Carne de mulher

Nua em frente ao espelho
Me olho
Me observo
Me vejo
E me sinto mulher.

Nas ruas é bem diferente.
Mesmo vestida
Me olham
Me observam
Me vee
Como pedaço de carne.

Quanto vale ou é por quilo?
Carne de primeira, de segunda
Carne de mulher?
Carne de vaca?
Seria eu uma vaca?

Cadê a mulher que eu era quando saí de casa?

Não! Não aceito! Me recuso!
Eu não sou a carne mais barata do mercado.
A carne mais barata do mercado não é a mulher negra!

                                                                 (Terra fértil, p. 54)

 

Texto das autoras.

Reféns da metrópole

Não me espere
Devo chegar atrasada
Como tantas outras vezes.

Este que insiste em me acordar
Finge controlar o tempo
Mas não passa de um objeto amorfo
Ponteiros em busca de uma identidade.

O sol adentra a janela
Vivaz como nunca
Impondo obrigações a alguns
Criando possibilidades para outros.

Buzinas, sirenes, faróis
Compõem a poética da manhã
Nada mais que remeta
Ao baixo meretrício da noite passada.

Tijolo com tijolo, cimento e tráfego
Chico Buarque deve ter passado
Na contramão aqui por São Paulo.

Eu que a esta hora
Sou moradora do silêncio
Ando pela casa falando com os olhos
Improvisando vontades pra seguir.

Não me espere
Devo chegar atrasada
Mais uma vez.

Fico a olhar as pessoas no trem
Fones de ouvido e mudez
Por que não cantam?
Por que não cantam?!
Deve ser porque não escutam
Bezerra da Silva
Deve ser...

Fico a olhar as pessoas nas ruas
Também devem estar atrasadas
Apostam corrida com seres imaginários
Que diariamente as acompanham.

Desce do trem.
Sobe as escadas.
Sinal vermelho.
Atravessa fora da faixa.
Corre até o ponto de ônibus.
Motorista passa direto.

Não há sorriso.

O relógio finge controlar o tempo.
Na cidade, cada um finge controlar a si mesmo.

                                                   (Terra fértil, p. 42)

 

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Identidade

Cansei de ser uma foto 3x4
Acompanhada por uma sequência de dígitos.

Cansei de ser número
No RG, CPF, Título de Eleitor
Passaporte, Carteira de Trabalho.
A burocracia nunca me enxerga como gente.

 
Eles não sabem da cor azul
Que fui a Bahia e vi Dona Canô na festa de Reis
Que choro quando leio a Cor Púrpura
Nem que passo as tardes ouvindo Benito de Paula.

Cansei de ser número
Engrossando as estatísticas
De mãe solteira sem superior completo
De mulher negra que sofreu violência doméstica
Que agora sou parte dos 56% de classe C
Segundo a revista Exame.
Vexame.

As estatísticas não sabem, por isso não divulgam
Ando triste, confusa e ruim da memória.

E no posto de saúde.
Onde sou apenas mais um número no SUS
Não tem psicológicos para sequer uma consulta.
Desconfio que psicológicos devam atender
Apenas números inteiros e não os fracionados como eu.

Preocupa-me
No futuro, tudo ficará mais simples
Seremos como um código de barras
É só passar no leitor e pronto!
Teremos até preço
(a depender da inflação)
Um número com cifrão.

 Lamento aos burocratas
Aos analisas organizacionais
Aos pesquisadores e estatísticos
Enquanto houver brilho nos olhos
Não posso, nem quero ser só um número.

                                                 (Terra fértil, p. 18) 

 

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Rio – São Paulo

Os bancos da rodoviária
Ficam mais cenográficos
Pelas duas de manhã.
Em um completo vazio poético
Habitam ali os que já passaram
E aqueles que ainda não chegaram.

Eis que já é hora de voltar.

As ruas da Lapa tão atraentes
Com seus arcos, suas gentes
Periga fingir que saudade não sete
Mas sente…
E como sente!

O bar da cachaça
Onde a gente se perde e se acha
Se engraça e se enlaça
Até que a noite se desfaça.

O ônibus aponta na plataforma.
A rodoviária é uma plantação de sonhos
Onde alguns voltam sem fazer a colheita.

É que já não queria mais voltar.

Havia um amor de retorno
Que não lhe quis assim faceira, namoradeira.
De vê-la olhando nos olhos de outras mulheres
Só faltou morrer.
Por olhar nos olhos de outros homens
Não quis saber.
Que pena!

Lembrando do desprezo
Resolveu ficar
O ano novo a começar.
Subindo as escadas pra Santa Tereza
Curar as mágoas bebendo cerveja.

Mas um dia eu volto
Te explico tudo
E se você não entender
Tudo bem, meu bem.

Só vim pra te dize que
O Rio de Janeiro continua lindo.

                                         (Terra fértil, p. 84) 

 

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Samba jazz

Ele gosta de jazz
Frequenta cafés e lugares cult.
Já leu Morin, Bourdieu e Oswald
Fã de Glauber como Deus e o Diabo.

A Terra em Transa, transe.

De tão existencialista
Divagava horas sobre
O tal sentido da vida.

Ela não.
Só queria saber de viver.

Criada no samba
No ruído da cuíca.
Frequentava bares, biroscas, botequins.
Além das receitas dos remédios de sua mãe
Gostava de ler muros e olhos de pessoas.

Fã mesmo
Só de histórias
De Dona Biu benzedeira
Sua bisavó.

Ele, nascido e criado em SP.
Império acinzentado e sem amor
Até que se prove o contrário.

Ela, nascida e criada em SP.
Na multidão de dez milhões
Aprendeu a se aquecer.

Havia rumores de que o mundo fosse acabar.

Ele dotado de “razão” que era
Não deu a mínima.
Rumou para o centro da cidade
Para ver os Expressionistas.

Ela apressou-se
Queria se arrumar, estar bonita.
Era tempo de festejar
Um possível recomeço.

Aconteceu do salto fino de menina do samba
Trombar na camisa desbotada do cara do jazz
Na General Jardim
Assim.

Ela primeiro leu seus olhos
E no muro a escrita:
-Mais amor, por favor!

Ela não teve o que teorizar.
Diante dela sentiu-se parte
Do Cinema Novo.

Nasceu ali o samba jazz.

Agora o mundo já podia se acabar
Ou não.

                                         (Terra fértil, p. 14) 

 

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