, segundo Leda Martins, nas performances, nas práticas comunitárias e nos fundamentos cognitivos dos variegados grupos étnicos africanos que aqui recriaram seus laços de pertencimento telúrico, em especial, nas Américas. Principalmente nas culturas fincadas na oralidade e na cosmovisão ancestral, a exemplo dos Congados, as práticas performativas celebram o corpo como portal/lócus da memória:

(...) o gesto e a voz da ancestralidade encorpam o acontecimento presentificado, prefigurando o devir, numa concepção genealógica curvilínea, articulada pela performance. Nesta, o movimento coreográfico ocupa o espaço em círculos desdobrados, figurando a noção ex-cêntrica do tempo.  (MARTINS, 2002, p. 86).

Em 2013, a Universidade da Califórnia, em Berkeley, organizara um vultoso simpósio internacional a partir do conceito de tempo-espiralar, pensado por artistas das mais diversas áreas, na produção contemporânea, atestando uma vez mais a amplitude teórica e a grande receptividade do conceito cunhado por Leda Martins. Ela nos diz que, embora inicialmente pensado para as artes cênicas, o termo alude a um modo diverso e possível do/no/sobre o tempo, pela via das manifestações culturais não ocidentais.

No ano de 2017, a escritora e pensadora é homenageada com a criação do Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras, em agradecimento afetuoso a uma vasta produção artística e intelectual que, investigando especialmente as formas e manifestações das culturas negras, desenvolveu marcos teóricos hoje imprescindíveis para valorizarmos e refletirmos sobre as histórias e as memórias das africanias diaspóricas.

Atualmente, Leda continua a refletir sobre as corporeidades nas dinâmicas estéticas do Teatro Contemporâneo, em palestras, colóquios e pesquisas. Uma de suas investigações correntes refere-se a uma definição conceitual que vem matizando para pensar as potencialidades, visualidades e agências do corpo em ação performática: o corpo tela. Neste ano, suas meditações acerca da noção de tempo-espiralar possivelmente será traduzida em alemão, como ela nos revelou em entrevista.

 

A POESIA

A produção poética afigura-se contumaz na carreira de Leda Martins, como um desejo e uma perquirição sobre as potências estéticas e demiúrgicas da palavra. Dois foram os livros de poesia publicados pela autora: Cantigas de Amares, em 1983; e Os Dias Anônimos, em 1999.

Em Cantigas de Amares, o amor e suas pungentes facetas, os afetos e os desejos íntimos povoam uma poeticidade deslizante, por onde atravessa pulsões de ordem sensual, como expressas em Cantiga 1:

Ai mia senhor, a lassidão me vence
E quero tuas mãos no meu torso nu
E tenho de teu tato a carência
Cia
E tenho de teus dedos a vontade solta.

(MARTINS, 1983)

Cantigas de Amares nasce também de um estudo investigativo rigoroso sobre as Cantigas medievais de amor e amigo, com as quais os poemas de Leda estabelecerão interlocuções textuais.

Já em Reflexos, há um jogo sensorial intrincado entre as corporeidades que figuram nos versos e a ânsia do prazer, marcados por uma espera agridoce daquele/a que pode vir a se tornar o/a amante. Os devaneios do corpo, transbordante de vontades e quereres desembocam, por vezes, num estado de espera.

O poema Interlúnio, por sua vez, apresenta outra perspectiva, não mais a espera, mas a recusa que se plasma em uma autoafirmação, num reconhecimento de si como alpha, ômega e zênite de suas próprias experiências:

No dia sem acaso
em que eu for minha
então me contemplarás
com tudo que tenho
de meu 


Meu gesto terá a exatidão
do caule
que se curva nele mesmo
e minhas gotas
o gosto do vão
que se fecha
sem trevas.

(MARTINS, 1983, p. 8)

Em diversas outras composições poéticas, as paisagens se mesclam a delicados estados psicofísicos, às afetações; os espaços são sentidos, eivados de sentimentos. Há uma melancolia no movimento pendular entre a espera e a recusa, a aceitação e a negação. O movimento da separação é versificado em Jornada, no qual o eu-poético, cindido por incompletudes e vazios, despede-se, por entre os seus vãos emocionais.

Em Rimas é o próprio poema que se concentra no seu próprio poetar, a linguagem tecida contempla o seu processo mesmo de feitio, numa ótica discursivamente metalinguística. O esforço do eu-lírico em esculpir o poema, em dar-lhe a forma justa é intensificado nas estrofes, dramatizando o artíficie das letras diante de seu ofício, ao refletir acerca das complexidades rítmicas, vernaculares, emocionais e técnicas da sua criação:

Pelejo a palavra
latente
frutos germe
sedes 

Abraço
uma rima
antiga
palavra desenho
emboscadas 

Passeio
uma extensão
perdida
poema manhã
espaços

(MARTINS, 1983, p. 28)

 

Tanto em Cantigas de Amares, quanto em Os Dias Anônimos pululam diversas métricas e rítmicas na composição dos poemas, assim como o próprio modo de ocupação das estrofes na página, numa visualidade tipográfica que permite a presença densa dos vazios, da porosidade. Entre as ilhas de estrofes, a imensidão da página. As lacunas são sinédoques também dos afastamentos, dos espaços, solitudes e das próprias vacâncias dos moventes eu-líricos.

Os dias anônimos perfilam uma pluralidade de temáticas que abarcam os dilemas da memória, entre a rememoração e o oblívio; as pungências afetivas e amorosas; a sensualidade e os volteios desejosos do corpo; a experiência-pensamento do/sobre o tempo, em sua dimensão transformadora; as dinâmicas relacionais entre os amados ardentes que se acariciam. O título deste livro é inspirado, segundo Leda, na obra de Hesíodo – Os Trabalhos e os Dias.

Destacam-se os poemas Solstício, Mnemosine e Reminiscências por traçarem uma aguda interrelação, cada qual a seu modo entre os movimentos e as geografias da memória, e o vagar do tempo transformador. O eu-lírico em cada poema tem consciência das muitas ausências que habitam nos intervalos de suas memórias, das dores que a solidão lhe causa e dos resíduos pretéritos que só podem ser captados de modo fragmentado pela escritura. Observemos uma passagem de Mnemosine:

A memória da minha ausência
lembra os anciãos nas veredas das noites
luarando cantigas serenas
fazendo sonhar as meninas quase moças.
Eu não ouvi os últimos acordes
e não presenciei os suspiros
da infanta já feita senhora.

(MARTINS, 1999, p. 51)

Afirma-se uma forte vontade de amar, um afeto que se deseja pleno e não parcial, uma emoção que quer penetrar no âmago das coisas e não nas superficialidades frágeis; almeja, como condição para amar, a intensidade inteiriça, não a parcimônia repartida, como se vê em Sentimento:

Se te amo
amo
como quem ama
no granito
o volume,
no poema
a textura,
na alavanca
o impulso,
na melodia
o sussurro (...)

(MARTINS, 1999, p. 43)

Em uma saborosa conversa, Leda nos afirmou que o seu olhar sobre as coisas, sua relação com os seres e sua interpretação do mundo continuam sendo guiados e matizados pela poesia. A docência, em sua perspectiva, é também um exercício poético constante, pois a poesia não se imobiliza na escrita, ela continuamente afeta quem a leu e quem a escreveu. Em seus processos criativos, ela nos conta que seus textos se formam primeiramente como sons. A sonoridade, o ritmo e a musicalidade são os motores iniciais de sua construção poética.

Em síntese, a poesia é, para Leda Martins , uma evocação.

À guisa de conclusão e para nossa felicidade, Leda nos segredou que em breve um novo livro de poesias pode despontar no horizonte de sua escrita, cujo título temos o prazer em anunciar: Horas Sutis.

 

Referências

CARVALHO, José Jorge. O confinamento racial no mundo acadêmico brasileiro. In: Revista da USP, São Paulo, n. 68, p. 88-103, dez/jan/fev. 2005-2006.

MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995.

_______. Afrografias da memória. São Paulo: Perspectiva, Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.

_______. Cantigas de Amares. Belo Horizonte. Ed. do autor, 1983.

_______. Os dias anônimos. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 1999.

_______. Oralitura da memória. In: FONSECA, M. N. S. (org.). Brasil afrobrasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 61-86.

_______. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (Orgs.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Departamento de Letras Românicas, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras, UFMG, 2002, p. 69-92.

_______. Profa. Leda Maria Martins. In: PRAXEDES, Vanda; et. al. (orgs.). Memórias e percursos de professores negros e negras na UFMG. Belo Horizonte: Autêntica Editora, Coleção Cultura Negra e Identidades. 2009.

Prefácio a Cadernos Negros 5

Lélia Gonzalez

O esforço extraordinário, efetuado pelo grupo de poetas e escritores negros, para publicarem os Cadernos Negros, remete-nos a um certo tipo de reflexão. Estamos falando da questão cultural. Comecemos por uma definição de cultura, a fim de que possamos desenvolver esta exposição da maneira mais objetiva possível: cultura é o conjunto de manifestações simbólicas através das quais os sujeitos sociais expressam suas relações com a natureza e entre si. A primeira consequência que a gente tira dessa definição é a de que não se pode falar da cultura, de maneira abstrata, mas de culturas diversas, antagônicas ou não, coexistindo ou não numa mesma sociedade. Por outro lado, a gente sabe que, em sociedades como a nossa, sempre existem os explorados que sustentam uma classe dominante. Por ai já podemos tirar uma outra diferenciação que está implícita na definição apresentada: aquela entre cultura dominante e cultura dominada. Em consequência, fica explicitada a relação entre classe e cultura dominantes, de um lado, e cultura dominada e conjunto dos explorados, de outro.

No caso da formação sócio cultural brasileira não podemos deixar de considerar o tripé que lhe deu origem e que, portanto, é o seu suporte. Estamos falando da contribuição ameríndia, da africana e da europeia. Como indígenas e negros foram escravizados e explorados pelos europeus, suas manifestações culturais têm sido tiradas de cena, recalcadas pela classe dominante de origem europeia (mas bastante mestiçada, do ponto de vista racial), que as classifica como "folclore" e as coloca em museus de curiosidade, de coisas exóticas. Neste sentido, vale recordar aqui a declaração de uma bailarina cubana negra, que sintetizou toda essa questão com a seguinte frase: "Nós somos o folclore e eles são a cultura".

No nosso caso especifico, poderíamos dizer que se a coisa ficasse apenas por aí, nesse barato de folclorização, a gente até poderia ser um pouquinho condescendente. Mas acontece que todas as nossas manifestações "folclóricas" sempre foram acompanhadas da presença 'vigilante da polícia dos "culturais" (o Código Penal de 1890 - dois anos após a "libertação" dos escravos - apontava como criminosos, em seu capítulo 13, justamente os "beneficiários" da "Lei Aurea": "vadios" e capoeiras). Nossas instituições "folclóricas", até há pouco tempo, para funcionarem legalmente, tinham que "pedir passagem as delegacias de polícia dos "culturais": estamos falando dos terreiros, blocos, escolas de samba, etc. (hoje a coisa mudou, num certo sentido, porque o sistema capitalista vigente se apropria da produção cultural negra, transformando-a em mercadoria geradora de lucro; mas os produtores culturais continuam violentamente reprimidos). Fica então a pergunta: por que tanta repressão?

Uma das respostas, a meu ver, está justamente no caráter colonizado da classe dominante. Sua preocupação no sentido de afirmar sua "europeidade" está explicitada na ideologia do branqueamento. Apesar de racialmente misturada, ou justamente por isso mesmo, ela faz questão de ser mais realista que o rei. Que se atente, por exemplo, para a publicidade veiculada nas revistas e na tevé, tem-se a impressão de que o Brasil é um país escandinavo, tal a quantidade de modelos (adultos e/ou infantis) louros de olhos azuis. Vale recordar aqui o depoimento de uma mulher "de sociedade" a respeito de uma amiga sua, europeia, quando de sua vinda ao Brasil. Estavam num baile no Jockey Clube do. Rio, quando a europeia deixou escapar a seguinte observação: "É fantástico como existem negros e mestiços por aqui”, Referia-se às pessoas presentes no baile. Imagine-se o espanto dos que estavam por perto. Afinal, todos se acreditavam brancos. Por ai se explica todo um esforço no sentido de ocultar o fato de que se tem “um pé na senzala”. E como fazê-lo? Mediante todo um modo de ser europeizado que se perpetua na exaltação da ocidentalidade, de sua história, de seus valores.

Como o sentimento de inferioridade é muito forte, sente-se vergonha da indigenidade e, sobretudo, da africanidade que também estão aí, a constituir o pano de fundo de nossa formação sócio cultural. Consequentemente, ignora-se tudo sobre essas duas vertentes. E o melhor meio para fazê-lo consiste na elaboração de mitos como o do “brasileiro cordial” e o “da democracia racial”, que acobertam a violência (real e simbólica) com que os sujeitos e os valores representativos de senzala e da selva são tratados. Paternalismo e autoritarismo se entrecruzam em diferentes níveis e formas, como expressões típicas da repressão/recalcamento da cultura dominada.

Todavia, como a relação entre cultura dominante e cultura dominada não é estática, do mesmo modo que aquela entre a sala e a cozinha/ senzala também não o é, temos os atos falhos, as "bobeadas”, os tropeços que fazem emergir o recalcado com toda a sua força de verdade. Ora, isto remete à necessidade do que alguém já chamou de "mais-repressão". Afinal, não se pode ficar numa de cometer "gaffes" a toda hora, pois não? Não se pode permitir que o negro, o crioulo que se tem dentro de şi fique por ai fazendo as suas “negrices”. Questão de se ser civilizado, ora. Contenção da voz, do gesto, do corpo, caracterizam a pessoa civilizada.

Ocorre que todo essa contenção explode om violência racial quando o negro concreto (preto ou pardo, me perdoe o IBGE) aparece diante das pessoas "civilizadas". Sua presença é como um testemunho constante a reafirmar que elas não são tão "civilizadas", tão ocidentais, tão europeias, tão "brancas" quanto querem acreditar. Por isso mesmo, e concretamente, também ele tem que ser tirado de cena![i]

Com efeito, o que se extrai de tudo isto é que contenção significa, na verdade, repressão; tanto no sentido psicológico quanto social e cultural. Por isso mesmo, em outro texto[ii], afirmamos que o racismo, em nosso país, é o sintoma da neurose cultural brasileira. Neurose esta que se traduz na negação do caráter pluri-racial e pluri-cultural de nossa formação social e na imposição de uma educação unidirecionada (europocêntrica ou ocidentalizante) que violenta e desrespeita a alteridade. Acontece que pensar uma sociedade de forma democrática implica, fundamentalmente, pensá-la a partir de sua diversidade. Por ai se vê que a decantada "cordialidade" brasileira, assim como a tão exaltada "democracia racial", não passam de mitos elaborados pela ideologia dominante para melhor ocultar a sua violência...

Pelo exposto, percebe-se que, para além das análises sociológicas que têm servido de suporte teórico para as denúncias do Movimento Negro, há que se levar em conta a questão cultural com todas as suas implicações. Afinal, para nós, não bastam as soluções quantitativas para que a questão racial fique resolvida em nosso pais, não basta, por exemplo, que, nas revistas ou na tevé, tenhamos um número maior de modelos negros, proporcional à percentagem correspondente a população negra do pais (o mesmo ocorrendo para todas as outras categorias profissionais). Nesse sentido, os Estados Unidos são muito mais uma "democracia racial" do que o Brasil. Com isso, não estamos descartando problemas como o do desemprego, o da discriminação racial no trabalho, o da menor renda do trabalhador negro etc. De maneira nenhuma. Estamos querendo dizer apenas que, se não se leva em conta a questão da violência cultural, a ideologia do branqueamento será amplamente vitoriosa; e, o que é pior, sob a sua forma mais sutil, que é a da plena ocidentalização. Vale notar que não é por acaso que os movimentos mais progressistas, negros ou não, jamais conseguiram amplas bases populares (a Frente Negra Brasileira, apesar de seus equívocos políticos, fica aqui como exceção que só confirma a regra). Joaquim Nabuco já disse que a África civilizou o Brasil porque lhe deu um povo...

E a voz desse povo taí, na fala de Tietra, Cunha, Maciel, Esmeralda, Mesquita, Kibuko, Regina Helena, Minka, José Alberto, Miriam, Márcio, Cuti. Tai, nesse esforço conjunto de jovens poetas que, enfrentando muitas dificuldades materiais, enfrentam sobretudo o silencio ressentido da cultura dominante. Afinal, a voz do poeta é a fala do sujeito; com suas metáforas, ela diz muito além do que a consciência (dominante) se esforça por afirmar e fazer crer, justamente porque seu compromisso essencial é com a verdade. Senão, vejamos, e para encerrar, o que nos diz um dos nossos poetas, presente nestes Cadernos Negros: "Somos aqueles que foram obrigados a comer espinhos e são obrigados a vomitar flores porque a digestão não se realiza" (Cuti). É isso aí.

Rio de Janeiro, 10/06/82

(In: Cadernos Negros 5. São Paulo: Edição dos Autores, 1982, p. 3-6).


Notas:

[i] Por isso mesmo, tais pessoas consideram que seu lugar “natural” seja nas favelas, cortiços, alagados, invasões bairros periféricos, etc. assim como nas prisões e nos hospícios. Acham "normal'' o genocídio (físico e cultural) de que a população negra é objeto. Desnecessário dizer que “tais pessoas” constituem a classe dominante e sua ideologia de dominação que se espraia pelo conjunto da sociedade. Vale notar que é por aí que se dá o “branqueamento” de muitos negros.

[ii] "Racismo e sexismo na cultura brasileira". In: Psicanálise e Política. Edição da Clínica Social de Psicanálise Anna Kattrin Kemper. Rio, março de 1981.  

 

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