Ácaros e Culpas

Eu descobri entre ácaros e culpas
Que não sorrio há muitos rios e embarcações.
O meu nome ficou entre o limo das pedras
E você seguiu sem mim em diáspora sem par.
Cavando velhos fósseis entre as lembranças
Dos remorsos que carcomem a seiva dos sobreviventes.
Deixando a herança inflada dos cansanções
E a ira das ressacas deixadas pelos olhos de Capitu.

Você seguiu mascando urtigas no meu velório.

E eu, como esta máquina de datilografia,
Estou entregue, há anos, ao desamor
Das coisas apropriadas ao Abandono.

O meu sol, consolo não tem!
Nem manchas vermelhas sobre a pele,
Nem resfriamentos no inverno da carne,
Nem meras subjetividades de palavras vazias.

(Alforrias, p. 21)

Jardim

Arrasto o tempo nesse objeto rito, amor palerma.
Enquanto tu, fóssil extremado, recuperas eras perdidas,
Beijando outras salivas menos minha, pois se doutra boca.
Menos abjeta, menos pútrida, menos amanhecida tua,
Desde os primórdios edênicos do paraíso,
Latifúndio primeiro, perdido,
Tomado sem leis mais severas,
Senão às do Senhor do tal feudo.
Alcanças as alianças engolidas entre raízes?
E o que me dizes dos véus urbanos das moçoilas
Doidas por furtos de homens alheios?
E os meus meios moles, arrepiando fundos brejeiros,
Aliciando gotas de solidão cáustica?
Oh! Meu Fausto amado!
Leva-me de mãe morta e imprime esquecimento de veias
Nesse meu raciocínio de inocência fingida.
Sou e serei sempre a tua Guida.
Vê que sonho com rezas e deixo a ti o insólito,
Os rituais do medo, dos segredos do verbo.
Deixo a ti, como se possível fosse, meu arrebatamento,
Minha inconstância, minha ambição.
Deixo a ti o querer ser Deus e Diabo.
Abandono, réptil humano e amado,
O meu sol de estrela escriba,
Para ofertar-te as minhas partes,
Meu mundo avesso ao vulgar das gentes, às reuniões sociais.
Abandono a ti, inclemente monstro,
Meu mênstruo de vinhas negras,
Minha falácia de sofista acesa, de tantas verdades não ditas.
Acreditas, acaso, que te amo sem temor nem perdas?
Acreditas na maldita sina-serpente
Que faz de mim
Um arrastar eterno de sonhos e dores?
Bebo dos tais cristais fellinianos,
E vou na nave idílica dos homeros homens de barro,
Lá vou eu, na nave, persona negra de perfil robusto,
Busto empinado, dona do meu desejo,
Inda que doado aos deuses abutres,
Inda que domado por chicotes de cabras machos,
Inda que cedido,
Inda que cansado,
Inda que trêmulo,
Inda assim:
Dona do meu desejo, dona do meu desejo.
Dona de minhas asas.

(Tratado das veias, p. 54-5)

 

Livro

Lanço-te, marujo!
Urge o arremesso do desbravamento,
O amansar da fúria contida nos dicionários.
Estende o teu olhar pras gentes e vê o que querem.
Vê o paladar apurado do povo,
Agita os braços ante o infante de leituras.
Dou-te todo o meu mar salgado,
Minhas mulheres que choram e riem alto,
Minhas noivas dispostas ao divórcio das prendas,
Arquétipos da minha avó cabocla.
Vai, marujo!
Arrisca teu perfil às tintas, ao incesto das editoras,
Aos naufrágios à beira da porta,
Aos críticos que rasgarão teu ofício de dias.
Vai, portuoso!
Beija na boca todas as mulheres que querem teu beijo,
Todos os homens dispostos ao risco,
Abre teu pórtico de páginas aos servos, aos escravos,
Aos que vivem sob vigências de feudos modernos.
Vai, marujo! Gruda nas casas novo ato de liberdade,
Conspira com os nossos,
E toma da noite sua embriaguez,
Sua inspirada subversão de Musa.
Vai, marujo!
Lança-te ao Mar com tudo que nele há
De Pessoa, de Neruda, de Carlos, de Adélia,
De Cora, de Bandeira, de Clarice, de Lorca.
Vai! E afoga meus navios velhos, viola minhas certezas,
Viola minhas mentiras, meus fingimentos de Poeta,
Viola minha caixa de Pandora,
Meu anonimato, meu suicídio diário,
Minha textura de negra, minha candura de puta.
Vai! Antes que eu me lance sem âncoras,
Pois que deixo velas, remos e medos muitos.

(Tratado das veias, p. 15)

Armada

As horas veem minha euforia insana
De quem sorri à espera de milagres.
Um antídoto digno da minha loucura,
Cura pra todos os males do meu dia,
Coisas assim.
Abandonada em folias de menina
Crescida em colo de mãe,
Deixo o desespero e o empório pra mais tarde.
O aluguel, as casas vazias, chaves pra cópias,
Tudo reservo para a eternidade vindoura, legítima.
Quem pensa que eu morro se engana:
Tenho sangue de senzalas e exalo morros,
Meu palácio é feito de arrastares, desprezo de sonhos,
Falências, cores velhas, arcaísmos de profeta lilás.
Jamais amo sempre o meu Senhor.
A paz em excesso por vezes me atormenta,
Fervo as veias em pensamentos,
Cozo desejos num tacho grande de caruru.
Minha casa é feita de renda inglesa e avencas,
O homem que amo me acha boa, bonita,
E sabe que sou Poeta, arrebanhada entre os malditos,
Escassa de verbas,
E aventurada de poesia.
Os verbos rondam o meu chão como estrelas.

(Tratado das veias, p. 27)

Cheirinho de neném

O quarto não seria só dela, a mãe e o pai também não. Teria mais uma festa de aniversário, mais uma escova de dentes no banheiro, mais um copinho perto do filtro.

Estava tão feliz que queria aprender a música de ninar que seu pai cantava pra ela:

“A lua girou, girou, traçou no céu um

Compasso... Eu bem queria fazer um

Travesseiro dos seus braços.”

[...]

Um cheirinho de alecrim do campo, cheirinho de chuva na terra, cheirinho de açúcar caramelado. Ai, que cheirinho de neném!

(Cheirinho de neném, s/n)