Ofício
Fernanda Bastos
no papel
redijo meu português
linha após linha
feito costura
e se alguém perguntar
qual é a linha
me encaixo nos
estudos poéticos e
vingativos
(Dessa cor, p. 16)
Ofício
Fernanda Bastos
no papel
redijo meu português
linha após linha
feito costura
e se alguém perguntar
qual é a linha
me encaixo nos
estudos poéticos e
vingativos
(Dessa cor, p. 16)
Títulos provisórios
Fernanda Bastos
Por que sou negra, mamãe?
F, relato de uma escrevivência
Um efeito estético de cor
Vozes veladas
O livro do desassossego dos outros
Baduísmo à brasileira
Outro país ou na próxima vez taco fogo
Nos braços da mãe preta e seca sentei e chorei
Memórias das minhas negras tristes
Relato de um certo Atlântico Negro
Cidadã de quarta classe
Brasileirah
Nega fulana
(Dessa cor, p. 13)
No ano seguinte, já no primeiro dia de aula, levava na bolsa um poema de quatro versos que dizia assim:
Foi boa para os escravos,
E parecia um mel,
Acho que é irmã de Deus,
Viva a princesa Isabel.
De imediato, não tive coragem de mostrá-lo à professora.
Cada vez que tentava, ficava gelada e o coração já ia correndo bater na garganta.
Mas no segundo dia de aula, numa hora em que ela disse que a minha letra era bonita, arranquei da bolsa o poema e lhe entreguei.
Ela foi até a mesa e sentou-se com o meu papelzinho na mão. Leu e releu. Pegou a caneta, riscou qualquer coisa por sobre os meus versos e mandou o Pedro chamar o diretor.
Imediatamente me deu vontade de urinar e vomitar. Será que havia feito alguma coisa errada? E se houvesse feito, iria para os grãos de milho nos joelhos?
Chegou o diretor seguido do Pedro.
Dona Cacilda deu-lhe o papel. O diretor leu. Ficaram algum tempo conversando baixinho e apontando alguma coisa que eu havia escrito.
Depois ele saiu e a professora devolveu-me o poema e continuou a aula calmamente sem um gesto que me explicasse o bom ou ruim dos meus versos. Mas a qualquer barulhinho, ficava eu toda trêmula, ávida por um sinal, uma explicação por mais banal que fosse.
Assim fiquei até o final da aula, mas quando a minha fila saía e passava pela porta da diretoria, o diretor saiu, procurou-me com os olhos e disse:
– Parabéns!
– Não foi nada. Obrigada.
Fui para casa feliz. Sabiás empoleirados na cabeça da alma.
* * *
Devia ser dia 10 ou 11 do mês de maio.
A dona Cacilda, logo após o recreio, disse-nos:
– No dia 13 agora, vamos fazer uma festinha pra Princesa Isabel, que libertou os escravos. Quem quer recitar?
Várias crianças gritaram:
– Eu! Eu! Eu!
Pluft, pluft!... Meu coração lá foi de novo pulsar na garganta. Era a hora e a vez de expor meu poema. Não podia perder a chance. Mas como conseguir coragem? E se errasse?
– Assim não dá – gritou a professora. – Levantem a mão.
Levantei a minha, que timidamente luzia negritude em meio a cinco ou seis mãozinhas alvas, assanhadas.
– Você... Você... Você...
Não fui escolhida. Tantos não é possível, explicou-nos ela. Mas eu não podia perder a oportunidade. Corri atrás dela, sôfrega:
– Dona Cacilda, eu tenho aquela que eu fiz outro dia, que eu mostrei pra senhora e a senhora chamou o diretor e ele falou parabéns e eu deixo ela mais grande...
Falei tudo sem respirar. Sem piscar. Medo de não convencer, de apertar os olhos e as lágrimas escaparem do controle da emoção. Saturei.
– Está bem. Amanhã você traz a poesia e a gente ensaia.
Acariciou meu rosto e riu chochamente.
Sua mão parecia pena de galinha e seus lábios no riso tinham muito a ver com as casquinhas de tomate caipira que minha mãe colocava no tempero do arroz.
Fui para casa meio angustiada. Já estava quase arrependida de haver insistido. O aumentar e decorar o poema não era nada. Difícil era não tremer, não chorar, não esquecer na hora.
Pensei em não ir às aulas por uns dias, inventar uma dor de barriga... Mas não podia falhar com a Princesa Isabel. Ela merecia. Se não fosse ela...
Que pecado seria maior: mentir que estava doente ou não homenagear a Santa Princesa Isabel?
Optei por ir e não ficar em pecado.
Antes tremer, chorar, do que ser castigada por Deus. Por Deus ou por Santa Isabel?
Pelos dois, claro.
Ela teria que pedir o consentimento Dele para me punir, já que Ele é o Pai, o Chefe, dono de todas as decisões.
Haveria na certa uma reunião no céu entre santos e santas, anjos e anjas... Não. Anjos e anjas não. Crianças não opinam, não decidem nada. Nem votam. Ah! Mas se eles pudessem...
Se pudessem, seria fácil. Eu mesma conhecia vários anjinhos: A Tilica 1, que morreu de lombriga aguada; a Luzia 2, que morreu de bucho virado; o Jorge 3, que morreu de cair no poço...
É. E tinha mais ainda e, por sorte, todos da minha cor. Seriam votos a meu favor, certamente. Fora a Ana, que era branca, o João Cláudio... acho que até eles...
Mas não adiantava ficar pensando. Criança só ouve, quando pode. O fato é que, no céu, todo mundo ficaria sabendo. Uma vergonha imensa invadiu-me toda, como o dia em que fui pega tentando descobrir a passagem do ovo do galo para a barriga da galinha. Credo-em-cruz!
Não havia mesmo outro jeito. O negócio era assumir logo de uma vez, tentar fazer tudo bonito e direito.
Comi rapidamente no almoço. Engoli quase inteiros os alimentos. Engasguei com as espinhas de mandiúva. Pus-me a escrever afoitadamente. Aumentei. Criei quatro novos versos:
Os homens era teimosos
E o donos deles era bravo,
Por isso a linda Isabel
Soltou tudo os escravo.
Reli os versos antigos, e achei que deveriam ficar por último, para encerrar a declamação com o Viva a Princesa Isabel.
Ao meu poema dei um título: Santa Isabel. Assim ficou:
Santa Isabel
Os homes era teimosos,
E os donos deles era bravo,
Por isso a linda Isabel
Soltou tudo os escravo.
Foi boa que nem um doce,
E parecia um mel,
Acho que é irmã de Deus,
Viva a Princesa Isabel.
Dentro de meia hora, havia decorado tudo.
Daí comecei a declamar pausadamente. Às vezes, começava do fim e voltava para o começo. Tudo certinho: nem um pulo nas frases, nem um gaguejar, nada.
No dia seguinte, coloquei meus escritos sobre a mesa para a apreciação da professora. Ela os pegou, leu, fez as correções ortográficas, como, por exemplo, colocando ns no final da palavra homens, concordou os adjetivos, etc.
E me devolveu:
– Decora, que amanhã você recita, certo?
Não contei que tudo estava na ponta da língua.
A festa seria depois do recreio, na manhã seguinte.
Já no momento em que entramos na classe, ela se pôs a falar sobre a data:
– Hoje, comemoramos a libertação dos escravos. Escravos eram negros que vinham da África. Aqui eram forçados a trabalhar e, pelos serviços prestados, nada
recebiam. Eram amarrados nos troncos e espancados, às vezes, até a morte. Quando...
E foi ela discursando, por uns quinze minutos.
Vi que a narrativa da professora, não batia com a que nos fizera a Vó Rosária. Aqueles escravos da Vó Rosária eram bons, simples, humanos, religiosos.
Esses apresentados então eram bobos, covardes, imbecis. Não reagiam aos castigos, não se defendiam, ao menos.
Quando dei por mim, a classe inteira me olhava com pena ou sarcasmo. Eu era a única pessoa dali representando uma raça digna de compaixão, desprezo.
Quis sumir, evaporar, não pude.
Apenas pude levantar a mão suada e trêmula, pedir para ir ao banheiro. Sentada no vaso, estiquei o dedo indicador e no ar escrevi: lazarento. Era pouco. Acrescentei: morfético. Acentuei o e do f e voltei para a classe.
No recreio, a Sueli veio presentear-me com uma maçã e a Raquel, filha do administrador da fazenda, ofereceu-se para trocar o meu lanche de abobrinha abafada pelo dela, de presunto e mussarela.
Não os comi, é claro. A compensação desvalia. Não era como o leite que, derramado, passa-se um pano sobre e pronto.
Era sangue. Quem poderia devolvê-lo... Vida?
Que se enxugasse o fino rio a correr mansamente. Mas como estancá-lo lá dentro, onde a ferida aberta era um silêncio todo meu, dor sem parceria?
* * *
Na hora da festa, estava um trapo.
No entanto, não me preocupavam mais os erros ou acertos, sucessos ou insucessos. Era a vergonha que me abatia. Pensava que era a grande da classe, só por ser a única a fazer versos. Quantas vezes deviam ter rido de mim, depois das minhas tontices em inventar cantigas de roda... Vinha mesmo era de uma raça medrosa, sem histórias de heroísmo. Morriam feito cães. Justo era mesmo homenagear Caxias, Tiradentes e todos os Dons Pedros da história. Lógico. Eles lutavam, defendiam-se e a seu país. Os idiotas dos negros, nada.
Por isso que o meu pai tinha medo do seu Godoy, o administrador, e minha mãe nos ensinava a não brigar com o Flávio. Negro era tudo bosta mesmo. Até meu pai, minha mãe.
Por isso é que eu tinha medo. O filho puxa o pai, que puxa o avô, que puxou o pai dele, que puxou. ... eu, consequentemente, ali, idiota, fazendo parte da linha.
Caí em mim com a professora falando:
– Esqueceu? Não faz mal. Na outra festa, você recita. Logo chega o dia de Anchieta, do Soldado... Vamos sentar. Não tem importância.
Levou-me com cuidado e me fez sentar numa cadeira ao lado dos outros professores, na frente. Eu sentia muito sono e sede. Estranhei o fato do meu coração estar quieto, sem saltar para a garganta.
Apalpei o pescoço de todas as maneiras. Já ia verificar se estava no peito, mas desisti. Será que ele morreu?
“Pro inferno. Se quiser morrer, que morra”, pensei, olhando a sujeira do nariz que saiu preguiçosa e caiu sobre as pregas estreitas da sainha azul novinha, novinha.
Naquele dia ninguém correu na volta para casa.
Iam todos a minha volta, preocupados porque eu não conseguia andar depressa. Sentia-me sem peso e quando mudava o passo, achava que o chão à frente estava em desnível, longe, mole.
Quando cheguei em casa minha mãe falou:
– Seu almoço está em cima do fogão. Depois você leva o prato lá na vasca, que eu já estou indo lavar os trens.
Desvencilhei-me do material escolar e peguei o prato de comida.
Já ia saindo para jogar tudo para as galinhas do terreiro, quando pensei que, se eu levasse o prato logo, minha mãe ia desconfiar, porque não se almoça em tão pouco tempo. Resolvi aguardar. Destampei a vasilha e comecei a remexer a comida. Separei os grãos de feijão preto com o cabo da colher, joguei-os no meio das labaredas que mantinham aceso o fogo do fogão. Depois atirei a comida no quintal e fui levar o prato como minha mãe havia recomendado.
Até então, as mulheres da zona rural não conheciam “as mil e uma utilidades do bombril” e, para fazerem brilhar os alumínios, elas trituravam tijolos e com o pó faziam a limpeza dos utensílios.
A idéia me surgiu quando minha mãe pegou o preparado e com ele se pôs a tirar da panela o carvão grudado no fundo.
Assim que ela terminou a arrumação, voltou para casa. Eu juntei o pó restante e, com ele, esfreguei a barriga da perna. Esfreguei, esfreguei, e vi que, diante de tanta dor, era impossível tirar todo o negro da pele.
Daí, então, passei o dedo sobre o sangue vermelho, grosso, quente, e com ele comecei a escrever pornografias no muro do tanque d’água.
Quando cheguei em casa, minha mãe, ao me ver toda esfolada, deixou os afazeres, foi para o fundo do quintal, apanhou um punhado de rubi e com a erva preparou um unguento para as minhas feridas.
Enquanto umedecia um paninho no preparado e colocava na minha perna, dizia:
– Deus me livre! Eu canso de falar: não sobe nos muros, não brinca de correr e que nada. Entra por um ouvido e sai para o outro. Parece moleque. Mentira: nem moleque faz isto. Vê se o Zezinho...
Eu ouvia sua voz distante, brava-doce. Bálsamo.
Dentro de uma semana, na perna só uns riscos denunciavam a violência contra mim, de mim para mim mesma. Só ficaram as chagas da alma esperando.
(Leite do Peito, 3. ed., p. 55-66)
Prefácio de A palavra em preto e branco
Franciane Conceição da Silva*
Desde criança, sou apaixonada pelas palavras. Quando gosto de um vocábulo o repito várias vezes, gosto de ouvir o seu som, sentir o seu ritmo. Fico imaginando, muitas vezes, a palavra em movimento. Penso se o significado combina com o significante. Tenho preferências por alguns vocábulos, tais como, afeto, alumbramento, gargalhada, poesia... Acredito que poesia seja a minha palavra preferida. Gosto de ler, ouvir, ver, sentir, viver a poesia. O meu encantamento primeiro pela poesia aconteceu quando eu tinha uns quatro ou cinco anos de idade, período em que morei numa fazenda com nome de cobra: Fazenda Cascavel. Nessa época, meu pai, Ramiro, costumava ir todos os domingos à feira da cidade vizinha. Quando ia para a feira, ele levava o dinheiro contado para comprar os alimentos necessários à nossa subsistência. Porém, toda vez que sobrava uns trocados, meu pai aproveitava para comprar um livro de Literatura de Cordel.
Quando via o livrinho, eu me preparava para o ritual que tanto me embevecia: primeiro, acompanhava a leitura do livro feita pelo meu pai. Ele lia em voz alta, com a sua voz grave e imponente de homem da roça. Eu ouvia encantada, encostada em um canto, a história lida. Meu pai, absorvido pela leitura, quase nunca se atentava da minha presença. E eu não queria mesmo me fazer notar para não quebrar o encanto. Depois da leitura paterna, era o momento da minha mãe, Luciene, ler o livro. Não necessariamente no mesmo dia, mas era sempre assim: primeiro o meu pai lia, depois a minha mãe. Eu, menina curiosa e inebriada pelas palavras, acompanhava ainda mais encantada a leitura feita por minha mãe. Ela lia com uma voz doce e mansa. Lia com expressividade e ritmo. Era uma atriz “performando” para a sua única espectadora, que a olhava com olhos cheios de alumbramento. Acredito que o meu encanto pelas palavras, meu amor pela literatura e, mais tarde, a decisão de fazer o curso de Letras, em alguma medida, foram influenciadas por essa fascinação que os versos de cordel, ainda na minha meninice, provocaram em mim.
Esse alumbramento, que a poesia de cordel me provocou, veio à tona, mais uma vez, quando li a obra A palavra em preto e branco, cuidadosamente lapidada pela talentosa poetisa Lílian Paula Serra e Deus. Nesses versos em preto e branco, moldados com destreza pela autora iniciante, há um pacto com a verdade, um chamado ao cultivo dos bons sentimentos e pela preservação das coisas bonitas. As palavras de Lílian Paula ecoam pela construção de um mundo melhor. Nesse mundo, que a autora nos convida a construir, não é permitido fazer a indigesta dieta de engolir sapos. A fim de se derrotar a hipocrisia é preciso dizer a verdade, por mais dolorosa que ela seja. Em um mundo em que a verdade prevalece, não é preciso escolher entre um lado ou outro do rio. E quando nos vimos divididos entre dois caminhos, eis que surge uma terceira via: a poesia.
Entre Deus e o Diabo, Rosa.
Entre Eva e Darwin, o mundo.
Entre pedra e caminho, Drummond.
Entre profano e sagrado, Adélia.
Entre texto e teoria, poesia.
O fazer literário de Lílian Paula Serra e Deus está contaminado pela prosa e poesia de escritores/as brasileiros/as, que vão sendo referenciados em um verso aqui, outra acolá. Nos poemas de A palavra em preto e branco, junto à voz de Lílian Paula, ouvimos o eco de muitas outras vozes: Guimarães Rosa, Adélia Prado, Mário de Andrade, Paulo Leminski, Elisa Lucinda. Nos versos dessa jovem escritora mineira há uma dose de Quintana, talvez um Manoel de Barros, ou, quem sabe, um Manuel Bandeira. Entre essas tantas vozes, uma ressoa: Carlos Drummond de Andrade. No poema “Lírio”, percebemos essa influência de Drummond na produção da poetisa:
Quando nasci, um pai, desses que profetizam o destino dos filhos, disse:
– Vai, Lílian! ser lírio na vida.
Certidão de batismo, registrada em cartório:
– Vai, Lílian, ser lírio na vida!
Não sei se bom ou ruim,
Não sei se pétalas demais ou de menos,
O que sei é que quem nasce com vocação para lírio, não tem
espinhos para se defender do veneno que se esconde atrás do
perfume de alguma outra flor.
A relação amorosa e todos os conflitos que a envolvem é um tema recorrente nos poemas de A palavra em preto e branco. No poema “Amor de Silicone”, o eu lírico feminino deseja ser a única mulher na vida de “seu homem”. Os olhos de seu companheiro se desviam para outros corpos, outros lábios, outros seios. A voz poética sente-se desprezada. Sente-se como um “copo descartável quando o sonho era de, no mínimo, ser taça de cristal”. Se em “Amor de Silicone”, o eu lírico feminino é representado como uma mulher frágil, insegura, dependente, em muitos outros poemas do livro, a voz poética é de uma mulher transgressora, insubmissa, uma mulher que se recusa a seguir as imposições do patriarcado e as normas determinadas pelo status quo. Podemos ouvir essa voz insubmissa do sujeito poético feminino nos versos de “Carteira assinada”:
Meu lugar nunca foi esse.
Prefiro comigo-ninguém-pode às rosas, que
pra mim cheiram vermelho demais.
Nasci pra dormir quando os olhos fecharem.
Sentir quando a fome vier.
[...]
Me deixe cuspir.
Cuspir nessa vida metrificada que
mensalmente insiste em me engaiolar.
Suma com seus relógios porque eu não nasci para ponteiros.
Afaste de mim essa vida carteira assinada.
Porque hoje eu decido o quão livres os meus
versos devem ser.
Lílian revela em seus poemas as muitas facetas do feminino. Em seus versos, ela representa mulheres que não aceitam amarras, buscando viver livremente. Representa mulheres que não querem se casar e/ou ser mãe e também mulheres que querem o casamento e a maternidade, desde que isso seja uma escolha, não uma imposição. A maternidade é um tema recorrente nesses versos em Preto e Branco. O sujeito lírico feminino diz da alegria de ser mãe, da beleza que é poder gerar um filho, dos aprendizados que surgem com a maternidade. Ao mesmo tempo, a voz poética fala dos desafios e cansaços que vêm com a maternidade:
Eu estou cansada do trabalho que é ser mulher,
cansada do trabalho eterno do parto,
cansada da mãe que não mais adormece em mim.
[...]
Se tivesse outra chance pra escolher entre
o gloss e o barbeador...
Eu ficaria com o batom vermelho.
Eu rezaria para os anjos.
Eu dormiria bem tarde, nos braços do pai,
pra despertar no outro dia e descobrir que
toda mãe já acorda, com a benção dos anjos,
cansada demais.
Ainda tratando da temática da maternidade, podemos destacar o poema “Mãe”. Nesse texto, a figura materna é representada como uma presença-ausente, ou seja, mesmo que a mãe não esteja presente em um plano físico, o eu lírico exalta a figura materna, dizendo do privilégio de ter sido fruto de um abençoado ventre: “Bendita sou eu entre as mulheres/ Por ter sido um fruto do vosso ventre/Amém”.
Se nos versos de Lílian Paula Serra e Deus, a figura materna é representada como uma presença-ausente, Deus, pai celestial, é onipresente, sendo referenciado em vários de seus poemas. O Deus ao qual o eu lírico se refere, em algumas circunstâncias, é tão humano quanto nós. Esse Deus nos faz lembrar o “Poema do Menino Jesus”, de Fernando Pessoa. O Menino Jesus, do poeta português, “é uma criança bonita, de riso natural. Limpa o nariz com o braço direito, chapinha nas poças d’água, colhe as flores, gosta delas, esquece”. O Deus do eu lírico de A palavra em preto e branco é negro e “come brigadeiros”.
Os poemas de Lílian Paula Serra e Deus nos fazem repensar sobre a nossa existência. A palavra em preto e branco nos faz refletir sobre as nossas fraquezas enquanto seres humanos. Convida-nos a pensar sobre o quanto somos egoístas e medíocres, o quanto tornamo-nos cegos diante das dores do/a outro/a:
– Sabe filho, a gente já explodiu o mundo duas vezes,
duas explosões mundiais: de um lado o poder, do outro a ignorância.
– E quem ganhou mamãe?
– A ignorância.
– Tsunâme é uma onda gigante que engole gente igual o lobo faz, mamãe?
– É sim.
– Então por que você diz que o lobo não é mau?
– Porque lobo não devora lobo, meu filho.
Em seus poemas, Lílian rasga o verbo e abusa dos predicados. Ela escreve palavras negras em papel branco, mas não acredita em hierarquias de branco sobre negro ou vice-versa. Ela crê em um futuro em que não precisaremos escolher entre o preto ou o branco, em que ler um livro escrito por uma mulher negra será prática rotineira. Um futuro em que indivíduos pretos e brancos sejam valorizados pelo que são e não de acordo com a quantidade de melanina que possuem na pele. “Quem sabe um dia o discurso em cores / e não mais em preto ou branco?” Os desejos de Lílian, representados em seus poemas, podem parecer utópicos demais. Mas o que seria dessa vida sem utopia?
Os poemas desse livro promoveram um reencontro comigo mesma: reencontrei a menina de minha infância, que seduzida pela literatura de cordel, aprendeu a ler sozinha, apenas para poder desfrutar daquelas histórias que tanto a seduziam. Espero que os leitores e leitoras de A palavra em preto e branco possam ser tomados/as pelo mesmo alumbramento que esses poemas provocaram em mim.
A poesia de Lílian Paula Serra e Deus surge, assim, como uma possibilidade de escape, como um oásis em meio ao deserto, a tranquilidade que se busca em meio ao tumulto da vida moderna. Lílian Paula busca, através das palavras, construir pontes que se elevam bem acima da “Superfície do Caos”, abrindo estradas e iluminando caminhos.
Depois de ser iluminada por essas palavras em preto e branco, deixo aqui um singelo convite: devorem os poemas desse livro que já nasce grande. Saboreiem cada verso e, quem sabe, a gente possa aprender: “Pra onde vai o ser humano? /Quantos já venderam a alma ao dinheiro? /E quem vai pagar pelas almas que não querem se afogar?”. Mergulhem nos versos e reversos de A palavra em preto e branco. Mergulhem sem medo. Apreciem sem moderação.
Referência
DEUS, Lílian Paula Serra e. A palavra em preto e branco. Vitória: Clock-book, 2017.
* Franciane Conceição da Silva é Mestre em Letras, Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa – UFV, Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas e professora do Curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. É organizadora do livro Literaturas africanas: narrativas, identidades, diásporas (2016).
Eu sou a Preta. Era minha madrinha, a tia Carola, uma irmã querida de minha mãe, quem me chamava assim. Ela sempre chegava com um lencinho na cabeça e uma sacola de palha cheia de novidades, que eu abria sentindo cheirinho de boneca nova, de joguinhos para brincar, de roupa bonita, de livrinhos de história com perfume de papel colorido.
— Preta, vim te buscar!
As férias traziam com ela flores que eu nunca tinha visto e montanhas onde o mundo ficava embaixo, depois das nuvens. Numa dessas vezes, esqueci minha cordinha de pular em cima de uma pedra. Ficava triste lembrando dela sem mim, sozinha. Às vezes imagino que ela está lá até hoje.
Mas o melhor de tudo eram os aniversários, quando a tia chegava para ajudar minha mãe a preparar delícias.
— Preta, olha o bolo, os pastéis, a calça-virada, a cuca e os canudinhos que fiz pra ti!
Porém, o grande amor que nascia do coração de tia Carola ficou principalmente na minha lembrança de certos dias tristes em que ela chegava com sua sacolinha de carinhos. E só ela sabia me chamar de Preta desse jeito que ficou tão doce. Olha que engraçado: quando outros diziam que eu era preta eu achava estranho.
— Eu não sou preta, eu sou marrom. Cor de doce de leite, como a canela, como o chocolate, como brigadeiro. Cor de telha, cor de terra. Eu sou assim... da cor dos olhos dos meus pais!
E fui aos poucos descobrindo que eu era a Preta marrom, uma menina negra. Ser negra, como me percebem? Ou como eu me percebo? Ou como vejo e sinto me perceberem? Tenho um amigo que só às vezes é preto. Que fica preto quando vai à praia no verão. Mas ser negro é muito mais do que ter um bronze na pele.
Como é, afinal, ser uma pessoa negra? Eu só respondo quando responderem como é que é ser uma pessoa que não é negra.
Uma vez, sentei debaixo da parreira de uva, na casa da vó Lídia. Fiquei olhando para o alto, as bolinhas cheias de suco por dentro. Eram muito saborosas (quando eu não descobria formigas entre os gomos). A vó Lídia sempre ficava por ali, arrumando suas plantinhas, enchendo o mundo com cheiro de terra molhada. Nossa conversa era ela perguntar pouco e eu responder pouquinho. Mas tinha um amor que grudava a gente, uma na outra. Lá estava ela, a vó linda com sua cor negra, cabelo branquinho, olhos serenos, mãos fortes e uma perna manca. E aí eu perguntei:
— Vó, quem inventou a cor das pessoas?
Isso eu perguntei porque havia aprendido que uns são amarelos, outros brancos e outros vermelhos. Ela disse:
— Eu só respondo se tu me disser quem inventou o nome da cor das pessoas.
E eu fiquei lá, pensando e chupando uva, e ela continuou plantando suas sementes
(Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998. p. 9, 12, 13)