Texto 6
Eu sou Stella do Patrocínio
Bem patrocinada
Estou sentada numa cadeira
Pegada numa mesa nega preta e crioula
Eu sou uma nega preta e crioula
Que a Ana me disse
(Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, p. 66).

Texto 5
Eu vim do Pronto Socorro do Rio de janeiro
Onde a alimentação era eletrochoque, injeção e
remédio
E era um banho de chuveiro, uma bandeja de
alimentação
E viagem sem eu saber para onde ia
Vim parar aqui nessa obra, nessa construção nova
(Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, p. 53).

Construção de uma auto-imagem positiva1

Consuelo Dores Silva

Apesar de não termos pretendido uma pesquisa do tipo intervenção, quatro alunos do sexo masculino e três do sexo feminino apresentavam sinais de uma possível aceitação de si mesmos, e se auto-representavam belos, em junho de 1991.

A auto-representação destes sujeitos é a seguinte:

1. Redação do sujeito M.N.:

"Meus olhos são castanhos. Meus cabelos são pretos crespos."

"Gosto de mim como eu sou não gostaria de ser diferente. Sim eu gosto de mim como eu sou se eu for feio ou bonito eu gosto de mim mesmo assim como sou. Não gosto de ser diferente."

2. Redação do sujeito K.C.:

"eu sou bonita para mim. Eu gosto de mim. Eu calço 33." ''A minha família gosta de mim como eu sou."

3. Redação do sujeito J.S.:

(...) sou bonita tenho uma pintinha na testa minha pele e lisa com cabelos gosto de mim do meu geito e como eu sou eu não gostaria de ser".

"eu gosto da minha escola da minha professora da minha colega que senta atrás de mim e dos meus colegas."

4. Redação do sujeito F.G.:

(...) Tenho 12 anos e estou na quarta série tenho 1 metro de altura calço 39-40 gosto de passear de estudar e de Brincar com menino de minha idade. "

Meus dentes são brancos e brilhantes. Meus cabelos são encaracolados. Sou escuro mais gosto muito. Sou carinhoso. Sou educado. Sou estudioso. Minha pele e grosa. Meus olhos são castanho. tenho orelha pequena. Minha boca e pequena."

"Não gostaria que mudace nada por que sou muito feliz do jeito que eu sou. Se mudace as vezes não seria feliz como eu sou."

5. Redação do sujeito E.J.:

(...) tenho uma pinta pra baixo da orelha e uma no braço."

Gosto de mim como eu sou."

6. Redação do sujeito D.M.:

"Gosto de mim como eu sou. Não tenho pé grande nem mão, tenho orelhas pequenas, me acho bonita."

7. Redação do sujeito R.J.

"eu gosto do geito que eu sou. Eu não queria mudar nada do meu corpo. Eu estou satisfeito com tudo que tem no meu corpo. Eu posso fazer o que eu quero com meu corpo com minhas pernas e os meus braços. Eu gosto de ser alto negro ter os cabelos lisos. Com meu corpo mudado eu vou sentir falta de tudo que eu tinha antes. Com o corpo mudado eu não vou poder fazer o qeu fazia antes. Com meu corpo mudado as pessoas iam notar muita coisa diferente em mim. Com meu corpo mudado as pessoas iam me achar esquisito diferente ou outra pessoa. Com o meu corpo mudado eu ia me achar estranho minha mãe não ia me conhecer. Eu gosto do meu corpo como ele é."

Os depoimentos destes entrevistados confirmam a tese de APPLE (1990) de que indivíduos de grupos étnicos não­-brancos podem construir a sua identidade, através de mecanismos de resistência.

Concluímos que treze alunos de nossa pesquisa têm de si a representação elaborada pelos vários grupos sociais: o negro como um indivíduo inferior.

Esta percepção é introjetada nos grupos étnicos dominados e eles, classificados, segundo a cor da pele, forjarão a sua identidade, tendo como espelho o grupo racial dominante; portanto, o ponto de referência será sempre o estrato branco da população.

Inferimos que os sete estudantes possuidores de uma auto-imagem que já se apresenta positiva, possivelmente, se identificam com seu grupo de origem, assumindo, consequentemente, a sua diferença, a sua alteridade. Logo, a identidade psicológica, "(. . .) é moldada de maneira muito mais decisiva pela raça do que pela classe." (BERGER, 1976, p.97).

Assim, o primeiro passo a ser dado pelo negro na descoberta de si mesmo, de sua identidade, é a busca de sua imagem refletida nos sujeitos de seu grupo, reconhecendo-os, primeiramente, como seus iguais.

O segundo passo é, como já dissemos anteriormente, o negro conscientizar-se de seu valor, através da crítica à sua representação social. Em seguida, este negro deve ocupar, de fato, o lugar que lhe pertence por direito na sociedade: o lugar de um sujeito histórico que se constrói passo a passo, a cada dia.


Nota

1. Originalmente publicado na obra Negro, qual o seu nome? (1995).

Referência

SILVA, Consuelo Dores. Negro, qual o seu nome? Belo Horizonte: Mazza, 1995.


 

 

O elefantinho da tromba caída (fragmentos)

Consuelo Dores Silva

Um elefantinho nasceu numa floresta muito longe daqui, num país chamado Quênia, no continente africano, e os animais que lá moravem lhe deram um nome esquisito: Tromba Caída (p.3).

Mamãe-elefanta se acasalou mais velha e não teve outros filhos. Por isso, ficou muito contente com o nascimento de seu bebê, mas vivia muito preocupada com a saúde dele: Tromba Caída era diferente das outras crias de elefante. Imaginem vocês que ele não levantava a tromba. Os elefantinhos do grupo caçoavam dele e não o aceitavam em suas brincadeiras. Por isso, ele se escondia pelos cantos da floresta e sua avó o consolava; dizia-lhe para não se incomodar com as gozações daqueles elefantinhos bobos. (p. 5).

O outo chegou e, com ele, veio a seca. Um grupo de elefantes atravessou savanas (terrenos sem mata, mas com árvores esparsas), à procura de água e comida, e só encontrou capim seco e filetes d’água pelo caminho.

Os dias se passaram e, finalmente, eles encontraram um lugar cheio de árvores: era o Parque Tsavo, uma grande área verde, cheia de animais e aves e, durante algum tempo, comeram muitas folhas novas. Depois, andaram um pouco e ouviram o barulho de um rio. Logo avistaram ave que bebiam água. (p. 9)

A manada, morta de sede, correu para chegar logo às margens do rio. A vovó-elefanta correu também, mas seus cascos estavam feridos de tanto andar pela savana e ela caiu. (p. 11)

Tromba Caída se desesperou ao vê-la tentando se levantar do chão. De que jeito ele a ajudaria, se não tinha forças na tromba? O elefantinho envergonhou-se por ser tão fraco, mas logo se lembrou das gozações de sua manada e sentiu uma raiva imensa. Em seguida, uma coisa extraordinária aconteceu: a sua tromba se enroscou no corpo da vovó-elefanta, levantando-a. Quanto mais o elefantinho se lembrava dos risos de deboche de seus colegas, mais força ele sentia na tromba. (p. 13)

Decerto seus antepassados, lá do céu dos animais, imaginaram que o elefantinho merecia uma ajuda e lhe mandaram energia, que o tornou forte, ajudando-o a levantar a tromba.

Os pais de Tromba Caída se surpreenderam, ao vê-lo ajudando a avó. Durante anos, os dois desejaram que ele fosse igual aos outros elefantes, mas perderam a esperança: seu filho jamais suspenderia a tromba como os paquidermes normais; no entanto, a partir daquele dia, os machos daquele grupo o tratariam de forma respeitosa. O elefantinho também possuía força na tromba como seus colegas de manada. (p. 15)

Conta a lenda que o deus dos animais queria povoar o céu com muitos elefantes, porque eles são animais amorosos com suas crias e ajudam os mais velhos e mais fracos da manada. São, portanto, bons exemplos de solidariedade para os homens e, por isso, mereciam flutuar sobre a Terra, acima dos outros animais. Assim, ele ordenou aos elefantes que, depois de mortos, fossem para o céu transformados em pequenas estrelas, e todos lhe obedeceram (p. 37).

Por isso, se você olhar o céu, à noite, verá luzes brilhantes piscando e correndo entre as nuvens: elas são os espíritos dos elefantes que, lá de cima, protegem os animais das florestas africanas. (p. 39)

 

Nota

1. Originalmente publicado na obra O elefantinho da tromba caída. (2008).

Referência

SILVA, Consuelo Dores. O elefantinho da tromba caída. Ilustrações de Marcial Ávila. Belo Horizonte: Mazza, 2008.

 

 

Apelido: o nome da inferioridade1

 

Consuelo Dores Silva

eu,

Pássaro - preto

cicatrizo

queimaduras deferro em brasa,

fecho corpo de escravofugido

e

monto guarda

na porta dos quilombos.

 

Adão Ventura

O homem e a linguagem

Na sociedade brasileira, os grupos étnicos dominados (negros e índios) encontram-se numa posição de desigualdade tanto econômica como racial perante o grupo dominante, e estas desigualdades trazem sérias conseqüências às relações interétnicas. Partindo para o universo de nossa investigação, pudemos notar que, na escola onde realizamos nosso trabalho, existe hostilidade entre alunos negros e brancos em decorrência da discriminação racial. Pelas nossas observações, parece-nos coerente afirmar que a linguagem é usada pelas crianças do grupo étnico economicamente dominante, para discriminar àquelas racialmente diferenciadas.

A linguagem humana pode possuir vanos significados. Ela difere da linguagem animal porque o homem possui a capacidade mental de reter estes significados e atribuir-lhes diferentes interpretações, conforme o contexto da fala. Isto quer dizer que o discurso não é vazio, mas cheio de sentido. Este sentido está diretamente ligado à subjetividade, ou seja, às emoções, aos sentimentos, à história dos homens, etc. A partir disto, podemos compreender porque certas palavras dirigidas a nós podem nos ofender e magoar profundamente ou, em contraponto, demonstrar a atratividade que exercemos sobre outros sujeitos.

O homem, porque possui linguagem, é capaz de socializar-se, isto é, de conviver com outros homens. A partir dos seis anos, ele já possui uma linguagem orientada para a vida em sociedade, dando significado às coisas; portanto, através do processo de comunicação, ele compreende e é compreendido pelo outro. Conseqüentemente, o homem elabora a sua visão de mundo e de sua classe social. Esta absorção de mundo leva a criança, quando se torna adulta, à adoção de determinados papéis na estrutura social.

Podemos perceber, a partir dos pressupostos citados, o quanto pode ser prejudicial à construção da identidade, um processo de comunicação em que as mensagens verbais expressem o domínio de uma pessoa sobre a outra. O apelido é um contexto de fala em que ocorre este tipo de relação. Neste capítulo, iremos analisar os efeitos dos apelidos atribuídos às crianças negras por seus colegas no teatro de nossa pesquisa, a escola, e as conseqüências decorrentes na construção de sua identidade.

Nota

1Originalmente publicado na obra Negro, qual o seu nome? (1995).

Referência

SILVA, Consuelo Dores. Negro, qual o seu nome? Belo Horizonte: Mazza, 1995