O parto infinito das palavras: as mães de A Filha Primitiva
Carolina de Vasconcelos Silva*
A filha primitiva é o romance de estreia da escritora cearense Vanessa Passos. Ganhador do VI Prêmio Kindle de Literatura, em 2021, o livro foi publicado pela editora José Olympio em 2022. Curta e potente, a história, contada em 176 páginas, inquieta o leitor e desvela uma sequência de violências sistêmicas, naturalizadas pelo patriarcado, que atingem não só as personagens ficcionais, mas transborda para a realidade e vitimiza mulheres sem rosto e sem voz, em uma dinâmica que remonta as lições de Calvino (2005) acerca da mimese. Segundo o escritor italiano, “escrevemos para que o mundo não escrito possa exprimir-se por meio de nós” (p. 114).
O romance, porém, não aborda somente o ciclo de violência e abandono a que as mulheres estão historicamente sujeitas. A história vai além e suscita a reflexão sobre o racismo que recai sobre, inclusive, pessoas do mesmo gênero, atribuindo, a essas, tratamentos diferenciados em situações análogas, como, por exemplo, o acesso aos direitos reprodutivos e ao parto humanizado. Tal discrepância é pontuada na passagem do texto em que a narradora conta sua experiência no momento do parto comparando o hospital com um matadouro.
No corredor, ouvi os gritos das que pariam. A irmã da vizinha tinha me dito pra não esquecer que enfermeira não gosta de grávida escandalosa. Ouviu? Perguntou enquanto apertava a minha mão. Fiz que sim com a cabeça. De bico calado. Não precisei ficar no matadouro, na sala cheia de macas e mulheres berrando uma ao lado da outra antes do abate. Sofri sozinha lá em cima, um calor medonho. Tinha bola gigante, aparelho de exercício, equipamento de parto humanizado. Eu não me sentia humana. (p. 24).
Se fecho os olhos, ainda escuto os gritos das mulheres parindo no hospital. Tive de entrar sozinha, minha mãe ficou na recepção. A enfermeira me disse que o pai era pra ficar lá fora, procedimento dos hospitais públicos, a proibição de homens nos espaços juntos das outras grávidas. Respondi que a menina não tinha pai, com o intuito de comovê-la, mas ela me tratou como uma puta que dava para qualquer um, por isso a menina não tinha pai e eu não devia nem saber de quem era a criança. As enfermeiras não têm pena da gente. Talvez porque nunca tenham parido na vida ou porque já tenham visto partos demais. (p. 11).
A maternidade é o elo que permite o desenvolvimento da história. É por meio da relação avó, mãe e filha que o leitor consegue acessar temas como a ausência da ancestralidade, e, portanto, a própria negação a um direito da personalidade. A construção de quem somos, da nossa história e da nossa afirmação como indivíduo perpassa o conhecimento de nossos ancestrais, o que é negado à narradora. A partir de diálogos duros e relatos de memória que expõem a narradora, sua raiva e dor, a aura romantizada da maternidade é desconstruída e é possível alcançar outras camadas subjacentes ao papel de mãe.
Vanessa Passos é habilidosa com as palavras e com a estrutura narrativa de seu romance. Doutora em Literatura pela Universidade Federal do Ceará, PhD em Escrita Criativa pela PUC-RS, Vanessa também é colunista do jornal O Povo e do portal Publishnews, além de ser idealizadora do Programa de Formação de Escritores, do Curso 321escreva e do Método Mais Vendidos. O vasto currículo e a experiência com a escrita talvez expliquem seu domínio da linguagem, porém é sua vivência como mulher que se descobriu negra em um país racista após a idade adulta que atravessa sua produção literária e coloca em evidência temas raciais, sociais e de gênero, com propriedade e densidade necessárias.
Narrado por uma mulher que acaba de se tornar mãe, A filha primitiva, reúne três gerações: a mãe narradora, a avó e a criança. O sentimento de não-pertencimento à uma linhagem familiar, ao mundo, motivado pela falta de informações sobre seu berço biológico e ancestral surge na infância da narradora ao constatar, durante uma tarefa escolar, a ausência de uma árvore genealógica que invoque a sua ancestralidade. O desconhecimento da identidade de seu pai alimenta o seu ódio e revolta em relação à mãe, que se nega a revelar sua origem paterna. Essa lacuna é marcada pela omissão do nome das personagens, uma sinalização sutil que carrega a representação do apagamento e do silenciamento dessas mulheres. O que não se nomeia, não existe.
O esforço da narradora em priorizar a educação e a formação acadêmica, ao contrário do que pensava a sua mãe, não garantiu um caminho diferente do vivido por sua genitora. Ainda que sua mãe fosse analfabeta e doméstica, enquanto a narradora fosse professora e mestranda, ambas se tornaram mães sem escolha, sem parceiro, após uma relação de opressão e abuso.
A repetição, pela narradora, do ciclo de abandono e violência vivido por sua mãe evidencia o destino a que muitas (senão todas) mulheres estão sujeitas. Se o acesso à educação não foi suficiente para manter a narradora longe dos abusos, conclui-se que outros elementos contribuíram para isso, como a marca racial e o status social. Mais uma vez constata-se que as distinções entre pessoas do mesmo gênero passam pelos mesmos critérios que estruturam a sociedade capitalista e patriarcal. Desse modo, observa-se que, tal como Sueli Carneiro (2003) alerta, não se pode ter uma ideia universalizante da mulher. Afirma Sueli Carneiro (2003, p 118):
Em conformidade com outros movimentos sociais progressistas da sociedade brasileira, o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres. A consequência disso foi a incapacidade de reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão além do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade.
O romance está centrado na vida da jovem narradora que desconhece a identidade do pai e que, assim como a mãe, dá à luz a uma criança após um breve relacionamento e vê o parceiro desaparecer tão logo toma conhecimento da gravidez. Tanto a relação dessa jovem mãe com a criança, quanto dela com a sua própria mãe, é marcada por amargura e raiva. Tanto a mãe quanto a narradora são vítimas de abusos e abandonos ainda na infância. A mãe, negra, é abandonada pelos pais e adotada por uma família branca que lhe impõe o trabalho doméstico logo cedo, uma prática comum no Brasil de poucos anos atrás; já a filha, desde muito criança, sofre abusos que maculam a sua infância. É a raiva que alimenta a história e move a narradora, criando um clima que envolve o leitor em uma teia dialética entre a empatia e o julgamento.
Diversamente do que é esperado, ao se tornar mãe, a narradora não cria automaticamente um amor incondicional e instintivo pela criança. Suas ações contra a criança são censuráveis e colocam o leitor em uma posição de revolta e tensão. Além da ausência do pai, o bebê lida com a ausência de afeto de uma mãe que está presente, ela mesma sobrevivendo aos desamores da vida e às profundas mágoas. Não há abnegação dessa mãe. O ódio que atravessa a narrativa e a própria relação mãe e filha é potente durante todo o texto e chega ao ápice em algumas passagens como, por exemplo, quando a narradora fala sobre a sua experiência de se tornar mãe, ela afirma: “Não foi o parto, não; não foi a contração, não; não foi dar o peito, não; foi a raiva que me tornou mãe” (p. 77).
A escrita é o movimento catártico que a narradora encontra para organizar seu mundo interior, é através do ato de escrever que essa mulher se expressa ao mundo, analisa sua existência, ressignifica sua história. A escrita e a experiência materna caminham juntas, como se criança e palavras pudessem ser paridas com a mesma dor e sacrifício. É pela escrita que somos capazes de conhecer essa mãe que ainda experimenta encontrar-se como filha, alguém que procura uma história inexistente, filha de um pai que desconhece, de avós que abandonaram sua mãe. É também pela escrita que a aproximação dela com a criança acontece, enquanto ela nutre a filha com a amamentação - único gesto de afeto entre as duas - a criança a alimenta com palavras.
O percurso de dor e angústia que se inicia no primeiro capítulo do livro transforma-se em esperança e redenção alinhavadas pelas tramas das palavras paridas pela narradora, um grito seu, da sua mãe e das mulheres marcadas pelo desamparo e pelo desamor.
Em A filha primitiva, Vanessa Passos aborda a maternidade sob um viés pouco explorado, revelando ao leitor uma experiência que nem sempre retrata uma escolha, mas, ao revés, reflete uma imposição violenta à mulher. Violência e racismo se entrecruzam nesse romance contemporâneo que denuncia e exibe o retrato de uma sociedade que muitas vezes ficou encoberta nas representações literárias tradicionais.
Belo Horizonte, 19 de fevereiro de 2024.
Referências
CALVINO, Ítalo. Mundo escrito e mundo não escrito. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117-132, 2003.
PASSOS, Vanessa. A filha primitiva. São Paulo: José Olympio, 2022.
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* Carolina de Vasconcelos Silva é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do CEFET-MG