Da solidão humana ao sofrimento sistêmico:

os complexos familiares no romance O escravo, de Carolina Maria de Jesus


 

Lara Carvalho Cipriano*

Quando recordamos algo, pareçe que estamos ressuscitando o impossível.”

(Carolina Maria de Jesus).

 

 

Ao contrário do que o título pode induzir a pensar, O escravo de Carolina Maria de Jesus, não é um livro que diz respeito ao nefasto período da escravização institucional no Brasil. Na verdade, a subordinação a que se refere esse título é aquela relativa a uma dimensão subjetiva que a condição psíquica de Renato, protagonista do até então inédito romance de Carolina, dá a ver. Nas palavras de Denise Carrascosa, que prefaciou o livro, "Carolina cria conexões ontológicas entre estados de liberdade e escravidão humana à cegueira dos desejos rasos." (p.19)

O início da narrativa faz menção ao arquétipo dos dois irmãos que seguem caminhos diferentes na vida. Roberto, cujo casamento com Maria Emília representa uma ascensão econômica, e Raul, cujo casamento com Helena não tem essa acepção. A personagem de Maria Emília, sendo uma mulher rica, é retratada como uma outsider em relação à família nuclear do seu marido, assumindo posições destoantes em relação aos demais personagens. A escolha de Roberto por esse casamento também divide opiniões na família: "pareçe que ele esqueçeu a sua origem humilde. A casa paterna, é a casa matriz. A casa que não deve ser olvidada pelo filho." (p.38).

Do casamento de Roberto e Maria Emília, nasce Renato. E do casamento de Raul e Helena, nasce Rosa. A partir de então, a narrativa é construída em função do romance entre Rosa e Renato, interditado por Maria Emília com justificativa que perpassa não o laço sanguíneo do casal de primos – questionamento esse que diz respeito aos costumes da nossa época – mas sim o seu desejo de que o seu filho se casasse com uma mulher rica. Em função disso, ela induz Renato a casar-se com a pianista Marina. É curioso que Rosa sonha em ser pianista, o que ela, sendo pobre, não consegue concretizar, fazendo da costura o seu ofício.

Renato se casa com Marina, satisfazendo os caprichos da mãe e pondo o seu desejo em segundo plano. É essa heteronomia de Renato que faz com que ele seja o escravo a que se refere o título, uma vez que ele não consegue se ver livre para fazer as suas escolhas. Com isso, Carolina nos faz pensar que nem aqueles que são da sala de visita, ou seja, os ricos, são totalmente livres. Nas palavras dela, "somos escravos de tudo que desêjamos possuir. Ninguém é livre neste mundo. Há diversas espécies de escravidôes." (p.178).

Depois do casamento de Renato, Rosa casa-se com Joel, com quem teve vários filhos. Com isso, Carolina, opondo-se ao amor romântico, constrói uma narrativa em que o casamento não representa um final feliz, como se fosse uma união resultante do sentimento genuíno entre duas pessoas, mas perpassa, sobretudo, condicionamentos sociais e econômicos.

Somada à frustração de Renato por não ter se casado com Rosa, Marina não era capaz de ter filhos, frustrando também a sua expectativa de ser pai. Assim, tendo o seu desejo tolhido pela sua mãe, Renato adoece e é institucionalizado, permanecendo por mais de dois anos em um manicômio. Um dos sintomas da sua loucura é a mania de picar papéis, com a explicação de que "o papel inteiro representa o sonho que eu idealizei (...) e ele picadinho, é o meu sonho disfêito" (p.121). Nesse ponto, Denise Carrascosa destaca que o olhar narrativo de Carolina flagra a solidão humana não só nos internamentos manicomiais como também nos "palácios residenciais vazios de diálogo e ricos em monólogos" (p.19).

Pensando o enredo do ponto de vista sistêmico, o sofrimento psíquico de Renato implica em um sofrimento generalizado que atinge vários outros membros da família. Nesse contexto, Maria Emília afirma que "eu reconheço tardiamente que a mâe não pode ser intermediária nas predileções dos filhos" (p.104). Com isso, Carolina nos faz questionar em que medida é papel da mãe interferir nas escolhas dos filhos, colocando em discussão um ideal de maternidade: "uma bôa mãe, é uma estrela no lar. É um farol de ouro, a guiar os passos dos seus entes queridos." (p.32) Passagens como essa, geniosas, grandiloquentes e com intenção moralizante, são próprias do estilo da autora.

Concomitantemente ao arrependimento de Maria Emília, Joel, marido de Rosa, morre em decorrência de um acidente e, ao mesmo tempo, Renato está em vias de receber alta e considerando se divorciar, o que nos faz criar a expectativa de que Rosa e Renato enfim ficariam juntos. Mas, longe de oferecer um final conciliatório, o livro termina de forma inconclusiva, dando a quem lê espaço para imaginar.

Diferentemente do ritmo de um diário, gênero que se caracteriza pelo tempo curto entre um texto e outro, a impressão de leitura ao ler O escravo é a de que muito tempo transcorre em poucas páginas. Por exemplo, quando a narrativa se inicia, Helena, mãe de Rosa, é ainda uma menina, lidando com a morte da sua mãe e encarregada de ajudar o pai cuidando dos seus irmãos mais novos. E, um pouco adiante, ela já se casa e a sua filha, Rosa, que é fruto desse casamento, também já está prestes a se casar. Isso aponta tanto para a possibilidade de esse romance estar incompleto, possibilidade essa que o conselho editorial reconhece, admitindo que "é possível que se encontre, no futuro, mais material correspondente ao projeto ficcional de O escravo" (p.8), quanto pode ser tão somente uma questão de estilo.

Em todo caso, é importante lembrar que, embora Carolina tenha se tornado célebre pelos seus diários, em especial Quarto de despejo, mas também Casa de alvenaria, a autora transitou por diversos gêneros. Essa lembrança não só é uma medida contra a espetacularização da pobreza, ou seja, contrária a uma "visão extrativista" que visa apenas "parasitar" a miséria alheia, como também é uma medida antirracista. Já que, uma das características do racismo é reduzir as produções culturais negras à questões sociais e identitárias, desconsiderando o aspecto estético dessas produções – como se a literatura escrita por autores brancos, escondida pela rubrica de "literatura universal", fosse autônoma e desinteressada, ou seja, fosse de interesse estritamente estético e também não fosse passível de ser lida sob o prisma de um recorte social, identitário e político. Os diários de Carolina, por serem "não-ficção", suscitam essa reflexão, uma vez que a crítica literária hegemônica, em sua miopia, abordou a sua obra principalmente a partir de um interesse documental e antropológico, negligenciando um interesse artístico.

No seu LP, também chamado Quarto de despejo, que foi recentemente regravado por iniciativa de Sthe Araújo junto ao Selo Sesc, Carolina mostra sua face cantora e compositora. Em Clíris (Antologia Pessoal), Carolina se afirma como poeta, apesar de que em todas as suas obras, seu caráter poético é evidente. Por fim, em O escravo, Carolina mostra seu lado romancista e ficcionista – uma vez que, conforme já exposto, esse livro retrata um dilema próprio de famílias abastadas, situação que não é a da vivência dela – por isso, o lançamento desse livro representa um grande acontecimento para o mercado editorial brasileiro. Desse modo, Carolina explorou diferentes suportes, revelando-se uma multiartista que, além de ser incontornável para quem busca fruição literária ou para quem procura compreender o Brasil, demonstra que estética e política são inseparáveis.

 

Belo Horizonte, fevereiro de 2024.

 

Referência

JESUS, Carolina Maria de. O escravo. Companhia das Letras: São Paulo, 2023.

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*Lara Carvalho Cipriano é mestranda em Filosofia na UFMG, onde também se graduou em Filosofia. Na linha de estética, pesquisa os diálogos possíveis entre Vilém Flusser e os estudos descoloniais. Além disso, é graduada em Psicologia na PUC-MG e é integrante do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da Faculdade de Letras da UFMG e do literafro – Portal da literatura afro-brasileira, desta mesma Instituição.