Seu Marabô

– Mas você não vê como ele flutua? É incrível. É fasci­nante. É encantador!

– Não, não vejo nada. Só sinto que ele roda, gira, gira, e não tenho controle.

– Ah, é uma pena que você não veja. Ele é diferente, anda de lado, dançando. E gira de lado também, torto. E tira o chapéu, cumprimenta as pessoas e sorri de lado.

– E vocês não têm medo?

– Medo? Nada, de que jeito? Ele é duro, não alivia, põe a batata quente na mão da gente e você que se vire, que resol­va seus pobrema. Mas é humorado, engraçado, filosófico. Usa metáforas que todo mundo entende. Outro dia recomendou a uma moça que derretesse em um tacho de estanho o orgu­lho que lhe obstruía o peito, os olhos e a respiração. À outra falou um negócio sobre a cavalaria que ela trazia dentro do peito. Disse que cavalo cansado não ganha guerra. Precisa parar, descansar, beber água e dormir.

Disse que se o cavalo está cansado, na hora em que o cavaleiro mais precisa dele, o bicho resfolega e não responde. "Já pensou que vexame, per­der a guerra porque o cavalo tá cansado?" A mim, disse que eu era dele, que carregava o povo dele. Por isso, não deveria passar no meio de encruzilhada, sempre nas laterais, pois, "pra entrar na casa dos outros não tem que pedir licença?" Então. Era assim também para passar pela casa do povo da rua. Olha lá, olha lá! Lá vem ele.

(Cada Tridente em seu lugar, p. 21).

 

 

Construção

Primeiro era chão batido e ele não sabia como era feito. Sua lembrança da casa em obras começava do vermelhão, uma massa de vermelho intenso, à base de anilina, aplicada ao chão da cozinha. Crosta fina de cimento, areia, água e cor. O pai executava o serviço, a manutenção que cabia às crianças era feita com cera vermelha. Mãos e joelhos só não ficavam igualmente coloridos, porque eram pretos. Adquiriam uma cor cinzenta, como couro velho, curtido e sujo. Mas as unhas envermelhavam, as cutículas roseavam, e que trabalhão para limpar. Logo sábado, dia de baile. As irmãs odiavam a massa colorida e ao pai, por extensão.

Nesse mesmo estágio da obra, que se estenderia por toda a vida, aplicava-se o amarelão em dois outros cômodos, a sala e o quarto. De novo, cimento, areia, água e cor, dessa vez amarela. Dois apenas, ainda bem. Única vantagem da casa pequena. O mesmo ritual da pasta vermelha repetia-se com a pasta amarela na construção do piso. A manutenção novamente cabia às crianças, feita com a cera amarela, pior para limpar dos dedos, pois impregnava a pele e os cantos das unhas. Não raro, as irmãs, sem tempo hábil para cuidar delas, deparavam com um cantinho de cera à noite, em horas impróprias.

Houve um dia que elas estavam de risinhos na privada e ele colou o ouvido na porta para também participar do segredo. A alegria terminou quando o acontecido chegou à parte da cera, nessa hora a irmã­narradora embraveceu. Parece que o namorado foi fazer alguma coisa, que ele não entendeu muito bem, com o dedo dela e, enquanto fazia, reclamou de um gosto esquisito. Era a cera amarela. Danada, escapou da faxina feita nas mãos. A irmã virou uma arara.

Quando a situação familiar melhorou, trocaram o vermelhão da cozinha por uma cerâmica vermelha, espécie de taco mais largo, talvez menos comprido, só que não era de madeira, era a diferença. Ele nunca entendeu porque o chão da cozinha da própria casa e das outras casas da vila era vermelho. Parecia regra a cumprir, ou moda a seguir, dava no mesmo.

No último estágio trocaram a cerâmica por azulejos de estampas horrorosas, as mais baratinhas, mas não havia dúvida de que aquele era o melhor material para limpar. Água, sabão e esfregação resolviam.

Na sala e no quarto o pai assentou tacos de madeira, substituindo o amarelão. A atividade lhe dava especial prazer. Contava orgulhoso que aos nove anos, quando primeiro assinaram sua carteira de trabalho, fora como assentador de tacos, na firma do Seu Pacífico. Por aí o filho constatava a modernidade de certos conceitos, trabalho infantil, por exemplo, na época do pai não existia. No começo ele se lembrava quanto o pai ganhava por semana, mas com o passar dos anos e a mudança frequente do nome da moeda, passou a se confundir, depois esqueceu. E agora o pai nem está mais vivo para ele perguntar.

Assentados os tacos, iniciava-se outra tarefa inglória para as crianças: passar palha de aço no chão para amansá-los. Passar é eufemismo, a situação exigia esfrega com todas as forças dos músculos e atenção dos olhos para raspar uniformemente. O pai ensinou como devia ser realizado o trabalho, dos cantos para o meio, assim o malfeito pela preguiça não teria vez. Não entenderam? A lógica era de que no começo, mais descansadas, as crianças deveriam se dedicar à parte mais escondida, as laterais, ocupadas pelos móveis. A mais visível, o centro dos cômodos, ficaria para o final, porque, mesmo picadas pela mosca da preguiça, a visibilidade do espaço as obrigaria a fazer o serviço bem-feito.

Mas surge algo inusitado e as irmãs e ele até sentem saudade do amarelão. É que o amansamento dos tacos com a palha de aço produzia uma poeira infernal, um poeirão como a batizaram. Aquilo os fazia tossir, produzia coriza e engrossava as mãos. Dinheiro pra creme hidratante não se via naquela casa e mesmo pra passar óleo de cozinha ou banha de porco nas mãos era escondido da mãe. Podia desinterar no final do mês.

Mas o pior ainda estava por vir, eram os efeitos do poeirão no cabelo das irmãs, alisado por chapinha. Chapinha é coisa de hoje, a memória é reavivada pela imagem macabra do ferro quente. A mãe passava no cabelo delas uma coisa chamada "unto", mistura de tutano de boi com banha de porco, malcheiroso que só. Separava as mechas e untava com aquilo. Esquentava o pente de ferro no bocal do fogão, pegava pelo cabo de madeira e depois alisava as mechas untadas. Aquilo fazia chiiiiiiii, como pastel frito na gordura quente. Às vezes ao chiiii: se sobrepunha um grito, queimadura acidental, mau humor subsequente, pois, dependendo da gravidade da marca deixada pelo ferro de alisar, havia cancelamento automático do baile daquele sábado. Cabelo alisado por ferro quente não pode ser lavado, você sabe, e a mistura do unto e do poeirão na cabeça das meninas, além do petetê que fazia, era bomba de ressentimento e humilhação carregada no corpo.

Do chão para as paredes, mais uma etapa da construção. O reboco cascudo feito pelo pai denotava falta de tempo para passar a desempenadeira. As paredes nunca eram lisinhas como nas casas mais aquinhoadas. Mas no ato de pintá-las, as crianças eram premiadas, podiam escolher a cor do quarto no vastíssimo leque de três opções: verde-pálido, azul-esquisito e rosa. Tudo bem clarinho, porque uma caixinha de pó era diluída em um tanque de água e se passava uma única mão de tinta na parede. Contudo, era divertido, podiam apenas admirar um adulto trabalhando, sem qualquer obrigação infantil.

Das paredes para a laje, um salto nas alturas e na qualidade da participação das crianças. Dia de bater laje era dia de festa. Começava no dia anterior, quando a mãe ia ao supermercado comprar as carnes para a feijoada e deixava tudo imerso em tempero, pra pegar gosto. Catávamos quilos e quilos de feijão e arroz, descascávamos alho, picávamos cebola, cebolinha e salsa dentro das bacias feitas de lata de goiabada. Mentira, as irmãs é que faziam esse trabalho, tarefa de mulher pequena. Nós, os meninos, só rondávamos o trabalho delas.

A gente nem conhecia a palavra reciclagem, mas era isso o que o pai fazia. Ele desmanchava a costura das latinhas de goiabada – não era cascão, era marca inferior, rala e cheia de açúcar, cascão só no natal, abria elas em cima de uma pedra de mármore, batia, batia, com martelo e machucador de alho, transformava numa placa lisa, depois emendava com solda e estava pronta mais uma bacia para usar na cozinha. Secava ao sol e depois ficava um dia de molho na água com vinagre, para tirar o gosto de solda.

No dia anterior ao enchimento da laje, o pai providenciava a cerveja e uns refrigerantes no supermercado, tudo marca de fundo de quintal, para fazer economia. No raciocínio dele a criançada queria mesmo era o bigode de espuma do refrigerante e o tchiiii do gás. Estava certo no diagnóstico, mas errado na receita, porque os refrigerantes baratinhos praticamente não tinham gás, nem faziam espuma. Por fim, ele buscava cachaça encomendada no seu Zé Ataulfo, representante extraoficial de um "grande alambique", que ninguém nunca soube o nome. A localização da fábrica todo mundo sabia, a cachaça vinha do alambique da chácara do genro dele, a poucos quilômetros dali. Mas não tinha reclamação porque o produto era barato e ainda não tinha mandado ninguém para o hospital.

O pai levava aquelas compras no carrinho do supermercado, todo orgulhoso e eu, menino, fascinado pelo pai provedor, acompanhava as compras e o transporte. Depois de despejá-las em casa para a mãe ajeitar na geladeira e do pai dizer bem alto o preço de cada coisa, eu devolvia o carrinho vazio.

O dia de bater a laje, propriamente, começava de madrugada. A homarada ia chegando, alguns acompanhados das esposas, talvez uma ou outra noiva, namorada, doida para mostrar serviço e ser acolhida no clã. A filharada também vinha e os pequenos podiam brincar. Aos adolescentes, garotos e garotas, eram destinadas algumas tarefas, atribuídas a cada sexo. Basicamente, mulheres de todas as idades na cozinha e homens e homenzinhos nas várias tarefas de preparação da laje: carregar areia, brita, cimento e água para a massa; prepará-la; encher as vasilhas, carrinhos de mão, latas de vinte litros ou latinhas de cinco, de acordo com o vigor físico ou a necessidade de exibicionismo do cabra. Transportá-los em andaimes de madeira inseguros, mas ninguém caía. Transportar também as vigas de ferro, cimento, os tijolos, tudo aos gritos, que o grito era demonstração exigida de força e macheza. E dá-lhe piadinha com a virilidade alheia, questionada nas mínimas atitudes do sujeito: na careta para erguer peso, nos queixumes sobre a dureza do trabalho, nas paradas para descansar fora dos momentos coletivos de descanso, até no deslocamento da área de serviço dos homens até a cozinha, terreno sagrado do mulherio, ou nas reiteradas escapadelas ao sanitário. Em qualquer dessas situações, o ser do sexo masculino era logo colocado no rol dos de "sexo duvidoso".

Homem que era macho tinha de rir das piadas machistas, contar vantagens de conquistador, com um certo cuidado para localizar as puladelas de cerca atuais no passado, na vida de solteiro, de garanhão bem-sucedido, afinal, da cozinha, as patroas a tudo prestavam atenção. E se descuido houvesse nas narrativas de Indiana Jones do amor, podiam receber uma descompostura na frente dos amigos – humilhação terrível – e, no caso das patroas mais drásticas, podia haver greve de sexo em casa, castigo desesperador.

Bater laje era mesmo um ritual de iniciação masculina, ali as mulheres eram coadjuvantes, mas se vingavam no território da cozinha, onde também falavam de sexo. Diferentemente dos homens que contam vantagem sobre as mulheres da rua e santificam a patroa, a mulherada conta vantagens sobre seus homens. Falavam de metragens, práticas e técnicas, presentes na relação com o marido, sempre com o cuidado de colocar as virgens ou pretensamente virgens pra correr, porque aquilo era assunto de mulher casada.

A mulheradinha se fingia de besta, mas observava certos silêncios. Sabe lá se quando solteiro, o marido daquela prima não teria dado umas voltinhas com a irmã daquele cunhado e agora todo mundo junto naquela cozinha, não estaria falando de assuntos bem familiares. Oxalá fosse mesmo na vida de solteiro, mas que tinha coisa que cheirava a angu fresquinho (com caroço), isso tinha.

Tudo muito divertido e de grande aprendizado. Bater laje era uma escola, na qual se aprendia de tudo. A laje bem batida, depois do alicerce bem-feito, era condição essencial para os andares futuros que subiriam aos céus. Crescimento vertical da propriedade privada, multiplicação de tijolos e tetos do patrimônio familiar. O pai dizia que até joão-de-barro faz casa de dois andares, é passarinho humilde e com ele a gente deve aprender.

(Negrafias: literatura e identidade, p.32-36).

 

 

Melô da contradição

O menino negro estava muito triste e contava ao outro que apresentou seguidos atestados médicos à empresa para ser demitido. Assim, pretendia pagar a dívida do primeiro semestre na faculdade e trancar a matrícula, para retomar Deus sabe quando.

Mas isso é problema de todo jovem pobre que estuda em faculdade particular, não precisa ser negro para passar por isso. Tá certo, mas ocorre que ele trabalha como repositor de mercadorias em uma monumental rede de drogarias da cidade e sente-se humilhado porque a regra é que os repositores ascendam ao posto de vendedor (se forem bons funcionários e ele o era) num período máximo de oito meses. Ele já completou quinze e todos os colegas (brancos) que en­traram junto com ele já são vendedores.

Ingênuo, como todo garoto sonhador de 23 anos, ele pensou que seria promovido (recompensado) pela aprovação no vestibular de uma boa universidade e por fazer um curso ligado à sua área profissional. Que nada, o gerente foi insen­sível e ainda disse que logo, logo, ele desistiria dessa idéia de curso superior, "coisa de burguês".

Ele chorou e deu socos no travesseiro pensando que o salário de vendedor, acrescido das comissões lhe permitiria pagar pelo menos cinco das sete mensalidades do semestre, e as duas restantes, a escola negociaria.

Fez outra investida, dessa vez para tentar diminuir o can­saço e os gastos com transporte. Pediu transferência para uma unidade da drogaria mais próxima da faculdade, onde nin­guém quer trabalhar, principalmente quem goza do status de trabalhar numa loja do centro. Recebeu outro não. Aí, não lhe restou outro caminho senão pirraçar o gerente para ser despedido. Não podia se demitir porque perderia o seguro desemprego e aí não teria mesmo como quitar a dívida que o atormentava.

Ainda bem que as baladas do final de semana se aproxi­mam e com elas o aconchego das moças brancas que o acham um neguinho bonitinho, gostosinho, de tirar o chapéu. E lhe dão a ilusão de ser menos negro e discriminado, por figurar como um pretinho básico do guarda-roupas.

(Cada Tridente em seu lugar, p. 59-60).

 

 

O cobrador de ônibus e o deus-vaca

"Esse aí tá com o reino do céu garantido", comenta o cobrador do ônibus, assim que o rapaz, cujas mãos acumulam a função de mãos e pés, termina sua cantoria e o pedido de apoio para exercitar sua arte. Olho a situação e penso que talvez se trate de mais uma vítima da poliomielite. O cobra­dor espia o céu, fixa-se em mim que estava a seu lado e co­menta: "Sujeito de sorte, ele, a senhora já pensou o que é arder no fogo do inferno por toda a eternidade?". Atordoa­da, respondo: "Não, não pensei". Na certa ele estava penali­zado com as limitações físicas do rapaz cantor e resolveu premiá-Io com a absolvição do inferno. Coitado, do cobrador.

"A senhora tem religião?", prossegue, antevendo não ser a minha a mesma dele. Afinal, aquele cabelo black power e um arco-íris na roupa. "Tenho", respondo, louca para saber onde a prosa desaguaria. "Acredita em Deus?", ele continua, desafiador. "Acredito!" Não o seu, penso. "Pois é, num vê aque­le povo da Índia? Eles num acredita em Deus e adora vaca. Adorar santo já é uma ofensa ao senhor Jesus e adorar vaca, eu nem sei dizer o que é. Por isso aconteceu aquela desgraceira toda. Aquela chuva que não parava e o mar se voltou contra eles em ondas gigantes. O pastor falou na igreja e deu no Jornal Nacional também".

Compreendi que ele falava sobre os tsunami que surpre­enderam o sudoeste da Ásia no início de 2005, e atribuía a catástrofe ambiental ao fato de os indianos considerarem a vaca um animal sagrado. Santa lobotomia, Batman. Perple­xa, não sabia o que fazer, mas tentei explicar que a vaca é sagrada para a cultura indiana, assim como outros animais o são em diferentes culturas. Argumentei que na Indonésia, país muito afetado pela catástrofe, predomina o islamismo, 80% do país é muçulmano e não há adoração à vaca. Procuro sensibilizá-lo para o tema do respeito a outras religiões e gasto meu latim em vão. De nada adianta ilustrar a conversa nar­rando a existência de um templo em homenagem a Buda, considerado uma das sete maravilhas do mundo. Constituído por cinco quilômetros de rochas vulcânicas, firmemente encaixadas umas nas outras. Demorou setenta e cinco anos para ficar pronto. Falo dele com um símbolo imponente da busca humana por algo maior. Transbordo meu caldeirão de diversidade, mas de nada adianta. O rapaz é irredutivel: "Deus-­vaca na terra de Alá. Onde já se viu?".

Olho para ele com o rabo do olho, calada e impotente. Coloco o fone de ouvido e enquanto procuro uma estação de rádio que me agrade, ouço uma notícia que me devolve o ânimo. A repórter diz que o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia condenou a Igreja Universal a pagar significativa inde­nização por usar imagem de mãe de santo para ofender o Candomblé. E o tema das religiões de matriz africana prosse­gue. Fala-se na reportagem também sobre a criação de um grupo de militares praticante dessas religiões dentro da corporação, com o objetivo de educar instituições e pessoas para o respeito às expressões religiosas de matriz africana. Olho para o cobrador e me convenço de que não vale a pena prosseguir na tentativa de demovê-lo do sectarismo. Mudo a estação de rádio, fecho os olhos e finjo dormir.

(Cada Tridente em seu lugar, p. 29-30).

 

 

Cada tridente em seu lugar

Dia desses recebi carta de um leitor colérico, cheia de reclamações porque em texto de minha lavra utilizei uma imagem do tridente de Netuno como recurso ficcional com­parativo. Em sua opinião eu deveria ter usado o tridente de Exu. Mal sabe o leitor que tudo o que se fala sobre Exu está sempre amarrado a uma ponta de mistério, ensina Carolina Cunha. Ele vive em um tempo mágico. Ele próprio é mágico, transforma-se no que quiser e se movimenta num constante vai-e-vém. Assim, naturalmente se tornou mensageiro. Para bem falar de Exu - não seria louca de falar mal - é preciso ser iniciada, saber segredos que, como tais, não devem ser revela­dos. Então, caro leitor, sinto-me mais à vontade para mexer com o tridente de Netuno (patrimônio cultural da humani­dade que a mim também pertence) e, mineiramente, deixo quieto o tridente de Exu. Arma por demais poderosa que funciona por eletromagnetismo. Sou maluca de colocar um negócio desses na minha cabeça?

A carta, entretanto, evocou-me outra lembrança. A do poeta que ao me encontrar no cinema com um grupo de alunos, perguntou-me se achava O homem que copiava, um filme adequado para jovens negros.

É lógico que sim, respondi. A seguir discorri sobre o que me parecia ser o cerne da indagação dele. Seria aquele um filme adequado para discutir com estudantes negros a tensão das relações raciais travadas no Brasil? Na trama, um jovem negro, operador de uma máquina de fotocópias se apaixona por uma garota branca, caixa em um supermercado. A histó­ria se passa no Rio Grande do Sul, local onde seria pouco provável que aquela relação afetiva não fosse notada como algo fora da norma. É fato, ainda, que o autor escorrega feio ao construir o personagem-pai da mocinha como reacioná­rio, explorador da filha e abusador sexual, mas que, suposta­mente, não é racista. Afinal é estranho que um homem branco, cujo caráter já foi descrito, não dê importância ao namoro de sua única filha com um negro pobre e sem futu­ro. Não combina. Entretanto, esta idiossincrasia mesma cons­titui um grande mote para discussão, pois é mais um dos milhões de exemplos da invisibilização dos conflitos raciais no Brasil.

Mas o filme tem um mérito inegável, talvez único na produção cinematográfica brasileira. O operador da máqui­na de fotocópias (o homem que copiava) não é um persona­gem negro, mas é representado por um talentoso ator negro, Lázaro Ramos. Como o homem que copiava não tinha uma marca racial, o "normal" seria que ele fosse representado por qualquer talentoso ator branco. Jorge Furtado, o diretor, sub­verteu o limitador pressuposto da dramaturgia nacional, de que atores e atrizes negros (quando conseguem algum espa­ço) devem representar personagens propriamente negros ou papéis subalternos, nos quais "cabe" um negro.

Então, seu poeta, o filme é adequado para discutir a invisibilidade dos conflitos raciais, sim senhor.

(Cada Tridente em seu lugar, 19-20).

 

 

Usos e abusos da toga de Joaquim

Começou a navegar pelas redes sociais, e naufragou logo, uma imagem ora austera, ora sorridente do Ministro Joaquim Barbosa, associada à própria “não-necessidade de cotas raciais” para ser um homem negro bem formado, bem-sucedido e alçado ao posto de super-herói.

A mim, causava espécie escutar a presença de várias pessoas negras repetindo acriticamente o bordão, numa confusa demonstração de orgulho. Ah, o quanto é destruidora essa profunda carência de ícones, que nos leva, muitas vezes, a ouvir ruídos e a confundi-los com música, boa música.

Joaquim Barbosa, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Hélio Santos, Ruth Guimarães, Leda Martins, Gilberto Gil, vivíssimos entre nós, não se valeram das cotas raciais para construir a carreira, mas, seguramente, não seriam exemplos isolados se contássemos com cotas raciais desde o momento em que cada um deles passou pela universidade.

Recentemente, a ministra Luiza Bairros, alicerçada em cálculos feitos por sua equipe, prospectou a entrada de 56 mil estudantes negros, anualmente, nas universidades públicas federais a partir da Lei de Cotas, sancionada pela Presidenta Dilma. Ora, ora, seremos mais de meio milhão de graduados negros em 10 anos.

Estamos a caminho de virar o jogo. Se nós não estamos atentos a isso, eles estão. É de lamentar que muitos de nós ainda nos enganemos com o canto de sereia lançado por eles, que, outra vez, tentam nos afundar na Kalunga Grande. Se deixarmos, se não separarmos a música dos grunhidos de desespero, lá no fundo do mar, vagaremos insepultos.

(Racismo no Brasil e afetos correlatos, p. 23).

 

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Usos e abusos da toga de Joaquim

Começou a navegar pelas redes sociais, e naufragou logo, uma imagem ora austera, ora sorridente do Ministro Joaquim Barbosa, associada à própria “não-necessidade de cotas raciais” para ser um homem negro bem formado, bem-sucedido e alçado ao posto de super-herói.

A mim, causava espécie escutar a presença de várias pessoas negras repetindo acriticamente o bordão, numa confusa demonstração de orgulho. Ah, o quanto é destruidora essa profunda carência de ícones, que nos leva, muitas vezes, a ouvir ruídos e a confundi-los com música, boa música.

Joaquim Barbosa, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Hélio Santos, Ruth Guimarães, Leda Martins, Gilberto Gil, vivíssimos entre nós, não se valeram das cotas raciais para construir a carreira, mas, seguramente, não seriam exemplos isolados se contássemos com cotas raciais desde o momento em que cada um deles passou pela universidade.

Recentemente, a ministra Luiza Bairros, alicerçada em cálculos feitos por sua equipe, prospectou a entrada de 56 mil estudantes negros, anualmente, nas universidades públicas federais a partir da Lei de Cotas, sancionada pela Presidenta Dilma. Ora, ora, seremos mais de meio milhão de graduados negros em 10 anos.

Estamos a caminho de virar o jogo. Se nós não estamos atentos a isso, eles estão. É de lamentar que muitos de nós ainda nos enganemos com o canto de sereia lançado por eles, que, outra vez, tentam nos afundar na Kalunga Grande. Se deixarmos, se não separarmos a música dos grunhidos de desespero, lá no fundo do mar, vagaremos insepultos.

(Racismo no Brasil e afetos correlatos, p. 23).

 

Becos da memória

(Fragmento)

Conceição Evaristo

 

Vó Rita dormia embolada com ela.

Vó Rita era boa, gostava muito dela e de todos nós.

Talvez, ela só pudesse contar com o amor de Vó Rita, pois de nossa parte, ela só contava com o nosso medo, com o nosso pavor.

Eu me lembro de que ela vivia entre o esconder e o aparecer atrás do portão. Era um portão velho de madeira, entre o barraco e o barranco, com algumas tábuas já soltas, e que abria para um beco escuro. Era um ambiente sempre escuro, até nos dias de maior sol. Para mim, para muitos de nós, crianças e adultos, ela era um mistério, menos para Vó Rita. Vó Rita era a única que a conhecia toda. Vó Rita dormia embolada com ela. Nunca consegui ver plenamente o rosto dela. Ás vezes, adivinhava a metade de sua face. Ficava na espreita, colocava a lata na fila da água ou punha a borracha na tina e permanecia quieta, como quem não quisesse nada. Ela aparecia para olhar o mundo. Ver as pessoas, escutar as vozes. E eu, de olhos abertos, pulava em cima (só os meus olhos).

Eu não atinava com o porquê da necessidade, do querer dela em ver o mundo ali à sua volta. Tudo era tão sem graça. Grandes mundos!... Uma bitaquinha que vendia pão, cigarro, cachaça e pedaços de rapadura. A bitaquinha era do filho dela. Ninguém gostava de comprar nada ali, o movimento era raro. Vendia também sabão, água sanitária e anil. E, fora a cachaça, estes eram os produtos que mais saíam.

Em frente da casa em que ela morava com Vó Rita, ficava uma torneira pública. A “torneira de cima”, pois no outro extremo a favela havia a “torneira de baixo”. Tinha, ainda, o “torneirão” e outras torneiras em pontos diversos. A “torneira de cima”, em relação à “torneira de baixo”, era melhor. Fornecia mais água e podíamos buscar ou lavar roupa quase o dia todo. Era possível se fazer ali o serviço mais rápido.

Quando eu estava para brincadeira, preferia a “torneira de baixo”. Era mais perto de casa. Lá estavam sempre a criançada amiga, os pés de amora, o botequim da Cema, em que eu ganhava sempre restos de doces. Quando eu estava para o sofrer, para o mistério, buscava a “torneira de cima”.

A torneira, a água, as lavadeiras, os barracões de zinco, papelões, madeiras e lixo. Roupas das patroas que quaravam ao sol. Molambos nossos lavados com sabão restante. Eu tinha nojo de lavar o sangue alheio. Nem entendia e nem sabia que sangue era aquele. Pensei, por longo tempo, que as patroas, as mulheres ricas, mijassem sangue de vez em quando.

Naquela época, eu menina, minha curiosidade ardia diante de tudo. A curiosidade de ver todo o corpo dela, de olhá-la todinha. Eu queria poder vasculhar com os olhos a sua imagem, mas ela percebia e fugia sempre. Será que ela, algum dia, conseguiu ver o mundo circundante, ali bem escondidinha por trás do portão? Talvez Como a vida acontecia simples e como tudo era e é complicado!

Hoje, a recordação daquele mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos pobres! Miseráveis talvez! Como a vida acontecia simples e como tudo era e é complicado!

Havia as doces figuras tenebrosas. E havia o doce amor de Vó Rita. Quando eu soube, outro dia, já grande, já depois de tanto tempo, que Vó Rita dormia embolada com ela, foi que me voltou este desejo dolorido de escrever.

Escrevo como uma homenagem póstuma à Vó Rita, que dormia embolada com ela, a ela que nunca consegui ver plenamente, aos bêbados, às putas, aos malandros, às crianças vadias que habitam os becos de minha memória. Homenagem póstuma ás lavadeiras que madrugavam os varais com roupas ao sol. Às pernas cansadas, suadas, negras, aloiradas de poeira do campo aberto onde aconteciam os festivais de bola da favela. Homenagem póstuma ao Bondade, ao Tião Puxa-Faca, à velha Isolina, a D. Anália, ao Tio Totó, ao Catarino, à Velha Lia, à Terezinha da Oscarlinda, à Mariinha, à Donana do Padim.

Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela.

(Becos da memória, 2. ed., p. 27-30)

Ana Davenga

Conceição Evaristo

As batidas na porta ecoaram como um prenúncio de samba. O coração de Ana Davenga naquela quase meia-noite, tão aflito, apaziguou um pouco. Tudo era paz então, uma relativa paz. Deu um salto da cama e abriu a porta. Todos entraram, menos o seu. Os homens cercaram Ana Davenga. As mulheres ouvindo o movimento vindo do barraco de Ana foram também. De repente, naquele minúsculo espaço coube o mundo. Ana Davenga reconhecera a batida. Ela não havia confundido a senha. O toque prenúncio de samba ou de macumba estava a dizer que tudo estava bem. Tudo paz, na medida do possível. Um toque diferente, de batidas apressadas, dizia de algo mau, ruim, danoso no ar. O toque que ela ouvira antes não prenunciava desgraça alguma. Se era assim, onde andava o seu, já que os das outras estavam ali? Por onde andava o seu homem? Por que Davenga não estava ali?

Davenga não estava ali. Os homens rodearam Ana com cuidado, e as mulheres também. Era preciso cuidado. Davenga era bom. Tinha um coração de Deus, mas, invocado, era o próprio diabo. Todos haviam aprendido a olhar Ana Davenga. Olhavam a mulher buscando não perceber a vida e as delícias que explodiam por todo o seu corpo.

O barraco de Davenga era uma espécie de quartel-general, e ele, o chefe. Ali se decidia tudo. No princípio, os companheiros de Davenga olharam Ana com ciúme, cobiça e desconfiança. O homem morava sozinho. Ali armava e confabulava com os outros todas as proezas. E de repente, sem consultar os companheiros, mete ali dentro uma mulher. Pensaram em escolher outro chefe e outro local para quartel-general, mas não tiveram coragem. Depois de certo tempo, Davenga comunicou a todos que aquela mulher ficaria com ele e nada mudaria. Ela era cega, surda e muda no que se referia a assuntos deles. Ele entretanto, queria dizer mais uma coisa: qualquer um que bulisse com ela haveria de morrer sangrando nas mãos dele feito porco capado. Os amigos entenderam. E quando o desejo aflorava ao vislumbrar os peitos-maçãs salientes da mulher, algo como uma dor profunda doía nas partes de baixo deles. O desejo abaixava então, esvanecendo, diluindo a possibilidade de ereção, do prazer. E Ana passou a ser quase uma irmã que povoava os sonhos incestuosos dos homens comparsas dos delitos e dos crimes de Davenga.

O peito de Ana Davenga doía de temor. Todos estavam ali, menos o dela. Os homens rodeavam Ana. E as mulheres, como se estivessem formando pares para uma dança, rodeavam seus companheiros, parando atrás de seu homem certo. Ana olhou todos e não percebeu tristeza alguma. O que seria aquilo? Estariam guardando uma dor profunda e apenas mascarando o sofrimento para que ela não sofresse? Seria alguma brincadeira de Davenga? Ele estaria escondido por ali? Não! Davenga não era homem de tais modos! Ele até brincava, porém, só com os companheiros. Assim mesmo, de uma brincadeira bruta. Socos, pontapés, safanões, tapas, "seus filhos da puta"... Mais parecia briga. Onde estava Davenga? Teria se metido em alguma confusão? Sim, seu homem só tinha tamanho. No mais era criança em tudo. Fazia coisas que ela nem gostava de pensar. Às vezes ficava dias e dias, meses até, foragido, e quando ela menos esperava dava com ele dentro de casa. Pois é, Davenga parecia ter mesmo o poder de se tornar invisível. Um pouco que ela saía para buscar roupas no varal ou falar um tantinho com as amigas, quando voltava dava com ele, deitado na cama. Nuzinho. Bonito o Davenga vestido com a pele que Deus lhe deu. Uma pele negra, esticada, lisinha, brilhosa. Ela mal fechava a porta e se abria todinha para o seu homem. Davenga, Davenga! E aí acontecia o que ela não entendia. Davenga, que era tão grande, tão forte, mas tão menino, tinha o prazer banhado em lágrimas. Chorava feito criança, soluçava, umedecia ela toda. Seu rosto, seu corpo ficavam úmidos das lágrimas de Davenga. E todas as vezes que ela via aquele homem no gozo-pranto, sentia uma dor intensa. Era como se Davenga estivesse sofrendo mesmo, e fosse ela a culpada. Depois então, os dois ainda de corpos nus, ficavam ali. Ela enxugando as lágrimas dele. Era tudo tão doce, tão gozo, tão dor! Um dia pensou em se negar para não ver Davenga chorando tanto. Mas ele pedia, caçava, buscava. Não restava nada a fazer, a não ser enxugar o gozo-pranto de seu homem.

Todos continuavam parados olhando Ana Davenga. Ela recordou que há uns tempos atrás nenhum deles era amigo. Inimigos quase. Eles detestavam Ana. Ela não os amava nem os odiava. Ela não sabia onde eles estavam na vida de Davenga. E quando percebeu, viu que não poderia ter por eles indiferença. Teria de amá-los ou odiá-los. Optou por amá-los, então. Foi difícil. Eles não a queriam. Não era do agrado de nenhum deles aquela mulher dentro do quartel-general do chefe, sabendo de todos os segredos. Achavam que Davenga iria se dar mal e comprometer todo o grupo. Mas Davenga estava mesmo apaixonado pela mulher.

Quando Davenga conheceu Ana em uma roda de samba, ela estava ali, faceira, dançando macio. Davenga gostou dos movimentos do corpo da mulher. Ela fazia um movimento bonito e ligeiro de bunda. Estava tão distraída na dança que nem percebeu Davenga olhando insistentemente para ela. Naqueles dias ele andava com um temor no peito. Era preciso cuidado. Os homens estavam atrás dele. Tinha havido um assalto a um banco e o caixa descrevera alguém parecido com ele. A polícia já tinha subido o morro e entrado em seu barraco várias vezes. O pior é que ele não estava metido naquela merda. Seria burro de assaltar um banco ali mesmo no bairro, tão perto dele? Fazia os seus serviços mais longe, e além do mais não gostava de assaltos a bancos. Já até participara de alguns, mas achava o servicinho sem graça. Não dava tempo de ver as feições das vítimas. O que ele gostava mesmo era de ver o medo, o temor, o pavor nas feições e nos modos das pessoas. Quanto mais forte o sujeito, melhor. Adorava ver os chefões, os mandachuvas se cagando de medo, feito aquele deputado que ele assaltou um dia. Foi a maior comédia. Ficou na ronda perto da casa do homem. Quando ele chegou e saltou do carro, Davenga se aproximou.

– Pois é, doutor, a vida não tá fácil! Ainda bem que tem homem lá em cima como o senhor defendendo a gente, os pobres. – Era mentira. – Doutor, eu votei no senhor. – Era mentira também. – E não me arrependi. Veio visitar a família? Eu também tou indo ver a minha e quero levar uns presentinhos. Quero chegar bem vestido, como o senhor.

O homem não deu trabalho algum. Pressentiu a arma que Davenga nem tinha sacado ainda. E quando isto aconteceu, o próprio deputado já tinha adiantado o serviço entregando tudo. Davenga olhou a rua. Tudo ermo, tudo escuro. Madrugada e frio. Mandou que o homem abrisse o carro e pediu as chaves. O deputado tremia, as chaves tilintavam em suas mãos. Davenga mordeu o lábio, contendo o riso. Olhou o político bem no fundo dos olhos, mandou então que ele tirasse a roupa e foi recolhendo tudo.

– Não, doutor, a cueca, não! Sua cueca não! Sei lá se o senhor tem alguma doença ou se tá com o cu sujo!

Quando arrecadou tudo, empurrou o homem para dentro do carro. Olhou para ele e balançou as chaves e deu um adeus ao deputado, que correspondeu ao gesto. Davenga tinha o peito explodindo em gargalhadas, mas conteve o riso. Apertou o passo, tinha de abreviar. Eram três e quinze da madrugada. Daí a pouco passaria por ali uma patrulhinha. Dias atrás ele havia estudado o ambiente.

Foi por aqueles dias do assalto ao deputado que Davenga conheceu Ana. A venda do relógio lhe havia rendido algum dinheiro, fora o que estava na carteira. E de cabeça leve resolveu ir com os amigos para o samba. Sabia porém que devia ficar atento. Estava atento, sim. Estava atento aos movimentos e à dança da mulher. Ela lhe lembrava uma bailarina nua, tal qual a que ele vira um dia no filme da televisão. A bailarina dançava livre, solta, na festa de uma aldeia africana. Só quando a bateria parou foi que Ana também parou e se encaminhou com as outras para o banheiro. Davenga assistia a tudo. Na volta ela passou por ele, olhou-o e deu-lhe um longo sorriso. Ele criou coragem. Era preciso coragem para chegar a uma mulher. Mais coragem até do que para fazer um serviço. Aproximou-se e convidou-a para uma cerveja. Ela agradeceu. Estava com sede, queria água, e deu-lhe um sorriso mais profundo ainda. Davenga se emocionou. Lembrou da mãe, das irmãs, das tias, das primas e até da avó, a velha Isolina. Daquelas mulheres todas que ele não via há muitos anos, desde que começara a varar o mundo. Seria tão bom se aquela mulher quisesse ficar com ele, morar com ele, ser dele na vida dele. Mas como? Ele queria uma mulher, uma só. Estava cansado de não ter pouso certo. E aquela mulher que lhe lembrava a bailarina nua havia mexido com ele, com alguma coisa lá dentro dele. Ela lhe trouxera saudade de um tempo paz, um tempo criança, um tempo Minas. Ia tentar, ia tentar... Ana, a bailarina de suas lembranças, bebeu água enquanto Davenga enamorado bebia a cerveja, sem sentir o gosto do líquido. Quando terminou, pegou a mão da mulher e saiu. Os amigos de Davenga viram quando ele, descuidado de qualquer perigo, atravessou o terreiro da roda de samba e caminhou feito namorado puxando a mulher pela mão, ganhando o espaço lá fora, quase esquecido do perigo.

Desde aquele dia Ana ficou para sempre no barraco e na vida de Davenga. Não perguntou de que o homem vivia. Ele trazia sempre dinheiro e coisas. Nos tempos em que ficava fora de casa, eram os companheiros dele que, através das mulheres, lhe traziam o sustento. Ela não estranhava nada. Muitas vezes, Davenga mandava que ela fosse entregar dinheiro ou coisas para as mulheres dos amigos dele. Elas recebiam as encomendas e mandavam perguntar quando e se seus homens voltariam. Davenga às vezes falava do regresso ou não. Ana sabia bem qual era a atividade de seu homem. Sabia dos riscos que corria ao lado dele, mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver. E naquela noite primeira, no barraco de Davenga, depois de tudo, quando calmos e ele já de olhos enxutos, – ele havia chorado copiosamente no gozo-pranto – puderam conversar, Ana resolveu adotar o nome dele. Resolveu então que a partir daquele momento se chamaria Ana Davenga. Ela queria a marca do homem dela no seu corpo e no seu nome.

Davenga gostara de Ana desde o primeiro momento até o sempre. Dera seu nome para Ana e se dera também. Fora com ela que descobrira e começara a pensar no porquê de sua vida. Fora com ela que começara a pensar nas outras mulheres que tivera antes. E uma lhe trazia um gosto de remorso. Ele havia mandado matar a Maria Agonia.

Conhecera a mulher ao visitar um companheiro na cadeia. O amigo armara uma e não se dera bem. A prisão devia ser horrível. Só em pensar tinha medo e desespero. Se um dia caísse preso e não conseguisse fugir, se mataria. E foi nessa única visita ao amigo que ficou conhecendo Maria Agonia. Ela vivia dizendo da agonia de uma vida sem o olhar do Senhor. Naquele dia, quando saíram da cadeia, ela veio conversando com Davenga. Era bonita, uma roupa abaixo do joelho, o cabelo amarrado para trás. Uma voz calma acompanhada de gestos tranquilos. Davenga estava gostando de ouvir as palavras de Maria Agonia. Marcaram um encontro para o outro domingo na praça. Quando ele chegou, o pastor falava, e Maria Agonia estava com a Bíblia aberta na mão. Davenga observava os os modos contritos da mulher. Ela, ao levantar os olhos e perceber  o olhar dele, piedosamente abaixou a cabeça e voltou ao livro. Ele saiu e se encaminhou para o botequim em frente. Ao acabar a pregação, ela saiu do meio dos outros, passou por ele e fez um sinal. Ele foi atrás. Assim que todos se dispersaram, ela falou do desejo de estar com ele. Queria ir para algum lugar sozinhos. Foram e se amaram muito. Ele chorou como sempre. Esses encontros aconteceram muitas e muitas vezes. Primeiro a praça, a pregação, a crença. Depois tudo no silêncio, na moita, tudo escondidinho. Um dia ele se encheu. Propôs que ela subisse o morro e ficasse com ele. Corresse com ele todos os perigos. Deixasse a Bíblia, deixasse tudo. Maria Agonia reagiu. Vê só, se ela, crente, filha de pastor, instruída, iria deixar tudo e morar com um marginal, com um bandido? Davenga se revoltou. Ah! Então era isso? Só prazer? Só o gostoso? Só aquilo na cama? Saiu dali era novamente a Bíblia? Mandou que a mulher se vestisse. Ela ainda se negou. Estava querendo mais. Estava precisando do prazer que ele, só ele, era capaz de dar. Saíram juntos do motel, a uma certa altura, como sempre, ele desceu do carro e caminhou sozinho. Não havia de ser nada. Tinha alguém que faria o serviço para ele. Dias depois, a seguinte manchete apareceu nos jornais: “Filha de pastor apareceu nua e toda perfurada de balas. Tinha ao lado do corpo uma Bíblia. A moça cultivava o hábito de visitar os presídios para levar a palavra de Deus”.

Por mais que Ana Davenga se esforçasse, não conseguia atinar com o porquê da ausência de seu homem. Todos estavam ali. Isto significava que em qualquer lugar que Davenga estivesse naquele momento, ele estava só. E não era comum, em tempos de guerra como aqueles, eles andarem sozinhos. Davenga devia estar em perigo, em maus lençóis. As histórias e os feitos de Davenga vieram quentes e vivos em sua mente. Dentre eles havia o feito em que havia uma semelhante sua, morta. Nem no dia em que Davenga, de cabeça baixa, lhe contara o crime, ela tivera medo do homem. Buscou as feições de suas semelhantes, ali presentes. Encontrou calma. Seria porque os homens delas estavam ali? Não, não era. A ausência de um significava sempre perigo para todos. Por que estavam tão calmas, tão alheias assim?

Novas batidas ecoaram na porta e já não eram prenúncios de samba. Era samba mesmo. Ana Davenga quis romper o círculo em volta dela e se encaminhar para abrir a porta. Os homens fecharam a roda mais ainda e as mulheres em volta deles começaram a balançar o corpo. Cadê Davenga, cadê o Davenga, meu Deus?! O que seria aquilo? Era uma festa! Distinguiu vozes pequenas e havia as crianças. Ana Davenga alisou a barriga. Lá dentro estava a sua, bem pequena, bem sonho ainda. As crianças, havia umas que de longe, e às vezes de perto, acompanhavam as façanhas dos pais. Algumas seguiriam pelas mesmas trilhas. Outras, quem sabe, traçariam caminhos diferentes. E o filho dela com Davenga, que caminho faria? Ah, isto pertence ao futuro. Só que o futuro ali chegava rápido. O tempo de crescer era breve. O de matar ou morrer chegava breve, também. E o filho dela e de Davenga? Cadê Davenga, meu Deus?

Davenga entra furando o círculo. Alegre, zambeiro, cabeça-sonho, nuvens. Abraça a mulher. No abraço, além do corpo de Davenga, ela sentiu a pressão da arma.

– Davenga, Davenga, que festa é esta? Por que isto tudo?

– Mulher, tá pancada? Parece que bebe? Esqueceu da vida? Esqueceu de você?

Não, Ana Davenga não havia esquecido, mas também não sabia por que lembrar. Era a primeira vez na vida, uma festa de aniversário.

O barraco de Ana Davenga, como o seu coração, guardava gente e felicidades. Alguns se encostaram pelo pouco espaço do terreiro. Outros se amontoaram nos barracos vizinhos, de onde rolavam a cachaça, a cerveja e o mais e mais. Quando a madrugada afirmou, Davenga mandou que todos se retirassem, recomendando aos companheiros que ficassem alertas.

Ana estava feliz. Só Davenga mesmo para fazer aquilo. E ela, tão viciada na dor, fizera dos momentos que antecederam a alegria maior um profundo sofrimento. Davenga estava ali, na cama, vestido com aquela pele negra, brilhante, lisa, que Deus lhe dera. Ela também, nua. Era tão bom ficar se tocando primeiro. Depois haveria o choro de Davenga, tão doloroso, tão profundo, que ela ficava adiando o gozo-pranto. Já estavam para explodir um no outro, quando a porta abriu violentamente e dois policiais entraram de armas em punho. Mandaram que Davenga vestisse rápido e não bancasse o engraçadinho, porque o barraco estava cercado. Outro policial do lado de fora empurrou a janela de madeira. Uma metralhadora apontou para dentro de casa, bem na direção da cama, na mira de Ana Davenga. Ela se encolheu levando a mão na barriga, protegendo o filho, pequena semente, quase sonho ainda.

Davenga vestiu a calça lentamente. Ele sabia estar vencido. E agora, o que valia a vida? O que valia a morte? Ir para a prisão, nunca! A arma estava ali, debaixo da camisa que ele ia pegar agora. Poderia pegar as duas juntas. Sabia que este gesto significaria a morte. Se Ana sobrevivesse à guerra, quem sabe teria outro destino?

De cabeça baixa, sem encarar os dois policiais a sua frente, Davenga pegou a camisa e desse gesto se ouviram muitos tiros.

Os noticiários depois lamentavam a morte de um dos policiais de serviço. Na favela, os companheiros de Davenga choravam a morte do chefe e de Ana, que morrera ali na cama, metralhada, protegendo com as mãos um sonho de vida que ela trazia na barriga.

Em uma garrafa de cerveja cheia de água, um botão de rosa, que Ana Davenga havia recebido de seu homem na festa primeira de seu aniversário, vinte e sete, se abria.

(In: Olhos d’água, p. 21-30).

 

 

Maria

Conceição Evaristo

Maria estava parada há mais de meia hora no ponto de ônibus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. Os ônibus estavam aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir o nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos gostavam de melão?

A palma de umas de suas mãos doía. Tinha sofrido um corte, bem no meio, enquanto cortava o pernil para a patroa. Que coisa! Faca-laser corta até a vida!

Quando o ônibus apontou lá na esquina, Maria abaixou o corpo, pegando a sacola que estava no chão entra as suas pernas. O ônibus não estava cheio, havia lugares. Ela poderia descansar um pouco, cochilar até a hora da descida. Ao entrar, um homem levantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quando tempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem assentou-se ao lado dela. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gêmeos, e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai do seu filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e em ninguém. Sentiu uma mágoa imensa. Por que não podia ser de outra forma? Por que não podiam ser felizes? E o menino, Maria? Como vai o menino? cochichou o homem. Sabe que sinto falta de vocês? Tenho um buraco no peito, tamanha a saudade! Tou sozinho! Não arrumei, não quis mais ninguém.  Você já teve outros... outros filhos? A mulher baixou os olhos como que pedindo perdão. É. Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém também. Ficava, apenas, de vez  em quando, com um ou outro homem. Era tão difícil ficar sozinha! E dessas deitadas repentinas, loucas, surgiram os dois filhos menores. E veja só, homens também!  Homens também? Eles haveriam de ter outra vida. Com eles tudo haveria de ser diferente. Maria, não te esqueci! Tá tudo aqui no buraco do peito...

O homem falava, mas continuava estático, preso, fixo no banco. Cochichava com Maria as palavras, sem entretanto virar para o lado dela. Ela sabia o que o homem dizia. Ele estava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte, de despedida. Do buraco-saudade no peito dele... Desta vez ele cochichou um pouquinho mais alto. Ela, ainda sem ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho no filho. E logo após, levantou rápido sacando a arma. Outro lá atrás gritou que era um assalto. Maria estava com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três filhos. O mais velho, com onze anos, era filho daquele homem que estava ali na frente com uma arma na mão. O de lá de trás vinha recolhendo tudo. O motorista seguia a viagem. Havia o silêncio de todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pedindo aos passageiros que entregassem tudo rapidamente. O medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria a vida dos seus filhos? Era a primeira vez que ela via um assalto no ônibus. Imaginava o terror das pessoas. O comparsa de seu ex-homem passou por ela e não pediu nada. Se fossem outros os assaltantes? Ela teria para dar uma sacola de frutas, um osso de pernil e uma gorjeta de mil cruzeiros. Não tinha relógio algum no braço. Nas mãos nenhum anel ou aliança. Aliás, nas mãos tinha sim! Tinha um profundo corte feito com faca-laser que parecia cortar até a vida.

Os assaltantes desceram rápido. Maria olhou saudosa e desesperada para o primeiro. Foi quando uma voz acordou a coragem dos demais. Alguém gritou que aquela puta safada conhecia os assaltantes. Maria assustou-se. Ela não conhecia assaltante algum. Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois. Outra voz ainda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma gente! Se ela estivesse junto com eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei porquê. Maria olhou na direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro, com feições de menino e que relembrava vagamente o seu filho. A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da voz levantou e se encaminhou em direção a Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha!... Uns passageiros desceram e outros voaram em direção a Maria. O motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira: Calma, pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os filhos... Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos gostam de melão?

Tudo foi tão rápido, tão breve. Maria tinha saudades do seu ex-homem. Por que estavam fazendo isto com ela? O homem havia segredado um abraço, um beijo, um carinho no filho. Ela precisava chegar em casa para transmitir o recado. Estavam todos armados com facas-laser que cortam até a vida. Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher já estava todo dilacerado, todo pisoteado.

Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho.

(In: Olhos d’água, p. 39-42).