Conceição Evaristo: literatura e identidade
Eduardo de Assis Duarte*
Elisângela Lopes Fialho**
Meu rosário é feito de contas negras e mágicas.
Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum
e falo padres-nossos, ave-marias.
Do meu rosário eu ouço longínquos batuques do meu povo
e encontro na memória mal-adormecida
as rezas do mês de maio da minha infância.
As coroações da Senhora, onde as meninas negras,
apesar do desejo de coroar a Rainha,
tinham de se contentar
em ficar ao pé do altar lançando flores.
Conceição Evaristo
“Meu Rosário”
Conceição Evaristo vem trazendo a público, desde o início dos anos 90, uma literatura que transita do poema para o conto e deste para o romance. Sua produção poética é marcada por certa diversidade temática. De início, destaca-se a presença de uma voz feminina que promove a denúncia e a reflexão, exalta a memória – afetiva ou étnica –, como instrumento capaz de constatar fatos pessoais ou histórico-sociais, e canta a religiosidade híbrida brasileira, tudo isto no intuito de inscrever textualmente a realidade social e cultural dos afro-descendentes. Essa voz se faz audível ao abordar os aspectos da vida cotidiana da mulher, com seus dilemas e angústias, diante de uma sociedade marcada pelos valores patriarcais. A temática feminina está presente na exaltação da condição de mãe e guerreira, como no poema “Eu-mulher”: “eu fêmea-matriz / Eu força-motriz / Eu-mulher / abrigo da semente / moto-contínuo do mundo” (CN 13, 1990, p. 30), como também no recalque do desejo sexual: “nos olhos o fofo e o afago / denunciam desejos, / labaredas cozinham a espera” (CN 21, 1998, p. 37). Essa voz ainda se faz presente ao abordar o tema da violência sexual, quando trata da trágica passagem de menina a mulher pela violação do corpo. Enquanto a menina – “pele, macia seda” – brincava na rua, “um barbante áspero, / másculo cerol, cruel / rompeu a tênue linha / da pipa-borboleta da menina.” Depois, dilacerada, “a menina expulsa de si / uma boneca ensanguentada / que afundou num banheiro / público qualquer”. (CN 25, 2002, p. 40). Aqui, o abuso sexual de mulheres e crianças, sobretudo negras, sai do noticiário de todos os dias para transformar-se em matéria poética: os signos “pipa” e “borboleta” remetem não apenas à leveza e inocência femininas. Estas, em vez do desabrochar natural, têm inscritas no texto a submissão ao “másculo” e “áspero” “cerol”... Ao final, resta a imagem da “boneca ensanguentada” transformada naquele rejeito sacrificial tão comum entre as classes populares. Por esta amostra, pode-se inferir uma das linhas de força da literatura de Conceição Evaristo, centrada na tensão entre lirismo e brutalidade.
A memória afetiva é tema recorrente nos versos da autora. Surge, por vezes, como volátil e passageira, como em “Fluida lembrança”, no qual a rememoração é comparada ao efeito do álcool: “no líquido do copo / entorno a sua fluida lembrança”. Após a embriaguez, o eu-lírico percebe o vazio da ausência do ser amado e conclui que este lhe escorria do pensamento “tal qual a baba indomável / que da boca do bêbado sonolento / escapa”. (CN 13, 1990, p. 34). Em outro poema, a autora compara o pensamento às ondulações do mar, e a memória ao vento que impulsiona o barco-vida: “o movimento de vaivém nas águas-lembranças dos meus marejados olhos transborda-me a vida, salgando-me o rosto e o gosto. Sou eternamente náufraga”. (CN 15, 1992, p. 17).
A vinculação entre memória, religiosidade e fazer poético será ressaltada no poema “Meu Rosário”, citado em epígrafe, que alude à coexistência da religiosidade européia com a de origem africana. Esse processo é responsável pelo despertar da memória “mal-adormecida” do eu-lírico e o faz recordar a infância e o preconceito: “as coroações da Senhora, onde as meninas negras, apesar do desejo de coroar a Rainha, tinham de se contentar em ficar ao pé do altar lançando flores”. (CN 15, 1992, p. 23). Numa outra leitura, o debulhar das contas do terço pode ser entendido como escolha cuidadosa da palavra escrita: “nas contas do meu rosário eu canto, eu grito, eu calo / [...] / Quando debulho as contas de meu rosário / eu falo de mim mesma um outro nome”. Dessa forma, a reza do terço, o rosário, aludem ao processo de produção escrita, através do qual o eu-lírico descobre a si mesmo e ao outro: “e neste andar de contas-pedras, o meu rosário se transmuda em tinta, me guia o dedo, me insinua a poesia./ E depois de macerar conta por conta o meu rosário, me acho aqui eu mesma e descubro que ainda me chamo Maria”. (Idem, p. 24)
A poesia de Conceição Evaristo enfatiza a abordagem dos dilemas identitários dos afro-descendentes em busca de afirmação numa sociedade que os exclui e, ao mesmo tempo, camufla o preconceito de cor. A descrição da dor, do sofrimento negro e da sua desesperança faz-se de modo incisivo: “os sonhos foram banhados / nas águas da miséria / e derreteram-se. / Os sonhos foram moldados / a ferro e a fogo / e tomaram a forma do nada. / os sonhos foram e foram”. (CN 13, 1990, p. 31) Para se contrapor à angústia e à falta de esperança, surge a imagem da criança, geração do novo capaz de fazer emergir os sonhos enterrados. O cotidiano de luta pela afirmação negra e pela manutenção da esperança de uma vida melhor também está presente: “todas as manhãs acoito sonhos / [...] / cavando, cavando torrões de terra, / até lá, onde homens enterraram / a esperança roubada de outros homens”. (CN 21, 1998, p. 32). A memória afro-brasileira será aguçada pela “voz-banzo âncora dos navios de nossa memória”. Dessa dor e dessa memória nascerão a força da resistência negra e a crença num tempo de realizações, pois os sonhos “ao se abrirem um a um / no varal de um novo tempo / escorrem as nossas lágrimas / fertilizando toda a terra / onde negras sementes resistem / reamanhecendo esperanças em nós”. (Idem, p. 32).
Nessa linha, os contos de Conceição Evaristo são habitados por mendigos, favelados, meninos e meninas de rua. Personagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e Natalina trazem para sua ficção o universo marginal que a sociedade tenta ocultar. São narrativas marcadas por intensa dramaticidade e conduzidas de forma a transpor para a literatura toda a tensão inerente ao cotidiano dos que estão permanentemente submetidos à violência em suas diversas modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e delegacias compõem o território urbano em que se defrontam os excluídos de todos os matizes e gradações, mas deixando nítida na mente do leitor qual a cor da pobreza brasileira. No entanto, a autora escapa das soluções fáceis, não glamouriza o morro, nem investe no realismo brutal que termina transformando a violência em mercadoria. Seus contos aliam a denúncia social a um lirismo trágico, que remete ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados como seres sensíveis, marcados não apenas pelos traumas da vida lúmpem, mas também por desejos, sonhos, lembranças.
A mesclagem de violência e sentimento, de realismo cru e ternura, além de impactar o leitor, revela o compromisso e a identificação da intelectual afro-descendente para com aqueles irmãos colocados à margem do desenvolvimento. Dessa postura surgem personagens como Di Lixão, menino de rua e filho de uma prostituta assassinada; ou Ana Davenga, favelada cujo aniversário é interrompido pelos tiros da polícia; ou Duzu-Querença, migrante desterrada e prostituída; ou ainda como a empregada Maria, linchada pelos pacatos cidadãos da metrópole globalizada após escapar de um assalto num ônibus por ser ex-mulher de um dos bandidos. A linguagem desses contos, pautada por surpreendentes irrupções de violência, distingue-se, todavia, dos procedimentos de um Rubem Fonseca, por exemplo, devido à adoção daquele ponto de vista interno que, mais tarde, Roberto Schawarz saudaria como o grande mérito de Cidade de Deus, de Paulo Lins.
Lançado em 2003, o romance Ponciá Vicêncio narra o drama dos remanescentes de escravos que, a partir de 1888, foram sendo excluídos do processo de modernização do país. Em entrevista, a autora faz seguinte comentário a respeito do conteúdo do livro: “toda a trama do livro está ancorada na memória e na história dos afro-brasileiros, que apenas reelaboro por meio de uma escrita literária. São narrativas orais que ouvi na infância e na juventude e que ainda hoje busco ouvir”. Sem a pretensão de fazer um romance histórico, a autora optou por uma estratégia narrativa ornada pelo lirismo da rememoração. Centrado na figura da protagonista, o romance brinda o leitor com instantes de alta voltagem poética, em que passado e presente, memória individual e memória coletiva se mesclam em rara elaboração criativa. Ponciá vive num mundo marcado pelas lembranças dos entes queridos e de suas vidas atribuladas: a “libertação” do 13 de maio, o desamparo e a miséria subsequentes, a continuidade da exploração, as migrações rumo aos grandes centros, a desintegração familiar, a vida nas favelas. Tudo isto surge comandado por uma espécie de memória da dor, na qual os dramas individuais remetem à grande tragédia coletiva que está na raiz dos problemas brasileiros contemporâneos.
Em Ponciá Vicêncio, a autora retoma o procedimento – que arriscaríamos chamar de brutalismo poético – ao narrar numa linguagem concisa e densa de sentido a vida de uma afro-brasileira oriunda do mundo rural, desde a infância até a “maturidade” desterritorializada na favela em que vegeta junto ao companheiro. A narrativa configura-se, conforme dissemos, como um bildusgsroman feminino e negro ao dramatizar a busca quase intemporal da protagonista, a fim de recuperar e reconstituir família, memória, identidade. No entanto, a veia antropofágica se faz presente na postura de rasurar o modelo europeu para conformá-lo às peculiaridades da matéria representada. Assim, a apropriação feita por Conceição Evaristo ganha contornos paródicos, pois em lugar da trajetória ascendente do personagem em formação, oriunda de Goethe e tantos mais, o que se tem é um percurso de perdas materiais, familiares e culturais. E, em lugar da linearidade triunfante do herói romanesco, temos uma narrativa complexa e entrecortada, a mesclar de forma tensa passado e presente, recordação e devaneio.
Descendente de escravos africanos, já de início Ponciá surge despojada do nome de família, pois o “Vicêncio” que todos os seus usam como sobrenome, provém do antigo dono da terra. Essa marca de subalternidade, que denuncia a ausência entre os remanescentes de escravos dos mínimos requisitos de cidadania, estende-se pelo penoso circuito de vazios e derrotas, no qual tanto a menina quanto a mulher vão sendo alijadas dos entes queridos e de tudo o que possa significar enraizamento identitário. E depois de perder também os sete filhos que gerou, Ponciá cai na letargia que a faz perder-se de si mesma.
O interesse da narrativa cresce justamente nos gestos de resistência a esse processo de espoliação. Nele, vão surgindo as histórias dolorosas como a do pai, que, quando criança e já no período posterior à Lei Áurea, tinha que ser o pajem do filho do patrão, o cavalo no qual este montava, e até aparar com a boca o mijo do sinhô-moço... A passagem retoma de forma ampliada e crua a cena do menino Brás Cubas de Machado de Assis, reposicionando-a num nível inédito de violência. Já o avô, sabemos depois, decepara parte do braço e matara a própria esposa depois de ver quatro de seus filhos serem vendidos em plena vigência da Lei do Ventre Livre... Essas histórias surgem desgarradas umas das outras, e vão sendo evocadas em meio aos hiatos de racionalidade da protagonista. Formam, todavia, uma rede discursiva pela qual se recupera a memória da dor quase sempre recalcada. E o corpo feito de ausências de Ponciá se recupera e se encontra na arte, reatando no barro moldado o fio da existência. Ao final, o desterro na cidade grande se ameniza no reencontro com a mãe e o irmão, que parece por fim à errância sofrida da personagem.
Herdeira da memória familiar, Ponciá Vicêncio segue os passos de Conceição Evaristo, também esta herdeira da forte linhagem memorialística (no sentido amplo da expressão) na literatura afro-brasileira. Como Maria Firmina dos Reis, Lima Barreto Carolina Maria de Jesus, Conceição traz a narrativa dos despojados da liberdade, mas não da consciência. E a repetição insistente dessa presença desvalida nos incomoda e nos diz de uma aurora ainda à espera do sol... A fala diaspórica desses condenados da terra se articula de forma sincrônica e a posteriori, desconhecendo a encarnação do espírito de nacionalidade que marca boa parte da literatura brasileira canônica, a fim desconstruir sua marcha triunfal suplementando-a com o prefixo afro.
Referências
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003. (romance).
Cadernos Negros 13. Org. Quilombhoje.São Paulo: Ed. dos Autores, 1990.
Cadernos Negros 15. Org. Quilombhoje.São Paulo: Ed. dos Autores, 1992.
Cadernos Negros 21. Org. Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa e Sônia Fátima. São Paulo: Quilombhoje: Editora Anita, 1998.
Cadernos Negros 25. Org. Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 2002.
EVARISTO, Conceição. Entrevista concedida ao portal Beleza negra e mulata. Disponível em: <http://www.afirma.inf.br/textos/entrevista_novembro.rtf>.
* Eduardo de Assis Duarte é Doutor em Letras (USP, 1991) e integrante do Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários, da UFMG e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, desta Instituição. Autor de Literatura, política, identidades (UFMG, 2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (2. ed., Record, 1996). Organizou, entre outros, o volume Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. (2. ed. Pallas / Crisálida, 2007), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (UFMG, 2011, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., Pallas, 2019) e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2. ed., Pallas, 2019). Coordena o Grupo Interinstitucional de Pesquisa “Afrodescendências na Literatura Brasileira” e o Portal literafro, disponível no endereço: www.letras.ufmg.br/literafro.
** Elisangela Aparecida Lopes Fialho é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas; Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG e Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do Grupo Letras de Minas, ambos sediados na Faculdade de Letras da UFMG. É coautora de Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., Pallas, 2019) e de Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2. ed., Pallas, 2019).