Algumas considerações sobre tradução e negritude
em Ponciá Vicêncio e A Raisin in the Sun 1

Marcela Iochem Valente *

Resumo

Partindo das obras A Raisin in the Sun, da escritora afro-americana Lorraine Hansberry, e Ponciá Vicêncio, da afro-brasileira Conceição Evaristo, este trabalho pretende suscitar reflexões a respeito dos desafios encontrados ao se tentar traduzir a negritude em diferentes espaços geográficos, mais especificamente no que diz respeito aos Estados Unidos e ao Brasil. Para tal, partiremos do pressuposto de que a tradução não é apenas um processo interlingual, e sim um processo inserido em sistemas políticos, ideológicos e culturais responsável por variáveis (re)construções do ‘outro’. Para nosso estudo consideraremos algumas ideias de Maria Tymoczko, Susan Bassnett e André Lefevere.

Considerações Iniciais

Na contemporaneidade, os Estudos de Tradução vêm se utilizando cada vez mais dos instrumentos oferecidos pelos Estudos Culturais e Pós-coloniais. Em se tratando de traduções de obras literárias pertencentes às supostas minorias, o arcabouço teórico proveniente de tais campos é ainda mais notável, já que se faz necessária a compreensão do papel político e social exercido por tais produções. No caso de produções de escritoras afro-descendentes2 , é possível observar inúmeros desafios para a tradução, devido à forte presença de questões culturais, políticas e ideológicas nos textos, além dos diferentes pressupostos sobre literatura afro-descendente e negritude nas culturas de origem e recepção.

Por ser um processo complexo e inserido em sistemas culturais, a tradução pode ser responsável por variáveis reconstruções do ‘outro’ já que a cultura de chegada analisará uma determinada obra sob pressupostos distintos daqueles da cultura de origem. Além disso, como apontam André Lefevere e Susan Bassnett, a tradução é um tipo de reescrita, e por isso “como toda (re)escrita [ela] nunca é inocente. Sempre há um contexto no qual a tradução ocorre, sempre há uma história da qual um texto emerge e para o qual um texto é transposto” (1990, p. 11, tradução minha). Sendo assim, segundo Gideon Toury, “não há como a tradução ocupar o mesmo lugar sistêmico de seu original, nem mesmo quando os dois estão fisicamente presentes lado a lado” (1995, p. 26), pois há muitas questões envolvidas nesse processo de transposição, havendo ainda que se considerar a recepção do texto traduzido.

Partindo dos pressupostos anteriormente esboçados, o presente trabalho objetiva suscitar reflexões a respeito de algumas das dificuldades encontradas ao se tentar traduzir a negritude em diferentes espaços geográficos, neste caso Estados Unidos e Brasil, atentando para os desafios que essa reconstrução do ‘outro’ apresenta para o tradutor. Para tal, traremos algumas reflexões a respeito das diferentes concepções de negritude e da literatura afro0descendente nos Estados Unidos e no Brasil, e observaremos alguns aspectos do romance Ponciá Vicêncio, da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo e da peça A Raisin in the Sun da escritora afro-americana Lorraine Hansberry, calcados em algumas ideias de Susan Bassnett, André Lefevere e Maria Tymoczko. É importantre ressaltar que o nosso objetivo aqui não é analisar ou valorar as traduções existentes das obras em questão, mas sim, ressaltar a complexidade de se traduzir obras literárias provenientes dos contextos afro-descendentes no Brasil e nos Estados Unidos devido à sua riqueza e grande carga cultural. Não queremos aqui mostrar a impossibilidade de se traduzir tais obras, mas sim, destacar a necessidade de traduções conscientes das questões relacionadas à negritude nos sistemas de origem e de recepção de um texto, e até mesmo a importância de paratextos que possam auxiliar o leitor da cultura de recepção na compreensão de tais elementos.

Diferentes concepções de negritude: Estados Unidos e Brasil. Ao falarmos da tradução de obras literárias produzidas por escritores afro- descendentes, a primeira questão a ser considerada é o conceito de negritude nas culturas de origem e de chegada. No que diz respeito aos Estados Unidos e ao Brasil, sabemos que embora seja possível falar de um passado histórico com algumas semelhanças devido à experiência da escravidão africana ocorrida em ambos os países, ser negro difere significativamente em cada uma dessas sociedades. No artigo “A relação entre cor e identidade étnica em traduções brasileiras de um romance norte-americano” (1997), Aurora Neiva discute os padrões raciais estadunidense e brasileiro com base em algumas ideias de Carl N.

Degler. Ela aponta que o padrão racial estadunidense é dicotômico já que “uma pessoa é considerada ‘black’, nos Estados Unidos, em razão de sua ascendência africana e não em virtude da cor exata de sua pele” (p. 532). Desta maneira, mesmo que o indivíduo possua a aparência de uma pessoa branca, havendo um negro se quer em sua ascendência, esta pessoa é considerada negra pelos padrões estadunidenses, daí o termo one-drop rule – uma única gota de sangue negro torna o indivíduo negro, independente de sua aparência. Em contrapartida, aqui no Brasil, essa dicotomia “white/black” se desdobra

numa escala cromática de valores: quanto mais próximo nessa escala estiver o indivíduo do ideal branco, mais aceito socialmente o será. Nuances de cor de pele são, portanto, altamente marcadas entre os não brancos, refletindo assim os mecanismos simbólicos de discriminação étnica que caracterizam o imaginário da população brasileira em geral. (NEIVA, 1997, p. 533) .

Outra questão de extrema relevância no que diz respeito à negritude no Brasil é o mito da democracia racial. Percebemos que aqui as elites políticas, intelectuais e também a mídia buscam pregar uma suposta tolerância racial, que visa mostrar a ausência de discriminação, fazendo com que muitos acreditem que as relações raciais no Brasil não são desiguais como no contexto estadunidense e que, ao invés disso, questões como sexualidade e classe social, por exemplo, seriam muito mais relevantes do que a questão racial no que diz respeito à discriminação nesse país.

Como aponta a socióloga Gevanilda Santos em seu livro Relações raciais e desigualdade no Brasil (2009), "a ideia do brasileiro cordial é muito divulgada. Supõe uma vocação nacional para a convivência harmônica diante da desigualdade racial aqui existente, e, ao mesmo tempo, esconde o modo de ser preconceituoso do brasileiro. [...] o debate sobre temas relativos ao preconceito racial, a prática discriminatória e a concepção do racismo no Brasil foi afastado da História, dos currículos escolares, do cotidiano do jovem leitor e de toda a sociedade. A impressão é que não existe racismo no Brasil". (p. 21).

Conscientes então das diferentes noções de negritude em diferentes espaços geográficos, ao traduzimos obras literárias provenientes desses contextos, muito mais do que a escolha de um registro ou de palavras especificas está em questão.

Desta maneira, este trabalho propõe discutir alguns desafios encontrados em duas obras de escritoras afro-descendentes no que diz respeito à tradução. Antes de partirmos para tais considerações, traremos uma breve apresentação das escritoras e de suas obras em questão neste trabalho a fim de ressaltar a relevância das mesmas em suas respectivas culturas de origem.

Lorraine Hansberry & A Raisin in the Sun

A escritora afro-americana Lorraine Hansberry produziu nas décadas de 1950 e 60 e sua obra mais famosa foi a peça A Raisin in the Sun escrita em 1957 – porém produzida pela primeira vez apenas em 59 – e, por enquanto, ainda sem tradução para o português. A tradução que conhecemos foi feita para a língua alemã sob o título Eine Rosine in der Sonne, em 1963. Hansberry conseguiu mostrar em seu trabalho a situação vivida por afro-americanos em seu tempo e ainda utilizar a sua fama e reconhecimento para lutar contra o preconceito sofrido pelos afro-descendentes de sua comunidade. Embora a Terra das Oportunidades pareça oferecer igual direito a busca por felicidade, liberdade e oportunidades, Hansberry mostra que o Sonho Americano não está disponível para todos da mesma maneira.

Muitos imigrantes participantes dos novos processos diaspóricos, ou ainda aqueles que foram levados aos EUA devido a seu passado de escravidão, foram excluídos, marginalizados e vistos como inferiores ao tentar se adaptar a sua nova realidade, buscando melhores condições em seu novo país. Como aponta Linda Hutcheon (1992, 1993, 2000), “o outro” tende a ser visto como “ex-cêntrico”, não apenas no sentido de diferente, mas também no sentido de fora do centro, fora dos padrões, pertencente às margens por não se encaixar no estereótipo do colonizador.

A peça A Raisin in the Sun se apresenta como um tipo de produção subversiva e que hoje nos serve como uma referência histórica. Essa peça ganhou reconhecimento nos palcos da Broadway em um período em que não se podia imaginar a possibilidade de uma produção de uma escritora negra e ainda com elenco e direção de negros alcançando grande sucesso em tal local. Hansberry utilizou a sua obra para questionar e subverter valores hegemônicos da sociedade estadunidense, levantando muitas discussões de grande relevância para o movimento negro ainda discutidas na contemporaneidade.

Através da família Youngers, uma família afrodescendente vivendo no sul de Chicago, a autora conseguiu desconstruir o tão sonhado American Dream.

Hansberry mostra em sua peça que muitos são excluídos desse sonho e acabam por viver um pesadelo na suposta Terra das Oportunidades. É importante ficar claro que temos consciência de que os debates sobre as questões de gênero, raça e etnia nos Estados Unidos evoluíram com o passar do tempo e hoje a situação não é a mesma das décadas de 1950 e 60 retratadas pela autora, porém, ainda assim, muitas das questões levantadas por Hansberry em A Rasin in the Sun permanecem.

A Raisin in the Sun mostra os sonhos e planos da família Younger para a quantia de dez mil dólares que receberiam de um seguro de vida devido à morte de seu patriarca. Cada membro da família tinha um plano diferente para o dinheiro, gerando a partir de então intensos conflitos a fim de decidir o destino de tal quantia.

Mamma, a viúva de Mr. Younger, decide que a melhor opção para o dinheiro é realizar o antigo sonho de ter uma casa própria. Entretanto, a casa escolhida por ela fica situada em um bairro majoritariamente habitado por cidadãos brancos, o que leva a família a sofrer fortes preconceitos antes mesmo da mudança para sua casa nova.

A questão da opressão e da segregação é tratada nessa peça de forma bastante clara e direta através de um personagem chamado Mr. Linder. Tal personagem tem a função de conversar com a família Younger – como um representante do bairro onde a família comprou sua casa – no intuito de convencê- los a não mudar para aquele local. Para tal, ele oferece a família um cheque no valor da casa comprada, sugerindo que eles comprem um outro imóvel em algum outro lugar, este, apropriado para negros.

LINDNER: Eu quero que vocês acreditem em mim quando eu digo que preconceito racial simplesmente não está em questão. O fato é que as pessoas de Clybourne Park acreditam que [...] para a felicidade de todos os envolvidos nossas famílias negras são mais felizes quando elas vivem em suas próprias comunidades. (A Raisin in the Sun, 1994. p.118). A atitude desse personagem nos mostra de forma bastante objetiva a discriminação e o racismo presentes na sociedade estadunidense naquele contexto.

Também é interessante notar questões relacionadas à construção de identidade dos personagens nesta peça. Dentro de uma mesma família, Hansberry apresentou diferentes posicionamentos em relação à posição marginal relegada aos afro-descendentes nos Estados Unidos na década de 50 e diferentes reações a essa condição. Hansberry mostra ainda um pouco da complexidade de se viver tendo que negociar entre duas culturas, em constante luta contra múltiplas camadas de opressão – utilizando o termo de Spivak. A personagem Beneatha, por exemplo, se mostra extremamente fragmentada e em constante negociação entre os valores da sociedade estadunidense em que ela e sua família vivem e o desejo da busca por suas origens africanas. No caso desta personagem, essa fragmentação é refletida até mesmo na linguagem utilizada por ela em determinados contextos, oscilando entre um registro extremanente erudito e formal e uma variante não padrão da língua inglesa, o African American English.

A Raisin in the Sun desconstrói a noção de melting pot pregada pela sociedade estadunidense onde todos estariam misturados, integrados e seriam bem aceitos, ressaltando a discriminação existente quanto à nacionalidade, posição social, raça e até mesmo à sexualidade. Mesmo tendo sido escrita na decada de 1950, questões como a ilusão do Sonho Americano, o mito da terra das oportunidades e as múltiplas camadas de preconceito da sociedade estadunidense, fazem de A Raisin in the Sun uma produção contemporânea. É importante lembrar que Hansberry e sua peça são constantemente homenagiadas nos Estados Unidos até os dias de hoje e A Raisin in the Sun é lida e discutida em escolas e universidades estadunidenses. 3

Conceição Evaristo & Ponciá Vicêncio

A escritora afro-brasileira Maria da Conceição Evaristo de Brito começou a ser conhecida no sistema de literatura afro-brasileira por suas constantes publicações na série Cadernos Negros, com sua estreia no número 13 da série, em 1990, com 6 poemas: “Mineiridade” (p. 29), “Eu-mulher” (p. 30), “Os sonhos” (p. 31), “Vozes- mulheres” (p. 32), “Fluida lembrança” (p. 34) e “Negro-estrela” (p. 35). Além de sua poesia, contos e trabalhos acadêmicos publicados, Evaristo é autora de dois romances: Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006), ambos publicados pela editora Mazza, sendo o primeiro traduzido para o inglês em 2007. Em 2008, Evaristo lançou Poemas da recordação e outros movimentos onde reúne uma série de poemas anteriormente publicados nos Cadernos Negros. Em 2011, Evaristo lançou seu mais recente livro, uma coletânea de contos intitulada Insubmissas lágrimas de mulheres.

Segundo Omar da Silva Lima, em sua tese de doutorado intitulada O comprometimento etnográfico afro-descendente das escritoras negras Conceição Evaristo & Geni Guimarães (2009), a publicação da tradução em língua inglesa de Ponciá Vicêncio “torna Conceição Evaristo a segunda escritora afro-brasileira a ter uma obra publicada em terras estrangeiras. A primeira foi Carolina Maria de Jesus com o seu Quarto de despejo: diário de uma favelada” (p. 57). Cabe lembrar ainda que diversos poemas de Evaristo já estão traduzidos para a língua inglesa como consequência da recente tradução dos Cadernos negros, Black Notebooks (2008); seu conto “Maria” também foi traduzido em 1995, publicado no volume 18 da revista Callaloo; e sua coletânea de poemas publicada em 2008 já está traduzida para a língua inglesa por Maria Aparecida Salgueiro e Antonio Dwayne Tillis sob o título Poems of Recollection and Other Movements, porém ainda não publicada.

Embora esteja se tornando cada vez mais reconhecida dentro e fora do Brasil recentemente, Conceição Evaristo não é considerada uma autora canônica no polissistema literário brasileiro. Porém, na academia, pesquisas sobre sua obra tem se tornado cada vez mais frequentes. Seus romances, contos e poemas têm sido estudados com base em teorias de gênero e nos estudos pós-coloniais devido à sua condição de mulher, negra e, por muito tempo, de classe social desfavorecida. Uma confirmação do espaço que a autora vem conquistando na academia foi a indicação de seu romance Ponciá Vicêncio como leitura obrigatória para vestibulares e processos seletivos de importantes instituições no Brasil como a UFMG em 2008 e a UEL em 2008 e 2009, o CEFET BH em 2009, e a EPCAR em 2012, assim como a utilização de seu romance e seus poemas em cursos de literatura no Brasil e também nos Estados Unidos.

Ponciá Vicêncio narra problemas do cotidiano das mulheres afro-descendentes através da trajetória da personagem que dá título ao romance, uma mulher negra e pobre nascida no campo. O romance discute a questão da identidade de Ponciá a partir da memória afrod-escendente herdada de seus ancestrais e estabelece um diálogo entre o passado e o presente, entre a lembrança e a vivência, entre o real e o imaginário, entre o campo e a cidade grande. Através da narrativa fragmentada do romance, com constantes flashbacks, a história de Ponciá é contada e percebemos que a memória da infância da menina negra e inocente vivendo no campo, vai sendo substituída pela memória da adolescente negra, empregada doméstica, insatisfeita com sua realidade e da mulher vivendo na cidade grande em condições degradantes, sofrendo violências do seu companheiro e perdida dos seus e de si mesma “Ponciá se adentrava num mundo só dela, onde o outro, cá de fora, por mais que gostasse dela, encontrava uma intransponível porta” (EVARISTO, 2006, p. 109), “gostava da ausência, na qual ela se abrigava, desconhecendo-se, tornado-se alheia de seu próprio eu” (p. 45).

Neta de escravos e filha de um homem já beneficiado pela Lei do Ventre Livre, Ponciá Vicêncio precisa ajudar sua mãe, Maria Vicêncio, como oleira, moldando vasos de barro desde muito jovem. Enquanto Ponciá e sua mãe cuidam dos afazeres domésticos e dos utensílios de barro, vendidos nas proximidades da Vila Vicêncio, onde moram, seu pai e seu irmão trabalham na lavoura, ficando dias longe de casa. “Ponciá Vicêncio se lembrava pouco do pai. O homem não parava em casa. Vivia constantemente no trabalho da roça, nas terras dos brancos” (EVARISTO, 2006, p.17).

Com o passar dos anos, após a morte de seu pai e insatisfeita com a falta de perspectiva da vida que levava, Ponciá decide buscar uma vida melhor para si na cidade grande. A menina junta então suas poucas economias e compra uma passagem de trem para uma viagem que dura cerca de três dias. Na cidade, Ponciá acaba em condições degradantes vivendo em uma favela acompanhada de um homem que não a compreendia.

Encorajado pela atitude da irmã, seu irmão Luandi também parte para a cidade, mas acaba perdendo o endereço de Ponciá e assim, sua história ganha tonalidade maior em parte do romance. Na estação ferroviária, sem rumo em sua primeira noite na cidade, Luandi é acordado por um policial e, por portar um canivete, é conduzido à delegacia. Ali surge um fio de esperança em Luandi que “[a]cabava de fazer uma descoberta. A cidade era mesmo melhor do que na roça. Ali estava a prova. O soldado negro! Ah! Que beleza! Na cidade, negro também mandava!” (EVARISTO, 2006, p.70). Foi nessa delegacia que Luandi conseguiu seu primeiro emprego na cidade grande, como faxineiro. Foi ali também que ele encontrou esperança e um ídolo, o soldado Nestor, negro como ele. Na cidade, Luandi aprende a ler e a escrever com o soldado Nestor e apaixona-se por Bilisa, uma prostituta que acaba sendo assassinada por seu gigolô, Negro Climério.

Anos depois, a mãe resolve ir em busca de seus dois filhos. Quando Maria Vicêncio chegou à estação na cidade, soldado Nestor estava de serviço lá “[e] quando a mãe de Ponciá e Luandi entregou ao soldado Nestor um papelzinho dobrado, quase rasgado pelo tempo e que ela cuidadosamente guardava enrolado num pedacinho de pano, entre os seios, ele sorriu reconhecendo a própria letra” (EVARISTO, 2006, p. 116). O reencontro de Luandi com sua mãe o ajudou a se recuperar da perda de Bilisa e a continuar em busca de seu sonho de se tornar soldado, que já estava próximo de se tornar realidade. Seu primeiro dia de trabalho como soldado foi na estação ferroviária “e eis que, de repente, capta a imagem de uma mulher que ia e vinha, num caminho sem nexo, quase em círculo, no lado oposto em que ele se encontrava” (p.123) Era Ponciá. E ali, na estação ferroviária, encerra-se a busca de Luandi pelos seus.

Após o reencontro da família, Luandi percebe que seu sonho de ser soldado e poderoso era, na verdade uma ilusão, já que “[a]penas cumpria ordens, mesmo quando mandava, mesmo quando prendia” (p. 126). Assim, a cidade idealizada pela família Vicêncio como o local onde teriam possibilidade de uma vida em melhores condições foi pouco a pouco sendo desconstruída, e os sonhos trazidos pela família foram se perdendo e todos acabaram vivendo sob condições tão degradantes quanto as que viviam no campo.

Alguns desafios no que diz respeito à tradução em Ponciá Vicêncio e A Raisin in the Sun

Embora estejamos trabalhando com duas obras de períodos distintos – sendo A Raisin in the Sun de 1959 e Ponciá Vicêncio de 2003 – e provenientes de contextos bastante diferentes – afro-americano e afro-brasileiro, respectivamente – muitos pontos em comum podem ser observados nessas obras no que diz respeito a questões relacionadas à tradução da negritude e a construção do ‘outro’ através da tradução. Como vimos ao longo desse trabalho, as noções de negritude variam consideravelmente em diferentes espaços geográficos, em diferentes culturas. Por esse motivo, uma obra traduzida pode ter um status diferente na cultura receptora e na cultura de origem. Além disso, as peculiaridades culturais, a linguagem específica utilizada por determinado povo, e a própria noção de negritude e tudo o que ela implica, muitas vezes não podem ser integralmente levados para uma outra cultura, demandando alterações, escolhas cuidadosas do tradutor, ou até mesmo a presença de paratextos visando auxiliar o leitor da cultura de recepção na compreensão de tais elementos.

Em Post-Colonial Writing and Literary Translation (1999) Maria Tymoczko defende que a Tradução e a Literatura Pós-colonial possuem muitos aspectos convergentes. Tymoczko aponta que ambos os tipos de produções textuais possuem como preocupação central a transmissão de elementos de uma cultura para a outra através de diferenças culturais e linguísticas. Ela afirma ainda que as restrições encontradas por tradutores e escritores pós-coloniais também são semelhantes já que nenhum texto pode ser totalmente traduzido em todos os seus aspectos e nenhuma cultura pode ser totalmente representada em um texto. Sendo assim, da mesma forma que o tradutor decide como lidar com peculiaridades da cultura fonte que não são familiares ao público receptor, muitas vezes modificando e adaptando o texto de origem nesse processo, um escritor de uma cultura não hegemônica deve fazer escolhas ao representar a sua cultura já que não é possível representá-la completamente em um texto. Tanto A Raisin in the Sun quanto Ponciá Vicêncio apresentam muitos desafios no que diz respeito à tradução por todos os motivos aqui já discutidos.

Em A Raisin in the Sun, a primeira dificuldade que podemos especular diz respeito ao título. Em inglês, este título faz todo sentido e mostra características da obra em si. Hansberry obteve inspiração para este título em um poema de Langston Hughes intitulado “Harlem”. Tal poema gira em torno de questionamentos sobre o que acontece com os sonhos adiados, ou nunca alcançados. E é isso que de fato acontece ao longo do enredo já que a peça aborda os sonhos, geralmente adiados, de uma família afro-americana. Embora esta obra ainda não tenha sido traduzida para o português, existem duas versões de filmes da mesma que possuem legenda em português. No caso dos filmes, a escolha para a tradução do título não tem nenhuma relação com o título original da obra. Este foi traduzido para o português como O Sol tornará a brilhar, perdendo a característica dos sonhos postergados presentes no título em inglês, assim como a referência ao poema de Hughes, e trazendo um sentido de esperança, um tanto quanto diferente do sentido do título original.

Além desta problemática do título, temos a personagem Beneatha, cuja linguagem utilizada mostra muito da situação “entre-culturas” vivida por ela. Seu discurso ao longo da peça passa por variações bastante significativas que vem a mostrar sua identidade fragmentada. Há momentos em que a personagem mostra uma constante busca pelo seu “eu” e suas origens, assim sendo, utilizando o African American English – e em outros, quando ela está inserida no contexto do colonizador como, por exemplo, na faculdade ou entre os brancos, utilizando o Standard English algumas vezes de forma até bastante formal, vista por alguns como Shakespeareana. Tal característica no discurso da personagem tem tão grande importância, que em sua apresentação a autora Hansberry reforça tal traço nas orientações dadas antes da primeira fala da personagem: “Seu discurso é uma mistura de muitas coisas; é diferente do restante da família já que a educação permeou sua ideia de inglês” (HANSBERRY, 1994, p. 35).

Se, por um lado, Beneatha usa expressões que a aproximam de sua família por serem informais e mais características do grupo social e étnico em que ela está inserida como: “That raggedy-looking old thing” (A Raisin in the Sun, 1994, p. 121), por outro lado há momentos em que a personagem chega a tal grau de formalidade no uso da linguagem que insere pronomes notavelmente formais como thee e thy, como em: “Thee is mad” (p. 38). Toda essa variação de registro no discurso de Beneatha traz um grande desafio para o tradutor que teria que buscar correspondentes para expressar essa mesma ideia de fragmentação e variação no discurso da personagem na língua/ cultura de recepção.

O uso do African American English também traz uma questão bastante complexa, pois é consideravelmente complicado escolher um determinado registro em português que possa ser equiparado a esse registro específico utilizado em inglês, uma vez que estamos tratando de duas sociedades bem distintas, com histórias, valores e realidades muito diferentes. Vale ainda lembrar que o AAE é um fenômeno bastante localizado na sociedade estadunidense e que ele não possui um correspondente direto em português.

Em Ponciá Vicêncio, embora tenhamos o uso da variante padrão com algumas marcas de oralidade, a forte presença de peculiaridades regionais e o constante apelo aos sentidos se apresentam como características marcantes do romance. Como afirma Maria José Somerlate Barbosa no prefácio para a edição de 2006

Ponciá Vicêncio é um romance que convida o (a) leitor(a) a conhecer a protagonista pelos sentidos. Revela cheiros, sabores, paisagens e a percepção da menina que escuta tudo e todos, olha, vê, sente e se emociona com o arco-íris, com as comidas, com o cheiro do café fresco e das broas de fubá e que trabalha o barro, modelando objetos de argila. (p. 11).

Sem dúvidas, essas características regionais se apresentam como um desafio na hora de se traduzir pois muitos dos objetos, comidas típicas, paisagens dentre outros, não possuem um equivalente possível na cultura de chegada, exigindo escolhas cuidadosas por parte do tradutor. Quando Ponciá se lembra de sua infância no campo e das casas dos negros nas terras onde vivia quando menina, podemos ver alguns exemplos desses desafios:

Gostava da roça, do rio que corria entre as pedras, gostava dos pés de pequi, dos pés de coco-de-catarro, das canas e do milharal. Divertia-se brincando com as bonecas de milho ainda no pé. Elas eram altas e, quando dava o vento, dançavam. Ponciá corria e brincava entre elas. (EVARISTO, 2006, p. 13).

As casas das terras dos negros, para o olhar estrangeiro, eram aparentemente iguais. Chão batido, liso, escorregadio, paredes de pau-a- pique e cobertura de capim. As camas dos adultos e das crianças eram jiraus que os homens e mesmo as mulheres armavam com galhos de arvore amarrados com cipós. O colchão de capim era, às vezes, cheiroso, dado ao alecrim que se misturava ali dentro na hora de sua feitura. Os grandes vasilhames de barro ou ferro e os tachos onde as mulheres faziam doces permitiam imaginar farturas. As crianças gostavam de raspar os tachos se lambuzando com os doces de mamão, cidra, banana, goiaba, leite, abóbora e o melado de rapadura. (p. 59): "Sentiu o cheiro de biscoito frito, de café fresco dado para as mulheres e as crianças que estavam fazendo quarto ao defunto. Sentiu também o cheiro de pinga que exalava da garrafinha e da boca dos homens sentados lá fora com o chapéu no colo". (p. 15).

Nos três fragmentos anteriormente apresentados é notável a presença desses elementos tipicamente brasileiros que comentamos. Um leitor que não tenha um pouco de conhecimento da nossa cultura, terá grande dificuldade para compreender e visualizar alguns elementos como, por exemplo, “os pés de pequi”, fruta nativa do cerrado brasileiro, muito utilizada na cozinha nordestina, do centro-oeste e norte de Minas Gerais; a imagem das crianças “raspando os tachos” onde eram preparados os doces como “o melado de rapadura”, doce feito a partir da cana de açúcar que, embora exista nos Estados Unidos com o próprio nome rapadura4 e seja originário das Ilhas canárias no século XVI, é típico do nordeste do Brasil e de algumas regiões da América Latina5 e não é tão comum no contexto estadunidense; “o cheiro de biscoito frito”, quitute típico da culinária mineira, geralmente servido com café, ambos com aroma bastante forte e característico; “os pés de coco-de-catarro”, um tipo de palmeira natural do Brasil também conhecida por outros nomes como macaúba, cujo nome científico é Acromia aculeata, comum na mata atlântica desde o Pará até São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro. Embora essa planta também ocorra na Argentina, no Uruguai, Paraguai, na Bolívia, Colômbia, Venezuela, nas três Guianas, no México e na America Central, um leitor do polissistema estadunidense provavelmente não terá conhecimento da mesma.

Consideravelmente desafiador para a tradução também, são questões históricas como a Lei do Ventre Livre e a Lei Áurea que estão presentes em Ponciá Vicêncio e provavelmente não serão familiares aos leitores da tradução do romance.

A família de Ponciá sofreu com a reminiscência de seu passado escravocrata. O pai de Ponciá era “filho de ex-escravos, crescera na fazenda levando a mesma vida dos pais. Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo onde o sinhô-moço galopava sonhando conhecer as terras do pai” (EVARISTO, 2006, p. 17). Ponciá se mostrava inconformada com a realidade em que sua família vivia, já que, teoricamente, eram livres e não mais escravos. “Se eram livres, porque continuavam ali? Por que, então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos?” (p. 17). O conhecimento de referências como as Leis Áurea e do Ventre Livre são de grande importância no romance, pois Ponciá se mostra indignada pelo não cumprimento das mesmas: Há tempos e tempos, quando os negros ganharam aquelas terras, pensaram que estivessem ganhando a verdadeira alforria. Engano. Em muito pouca coisa a situação de antes diferia da do momento. As terras tinham sido ofertas dos antigos donos, que alegavam ser presente de libertação. E, como tal, podiam ficar ali, levantar moradias e plantar seus sustentos. Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar nas terras do Coronel Vicêncio. O coração de muitos se regozijava, iam ser livres, ter moradia fora da fazenda, ter as suas terras e os seus plantios. Para alguns, Coronel Vicêncio parecia um pai, um senhor Deus. O tempo passava e ali estavam os antigos escravos, agora libertos pela “Lei Áurea”, os seus filhos, nascidos do “Ventre Livre” e os seus netos, que nunca seriam escravos. Sonhando todos sob os efeitos de uma liberdade assinada por uma princesa, fada-madrinha, que do antigo chicote fez uma varinha de condão.

Todos, ainda, sob o jugo de um poder que, como Deus, se fazia eterno. (EVARISTO, 2006, p. 49)

Para que o leitor da tradução do romance compreenda a indignação e a ironia de Ponciá diante das leis que beneficiariam os escravos, libertando os mesmos e seus filhos, é necessário que o leitor conheça um pouco sobre a questão racial no contexto de origem do romance.

Cabe mencionar que a tradução de Ponciá Vicêncio para o inglês traz um capítulo introdutório onde a tradutora Paloma Martinez-Cruz (professora de estudos Latino-Americanos na Columbus State University) comenta alguns dos desafios encontrados ao longo do processo de tradução do romance. Nessa introdução, a tradutora traz algumas informações sobre a trajetória da autora e do romance em questão aproveitando algumas informações trazidas no prefácio do romance em português, escrito por Maria José Somerlate Barbosa (professora assistente do departamento de espanhol e português na Universidade de Iowa). A tradutora também aproveita esse espaço para “contextualizar alguns termos e alusões brasileiras” (2007, p. ii, tradução minha) que podem não ser claros para leitores não pertencentes a esse contexto. Ela promete apresentar tais elementos em um texto introdutório a fim de evitar interrupções com notas de pé de página ao longo do texto. O primeiro aspecto que a tradutora apresenta em sua introdução é a religião afro-brasileira Candomblé “um sistema híbrido de crenças” (2007, p. 02, tradução minha) resultante da combinação do catolicismo e da espiritualidade africana que aparece ao longo do romance algumas vezes. Uma breve explicação sobre o que seriam as favelas no Brasil também é apresentada, já que, após mudar para a cidade, Ponciá compra um barraco onde passa a morar com o seu companheiro. A tradutora também traz alguns esclarecimentos sobre as questões relacionadas à História do Brasil anteriormente apontadas neste trabalho, explicando que, com base em acontecimentos como a Lei do Ventre Livre e a Lei Áurea, o Brasil construiu a imagem de uma democracia racial, sendo que essa imagem não passou de um mito.

A tradutora apresenta para o leitor as datas dessas leis assinadas pela princesa Isabel e os seus objetivos, levando um pouco da história do Brasil para o leitor da tradução. Um outro elemento cultural apresentado pela tradutora na introdução diz respeito à fauna brasileira. Mas, como esse elemento não está presente no romance em português, consideramos necessário comentar um pouco mais extensamente sobre o mesmo para que o leitor compreenda o motivo de sua aparição na introdução da tradução.

Esse último elemento cultural que gostaríamos de comentar é, na verdade, o segundo elemento apontado pela tradutora em sua introdução. Porém, como já comentamos, esse elemento não está presente no texto fonte. Logo após as suas considerações sobre o Candomblé, a tradutora afirma que “é provável que os leitores não estejam familiarizados com uma espécie de pássaro que habita o rio da infância de Ponciá” (2007, p. 03, tradução minha). A tradutora traz então algumas considerações sobre uma espécie de pássaro apresentada como “sunbittern”, no intuito de auxiliar o leitor da tradução na compreensão dessa referência cultural e afirma ainda que o prazer de Ponciá “em compartilhar o rio com este pássaro elusivo é um exemplo de seu convívio harmonioso com as águas da floresta” (p. iii, tradução minha). É interessante notar que nenhuma referência a tal animal é feita no texto fonte. Por essa razão, decidi buscar a localização desta referência na tradução e compará-la com o texto de partida a fim de tentar compreender seu surgimento na tradução. Fazendo isso, notei que “os pés de pequi” que aparecem no texto em português, já citados nesse trabalho, foram traduzidos como “the feet of the sunbittern”, sendo assim, a fruta pequi acabou se transformando no pássaro que a tradutora nos apresenta tão detalhadamente em sua introdução. Gostaria de lembrar mais uma vez que o meu objetivo neste trabalho não é avaliar a qualidade da tradução ou buscar possíveis problemas, e menos ainda fazer uma análise microtextual, como já apontei anteriormente. Mas, ao falarmos dos elementos culturais presentes em Ponciá Vicêncio, da cuidadosa seleção vocabular característica de Conceição Evaristo e do cuidado necessário nas escolhas do tradutor ao levar esses elementos para uma outra cultura através da tradução, não poderíamos deixar de abordar as questões anteriormente apresentadas.

Considerações Finais

Certamente ainda há muito para se falar sobre A Raisin in the Sun e Ponciá Vicêncio no que diz respeito a referências culturais, linguagem, negritude e desafios para a tradução. O presente trabalho apresentou apenas alguns poucos aspectos de cada uma das obras em questão a fim de ilustrar a complexidade de ambas e ressaltar a necessidade de traduções literárias conscientes no que diz respeito a obras produzidas por afro-descendentes. Devido ao reconhecimento da literatura afro-americana na academia, questões como a dificuldade de se traduzir o African American English para outras línguas vêm sendo constantemente discutidas. Porém, no que diz respeito aos estudos sobre a tradução da literatura afro-brasileira, praticamente nada tem se falado. Podemos citar apenas alguns poucos trabalhos sobre a tradução de obras pertencentes a tal contexto e, em se tratando mais especificamente da tradução da obra de Conceição Evaristo, há apenas uma tese de doutorado recente sobre a tradução de Ponciá Vicêncio defendida na UFPB por Rosângela de oliveira Silva Araújo em 2012, e a minha tese em desenvolvimento na PUC-Rio sob o título A tradução e a construção de imagens culturais: Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, e sua tradução para o inglês, a ser defendida em 2013.

É preciso ter consciência de que não apenas a literatura afro-americana traz peculiaridades linguísticas e culturais que precisam ser cuidadosamente estudadas. Toda produção literária traz marcas de um determinado tempo, de uma cultura, de seu autor, além de questões políticas, ideológicas, dentre outras, que precisam ser consideradas ao se traduzir. Embora não haja em português uma linguagem diferenciada praticada por afro-descendentes, como é o caso dos Estados Unidos, a literatura afro-brasileira é carregada de elementos culturais que merecem atenção e cuidados ao se traduzir, como pudemos ver em Ponciá Vicêncio.

Outro aspecto bastante relevante que merece ser destacado é o uso de paratextos na tradução desse tipo de obra. Considerando que muitas vezes não é possível encontrar correspondes na língua/cultura de recepção, ou o tradutor opta por buscar possibilidades na cultura de recepção apagando marcas do texto original e domesticando-o, ou ele pode levar um pouco da cultura de origem à cultura de recepção através da utilização de prefácios, notas, paratextos em geral, esclarecendo para o leitor as complexidades desse tipo de escrita assim como os aspectos culturais e linguísticos envolvidos. Para Maria Tymoczko, na forma de introduções, notas, ensaios críticos, glossários, mapas e afins, o tradutor pode explicar questões culturais e literárias necessárias para o público receptor, sendo assim, “o tradutor pode manipular mais do que um nível textual simultaneamente, afim de codificar e explicar o texto fonte” (TYMOCZKO, 1999, p. 22, tradução minha). Na tradução de obras como A Raisin in the Sun e Ponciá Vicêncio, acreditamos ser extremamente necessário o uso de tais recursos para que o leitor do texto traduzido possa compreender parte da complexidade do texto e da cultura de origem.

Referências

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TYMOCZKO, M. “Post-Colonial Writing and Literary Translation”. In: BASSNETT, S. & TRIVEDI, H. (orgs.) Post-colonial translation: Theory and Practice. London/New York: Routledge, 1999. p.19-40.


* Marcela Iochem Valente é doutora em Letras, Estudos da Linguagem, pela PUC Rio de Janeiro, com tese sobre a tradução de Ponciá Vicêncio para o inglês; Professora Adjunta de Língua Inglesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; autora de Lorraine Hansberry & A Raisin in the Sun: Challenges and Trends Presented by an African-American Play (2010). 

1 Este artigo é uma adaptação do trabalho anteriormente publicado nos anais do XII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Curitiba) em 2011, sob o título: “As variáveis (re)construções do ‘outro’ através da tradução: negritude em foco”.

2 Manteremos o uso do hífen em todas as palavras com prefixo afro devido a implicações teóricas. Embora, de acordo com a nova ortografia da língua portuguesa, essas palavras não sejam mais hifenizadas, nos estudos pós-coloniais, com base em teóricos como Stuart Hall e Homi Bhabha, falamos em sujeitos híbridos e identidades hifenizadas, daí a opção pela manutenção do hífen em termos como afro-americano, afro-brasileiro, dentre outros.

A Raisin in Sun foi objeto da minha dissertação de mestrado, posteriormente publicada em forma de livro. Mais informações em: VALENTE, M. I. Lorraine Hansberry & A Raisin in the Sun: Challenges and Trends Presented by an African-American Play. Saarbrucken: Lambert Academic Publishing, 2010.

4 Desde 2006 o Brasil vem lutando contra uma empresa alemã que patenteou a rapadura nos Estados Unidos (1993) e na Alemanha (1989). Mais informações ver: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,oab-tenta-anular-patente-da-marca-rapadura-na-alemanha-e-nos-eua,153513,0.html.

5 Mais informações ver: <http://modadecomidachefcrisleite.blogspot.com.br/2010/06/rapadura.html http://projetoculturaafro.blogspot.com.br/2008/10/rapadura.html.>

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Alteridade e subalternidade em Clarice Lispector e Conceição Evaristo

 

Cristiane Felipe Ribeiro de Araujo Côrtes, CNPq/UFMG/CEFETMG1

Resumo

Este trabalho visa evidenciar os olhares femininos da literatura ocidental sobre subalternidade feminina. Para tanto, serão discutidas as personagens empregadas domésticas nas obras de Clarice Lispector e Conceição Evaristo. A escolha se dá pela narrativa sensível-poética que ocorre em ambas nas quais se tem, de fato, uma perspectiva feminina que emerge de tais textos. Cada qual, a partir do seu ponto de vista, construiu e constrói uma história literária engajada e inovadora. Pretende-se, com este texto, indicar Conceição Evaristo como leitora de Clarice Lispector e reconhecer as proximidades e distanciamentos de ambas as escritoras no que tange à subalternidade.

Palavras-chave: Literatura brasileira, gênero, etnia, subalternidade e memória.

 

A relação da mulher com a sociedade em que ela vive está diretamente ligada à sua produção literária. Nos séculos passados, pouco se sabe sobre as escritoras e, consequentemente, pouco se sabe sobre como as mulheres viam o mundo em que viveram. No século XIX, por exemplo, eram representadas pelos autores do romantismo ora como puras, ingênuas, incapazes de viverem sem o sexo oposto, ora como luxuriosas a ponto de levar um homem à loucura. Com o amadurecimento político e intelectual da mulher, as autorias femininas se fizeram mais presentes e persistentes na sociedade, havendo uma representação mais marcada pela vontade de se posicionar e de se fazer notar como mulher diante do meio em que vive.

É nesse âmbito que pretendo analisar a manifestação da classe subalterna nas narrativas brasileiras, especificamente, a figura das empregadas domésticas presentes nas obras de Clarice Lispector e Conceição Evaristo, a partir de reflexões teóricas relacionadas ao gênero, à raça e à classe.

Clarice Lispector se destaca pelas reflexões feitas sobre a mulher do século XX habitante dos grandes centros urbanos. A escritora inovou a estética literária brasileira e se destacou pela perspectiva intimista, no que tange à estrutura do texto narrativo. As personagens clariceanas representam a situação alienada dos indivíduos das grandes cidades, geralmente tensas e imersas num mundo repetitivo e inautêntico, que as despersonaliza. As mulheres estão sempre envolvidas com os problemas de casa e não se dão conta do quão medíocre é a vida que levam e os homens são sempre inexpressivos ou autoritários.

Apesar de toda complexidade de sua narrativa, não se pode afirmar que sua obra é de cunho social. Mesmo em “A hora da estrela”, que tem como protagonista uma imigrante nordestina, a questão social não é tratada com a mesma profundidade que a questão psíquica, isso não significa que a autora ignora o tema, muito pelo contrário.

Influenciada pelo existencialismo de Sartre, Lispector se ocupa, em grande parte de sua obra, das mulheres. Ela foi, a seu tempo, inovadora no que tange à imersão poética na década de 50. Sua literatura introspectiva e intimista busca fixar-se na crise do próprio indivíduo, em sua consciência e inconsciência. É dessa forma que começa uma narrativa interiorizada, centrada num momento de vivência interior da personagem provocando o fluxo de consciência. Esse fluxo é um sistema para apresentação dos aspectos psicológicos da personagem na ficção.

Em Laços de Família, por exemplo, as personagens vivem sufocadas pela rotina até que algo as deixa desequilibradas, estremecidas. Isso faz com que tomem consciência de alguma peça fundamental para que sua existência possa ser palpável, concreta. Esse processo de descoberta do óbvio e profundo as provoca o desequilíbrio; as personagens são levadas a uma a uma reforma íntima e radical, mas temporária. Elas vivem um estado crítico de solidão e tristeza, abandono, culpa e, principalmente, auto-enfrentamento. O narrador de terceira pessoa expõe o íntimo das personagens com toda dor e compaixão que as palavras suportam narrar.

Lispector traduz em ações um sentimento muito próprio da mulher ao longo história, descrito por Perrot, ao considerar que “dizer “eu” não é fácil para as mulheres a quem toda uma educação inculcou a conveniência do esquecimento de si.” (PERROT, 2005, p. 42). Para tanto, era preciso uma educação diferenciada que saiu muito caro à produção feminina, pois os homens sempre tiveram acesso à filosofia, poesia, viagens, escolas e universidades. Às mulheres, restavam as situações corriqueiras, os bibelôs, os sonhos e fantasias de donas de casa.

As crônicas de A descoberta do mundo, livro composto por crônicas publicadas aos sábados no Jornal do Brasil de agosto de 1967 a dezembro de 1973, assumem um caráter metaficcional em vários momentos e isso é particularmente interessante para a produção da análise que se segue neste trabalho. Isso porque, ao falar sobre o seu fazer literário, Lispector “denuncia” não só a sua postura diante da vida, mas também de uma parcela significativa da classe média brasileira da qual ela fazia parte.

Não são raras as reflexões da autora sobre a alteridade, mesmo evitando o engajamento social, Lispector aponta questionamentos fundamentais sobre as diferenças de classe a partir das discussões existencialistas. Pode-se perceber que sua inspiração brota da crítica feita pelo feminismo de meados do século XX, retratando o universo da mulher de classe média, dona-de-casa, solitária e incompreendida até por si mesma. Essa temática engendrada, ou o fato de colocar uma nordestina como protagonista de um romance ou, ainda, evidenciar, em tantos textos, seu conflito em relação ao trabalho subalterno feminino, como das empregadas domésticas e cozinheiras em sua obra reflete a constante preocupação com alteridade da autora, mesmo não sendo esse seu foco de escrita.

Mesmo envolvida com a alteridade, a relação de Lispector com a subalternidade é, por vezes, conflituosa, como relatada na crônica “Por detrás da devoção” (LISPECTOR, 1999, p. 49) quando a autora afirma que
 

[...] por falar em empregadas, em relação às quais sempre me senti culpada e explorada, piorei muito depois que assisti à peça “As criadas”, dirigida pelo ótimo Martim Gonçalves. Fiquei toda alterada. Vi como as empregadas se sentem por dentro, vi como a devoção que às vezes recebemos delas é cheia de ódio mortal. (LISPECTOR, 1999, p. 49, grifos nossos).

A culpa sentida pela autora é a consciência de que ela tem acesso a uma “versão” de suas empregadas diferente do que elas realmente são. Isso se evidencia quando ela reconhece que se sentiu mais culpada quando viu, através de Martim Gonçalves, como elas são por dentro. Há um conflito instaurado em seu texto entre quem é ela diante do outro e quem é o outro para ela, como exemplifica o trecho “minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.” (LISPECTOR, 1999, p. 23), aqui, ela reconhece que o desconhecido do outro seria o que desconhece dela mesma. Uma análise de A hora da estrela focada na alteridade evidencia esse conflito, quando a autora constrói uma protagonista que desconhece o mundo em vive na mesma proporção que desconhece a si mesma e um narrador que se interessa particularmente por essa faculdade - do não ser - da sua personagem.

A obra de Conceição Evaristo já apresenta a alteridade com uma ótica menos conflituosa, embora mais contundente do ponto de vista da crítica social, pelo fato de a autora ser de origem economicamente e intelectualmente diferente. Sua estréia na literatura foi em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros. Desde então, Evaristo tem mostrado uma produção literária marcada pela presença de uma voz feminina que promove a denúncia e reflexão passando pela memória, que é usada como instrumento de reconhecimento dos fatos pessoais ou histórico-sociais, ressaltando a realidade social e cultural dos afro-descendentes. Segundo Eduardo de Assis,
 

a poesia de Conceição Evaristo enfatiza a abordagem dos dilemas identitários dos afro-descendentes em busca de afirmação numa sociedade que os exclui e, ao mesmo tempo, camufla o preconceito de cor. A descrição da dor, do sofrimento negro e da sua desesperança faz-se de modo incisivo. (ASSIS, Disponível em: <http// www.letras.ufmg.br/literafro>).
 

Podemos encontrar na literatura de Evaristo, além da temática do feminino, comum em Clarice Lispector, a questão da raça e da classe. Os dilemas, angústias e anseios de uma mulher marcada pelos valores patriarcais vão permanecer em suas narrativas e poemas, contudo, o olhar sobre esses sentimentos parte não mais da classe dominante, mas sim da experiência da subalternidade. Por isso, o conflito refletido na culpa de Lispector cede lugar a uma crítica mais engajada, inclusive, ao discurso da classe dominante em relação à subalternidade.

A postura de mulher, negra e escritora sobre a sua própria condição coloca a obra de Conceição Evaristo em cheque numa sociedade que pratica o racismo e o sexismo velados. A abordagem temática de sua narrativa é considerada inovadora, pois passa pela literatura existencialista de Clarice Lispector – pela precisão com que descreve os sentimentos humanos – e pela narrativa contemporânea que enfatiza de forma direta a vida do subalterno. Dessa forma, algumas influências que Conceição Evaristo sofreu ao longo de sua vida fizeram com que sua literatura se distanciasse, em certo ponto, da narrativa clariceana. Ela afirma que não nasceu rodeada de livros como os escritores da classe média, nasceu rodeada de palavras. Com isso, constata-se o trato com a memória e a imagem, elementos recorrentes da narrativa oral; além do lirismo e intimismo presentes na literatura brasileira da década de 40 do século XX.

É possível afirmar que a escrita de Lispector abre precedentes para uma literatura, além de engendrada, engajada, como a de Evaristo. A experiência do escrever é fundamental para essas personalidades, uma vez que é ela (a escrita) que conecta o que pensam com o que vivem e como vivem. Clarice Lispector afirma que “escrever é uma maldição, mas uma maldição que salva”, isso porque esse ato
 

Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. (LISPECTOR, 1999, p. 134, grifos nossos).

Para ambas as autoras, a escrita proporciona a inscrita. É possível entender melhor o mundo quando se fala e escreve dele e sobre ele. No caso de Evaristo, a necessidade da escrita é pela afirmação, além do gênero, da classe e da cor também, ela reconhece que é preciso “fugir para sonhar e inserir-se para modificar” (Evaristo, 2007, p. 20) e essa inserção, para ela, pedia a escrita. É nesse exercício de inserção que é possível estabelecer a partir de que ponto de vista cada autora parte. Evaristo, ao reproduzir o irreproduzível, dialoga com uma classe que Lispector desconhecia profundamente, embora se demonstrasse envolvida com o tema. Uma (Evaristo) parte do universo da pobreza para ressignificar o existencialismo tão presente na outra (Lispector).

Ao dizer “ a gênese da minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em nossas casas e adjacências” (EVARISTO, 2007, p. 19), a autora demonstra o desejo de aproximar seu universo de identificação literária à oralidade para representar uma voz coletiva pobre, economicamente, mas farta, culturalmente. A experiência da leitura para ela “foi um meio, uma maneira de suportar o mundo, pois proporcionava um duplo movimento de fuga e inserção no espaço em que vivia” (EVARISTO, 2007, p. 20). Percebe-se, portanto, que a escrita torna-se a performance da vida, não por representá-la como um simulacro, mas por ser uma forma de se ver inserida na vida pelo ato de escrever sobre ela. Lispector ilustra tal condição ao reconhecer que a máquina corre antes que seus dedos corram, a máquina escreve nela (LISPECTOR, 1999, p. 232); isso porque ela imprime a vida e se imprime no ato de escrever.

Dessa forma, claro fica justificar a ambigUidade de C.L. em relação às domésticas na sua literatura. Sua culpa está no fato de ela reconhecê-las como um alter (outro) que merece viver dignamente. Tanto que questiona, na crônica “Ao correr da máquina” a vida da faxineira "que mora na Raiz da Serra e acorda às quatro da madrugada para começar o trabalho da manhã na Zona Sul, de onde volta tarde para a Raiz da Serra, a tempo de dormir para começar o trabalho na Zona sul". (LISPECTOR, 1999, p. 232). 

Porém, a visão “de fora” do universo da faxineira limita as impressões de Lispector a uma compaixão paradoxal que oscila entre a cumplicidade dentro do universo feminino e a perversidade dentro do universo sócio-econômico. Como, por exemplo, na crônica “A mineira calada” em que a autora se surpreende ao ver sua empregada lhe pedir um livro para ler que seja interessante e não água com açúcar:

[...] de repente – não, nada é de repente nela, tudo parece uma continuação do silêncio. Continuando, pois, o silêncio, veio até a mim a sua voz: “A senhora escreve livros? Respondi um pouco surpreendida que sim. Ela me perguntou sem parar de arrumar e sem alterar a voz, se podia emprestar-lhe um. Fiquei atrapalhada. Fui franca: disse-lhe que ela não ia gostar de meus livros porque eles eram um pouco complicados. Foi então que, continuando a arrumar, e com a voz ainda mais abafada, respondeu: ”Gosto de coisas complicadas. Não gosto de água com açúcar”. (LISPECTOR, 1999, p. 48). 

Tivera Lispector passado pelas experiências de Evaristo, sua postura diante de uma empregada culta não seria de espanto. Há, no romance Becos da memória2, de Conceição Evaristo, uma personagem, Ditinha, que trabalha de empregada doméstica na casa de D. Laura. A apresentação dessa personagem se difere em vários aspectos das de Lispector, principalmente pela ausência do conflito ou culpa, substituída ora pelo respeito, ora pela revolta. As metáforas utilizadas para representar Ditinha se dão sempre a partir de um universo de significação positivo exemplificando esse tratamento na personagem:
 

Ditinha olhava as joias da patroa e seus olhos reluziam mais que as pedras preciosas [...] continuava a arrumação do quarto, varria debaixo da cama, olhava o teto à procura de teias de aranha [...] Um raio de sol batia nos fios de cabelos trançados, fazendo-a brilhar que nem as joias. (EVARISTO, 2006, p. 92-93, grifos nossos).
 

A comparação de Ditinha com uma joia é colocada em oposição às joias da patroa, essas reluziam e refletiam a angústia da empregada que vivenciava uma realidade extrema oposta quando chegava a casa após o trabalho. Em artigo publicado, Evaristo escreve sobre sua infância em que a mãe desenhava um grande sol no chão do quintal para que ele se materializasse naqueles dias. Neste, a autora lança mão de alegorias que projetam a crítica social feita pela autora, mas, mesmo assim, a diferença no trato e na linguagem permanece em relação à Lispector: 

Nossos corpos tinham urgências. O frio se fazia em nossos estômagos. Na nossa pequena casa, roupas, roupas molhadas, poucas as nossas, muitas as alheias, isto é, das patroas, corriam o risco de mofarem acumuladas nas tinas e bacias. A chuva contínua retardava o trabalho e pouco dinheiro, advindo dessa tarefa, demorava mais e mais tempo. (EVARISTO, 2007, p. 17).
 

Aqui, a autora se declara filha de lavadeira e que, por isso, necessitava do calor para secar as roupas, para a mãe não ficar sem o pagamento e usa a metáfora do frio associada à fome, num leve tom de denúncia. Não se pode, entretanto, afirmar que há em Evaristo a ausência de conflitos, o que se percebe, em comparação à Lispector, é um desejo consciente de denúncia ou reflexão para que haja um novo universo semântico associado a tais personagens. Enquanto o conflito desta beira a culpa, o daquela questiona os estereótipos. C.L. tem consciência de tais estereótipos criados pelas classes médias e altas brasileiras; mas aceita-os, muitas vezes, tanto que confessa sua paradoxal postura diante de suas empregadas.

Ao contrário de Evaristo, Lispector espera que suas empregadas sejam sempre rasas e se surpreende quando uma lhe pede um livro mais interessante para ler ou uma outra que ia ao analista e a incomodava profundamente: “fazia análise, juro... Duas vezes por semana ia ver uma Dra. Neide. Telefonava-lhe nos momentos de angústia. [...] Compreendi, mas terminei não suportando.” (LISPECTOR, 1999, p. 51). O comportamento tido como moderno até para uma mulher de classe média dos anos 60, quem dirá para uma doméstica. O universo de identificação da classe surge, principalmente, quando a autora ressalta “juro” como se os leitores pudessem duvidar do que estava a dizer.

O conflito na escrita de Evaristo é marcado pelo questionamento da postura retratada por Lispector na relação patroa-empregada que oscila entre a satisfação, a desconfiança, compaixão ou espanto, como na passagem em que Ditinha acaba o seu trabalho e, antes de ir embora, D. Laura confere tudo o que ela fez: "Estava tudo um brinco! A casa reluzia! Ela elogiou o trabalho de Ditinha, gostava do trabalho da moça. [...] D. Laura gostava muito do trabalho de Ditinha. Olhando e admirando a beleza de D. Laura, Ditinha se sentiu mais feia ainda. Baixo os olhos envergonhada de si mesma”. (EVARISTO, 2006, p. 94). 

A patroa gostava muito do trabalho de Ditinha e não de Ditinha. A comunicação entre as duas se resumia nos momentos de conferência das tarefas, antes de ela ir embora. A admiração se restringia ao resultado do trabalho, mas D. Laura não concebia como era a vida de sua funcionária fora de sua casa. O local da subalternidade tirava-lhe o direito de ter uma essência. A atmosfera de desconfiança e desconhecimento na relação patroa-empregada é retratada também em Lispector, na crônica “Por detrás da devoção”, quando a narradora afirma que teve uma empregada argentina que tinha um ódio declarado em forma de devoção: 

[...] Pseudamente me adorava. Nas piores horas de uma mulher – saindo do banho com uma toalha na cabeça – ela me dizia: como usted é linda. Bajulava-me demais. E quando eu lhe pedia um favor, respondia: como não! Usted vai ver o que vale uma argentina. Faço todo o que a senhora pede. Empreguei-a se referências [...]. (LISPECTOR, 1999, p. 50). 

Outro exemplo da condição ou não-condição das empregadas na obra clariceana está no texto “Como uma corsa”, em que Eremita, uma criada de 19 anos, é descrita como nem feia nem bonita, nem magra nem alta, traços indecisos, unhas, carnes, dentes. Uma mistura de resistência e fraqueza, uma doçura em forma de lágrimas. Tinha medo, fome, vergonha e um noivo. Era gentil e honesta. A narrativa ressalta a falta de personalidade da personagem na sua condição subalterna, que lhe impedia de qualquer manifestação: “os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos olhassem – abertos, úmidos.” (LISPECTOR, 1999, p. 71). Nada a patroa sabia sobre Eremita, tal distanciamento revela uma hierarquia social determinada por uma microfísica do poder que engessa as personagens em seus estereótipos: a patroa, fútil e desconfiada X a empregada prestativa e misteriosa.

Tal mistério advém do local de identificação da narrativa que reflete o universo da patroa. Em Becos da Memória, quando esse universo é invertido, o leitor tem acesso à vida da empregada. A narração se ocupa em descrever a trajetória de Ditinha até o momento em que vai trabalhar com D. Laura e continua depois do trabalho. Neste caso, o leitor percebe que o foco está na empregada, enquanto no outro está na patroa. A alteridade é o foco de ambas as autoras, entretanto, uma irá refleti-la a partir do ponto de vista economicamente privilegiado e outra do subalterno.

Em Evaristo, o subalterno ganha visibilidade, mas sua voz está na narradora que teve a experiência da subalternidade e não ocupa esse lugar. Daí a justificativa para tal diferença entre as autoras. O lugar da subalternidade é descrito quando o foco da narrativa retrata as reflexões da empregada ao chegar a casa depois do trabalho:
 

Ditinha estava cansada, humilhada. Olhou em seu barraco, uma sujeira. As roupas amontoadas pelos cantos. Olhou as paredes, teias de aranha e picumãs. Um cheiro forte vinha da fossa. [...] tirou o pai da cadeira de rodas e o colocou na cama. O pai fedia sujeira e cachaça. Lembrou-se da patroa tão limpa e tão linda como as joias. Pensou que o dia de amanhã seria duro. A casa estaria de pernas pro ar depois da festa. Seriam tantas louças. Na certa sobrariam doces e bolos. A patroa haveria de dividir com ela, com a cozinheira e com a babá. Traria para casa e seria a vez de os olhos dos filhos brilharem mais que qualquer joia. Ela seria um pouquinho feliz. (EVARISTO, 2006, p. 97).
 

A autora permite que o leitor tenha acesso a esse “outro lado” retratado como “profundezas” por Lispector em relação à Eremita. É possível afirmar que aquela “traduz” os pensamentos das personagens que esta não é capaz de apreender: eremita era ausente, 

às vezes o seu rosto se perdia em uma tristeza impessoal e sem rugas, essas ausências iam e vinham sem muita explicação como tudo na vida de Eremita”. [...] Quando voltava, estava mais rica, não se sabe em que fonte bebera, mas devia ser antiga e pura. [...] Voltava como um cabrito recém-nascido que se ergue sobre as pernas. [...] Se alguém descesse às suas profundezas, não encontraria nada além de profundezas. Seguindo muito além, talvez encontrasse um indício de caminho guiado por um bater de asas ou um rastro de bicho. Ela mesma não poderia narrar o que lhe sucedia, porque ela não sabia. (LISPECTOR, 1999, p. 71).
 

A narradora afirma que ela viera da floresta e em suas ausências, era para lá que ia. Uma escuridão, um lugar primitivo e ignóbil, já Ditinha é colocada como uma moradora da favela, mas vizinha de D. Laura. Morava a poucos minutos da casa da patroa, porém em um lugar totalmente adverso.

A caracterização feita pela narrativa é uma visão de fora, de uma terceira pessoa que se aproxima e observa o que é diferente e exótico para ela. Isso é facilmente percebido quando há a descrição da origem de eremita. A floresta representa o desconhecido, o exótico e primitivo. A favela talvez? Para Evaristo, sim.

A imprecisão com que ela é descrita também denuncia o ponto de partida desse enunciador. Ele não descreve Eremita, apenas faz algumas considerações sobre ela, como se nunca se detivesse para olhar seu rosto ou pensar sobre quem e como ela é. A narradora representa uma classe que vê o subalterno como um outro desconhecido. A essa narrativa, interessa o que Eremita não manifesta, não demonstra, por uma razão que ela não sabe qual é. As ausências dela, que são descritas por um enunciador que não vive a realidade de Eremita.

O silenciamento de Eremita é traduzido por Foucault, em Microfísica do Poder, quando o autor alega que o poder está ligado à verdade e à voz. O narrador representa a voz de uma classe, de uma sociedade. O texto, por exemplo, aborda a temática do furto como uma prática natural, como se todos já esperassem isso de uma criada. Não há profundidade, no que tange à questão social de causa e efeito do ato: 

A única marca de perigo por que passara era o seu modo fugitivo de comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da dispensa. A roubar de leve ela também aprendera das florestas. (LISPECTOR, 1999, p. 72). 

O conto finaliza com essa afirmação, como se a narrativa não desse conta da situação. O conflito clariceano em relação à alteridade ressurge nessa passagem, quando o leitor percebe o esforço da autora para evitar o julgamento na narrativa. Há uma insinuação de que a fome é o impulso para os atos ilícitos, pois somente ao comer o pão é que a personagem demonstra avidez ou aparenta perigo. O roubo é uma consequência do modo fugitivo de se alimentar, aprendido na floresta, certamente. O mesmo assunto é levantado em Evaristo quando Ditinha vai trabalhar mais feliz no dia seguinte à festa, pois sabe que poderá levar para casa doces e bolo.

Lispector tem uma particular preocupação com a fome. A crônica “Crianças chatas” retrata esse paradoxo, pois a autora sugere acreditar que o sofrimento causado pela fome é ficção e confessa sua incapacidade para lidar com a situação: “Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. O filho está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe. Ela responde com doçura: dorme”. (LISPECTOR, 1999, p. 23), a não possibilidade de ver tal cena como real retrata o distanciamento da autora dessa realidade e a impossibilidade de pensar na cena retrata a preocupação da autora com o fato de isso não ser ficção. Cena parecida aparece no conto “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo, quando a narradora afirma que a mãe fazia brincadeiras para despistar a fome: 

Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía. Ás vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se assentava na soleira da porta e juntas ficávamos contemplando as artes-nuvens no céu. Umas viram carneirinhos, outras cachorrinhos; algumas gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço, que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. (EVARISTO, 1990, p. 29).
 

A fome, aqui, é descrita com uma certa ternura. O universo lúdico é apontado como solução para tal sofrimento e a violência está num campo muito sutil, quando se pensa que era preciso brincar para distrair a fome. Já em “Crianças chatas”, a mãe, refletindo a angústia da narradora na impossibilidade de conceber essa realidade, responde violentamente aos apelos do filho faminto: “ela repete exasperada: durma. Ele insiste. Ela grita com dor: durma, seu chato! Os dois ficam em silêncio, no escuro, imóveis. Será que ele está dormindo? Pensa ela toda acordada. E ele está amedrontado demais para se queixar.” (LISPECTOR, 1999, p. 23). Evaristo traz uma alternativa para a situação descrita na angústia de Lispector da mesma forma que seus textos são uma alternativa para aqueles que retratam as situações subalternas sempre com a atmosfera da violência e da incapacidade de algum sentimento positivo.

Outro exemplo desse trato é a crônica “Mineirinho” (C.L.) em que a autora reflete sobre o paradoxo que viemos tratando até aqui. A narrativa começa questionando a postura da própria narradora ao reconhecer sua compaixão por um assassino: “É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram o Mineirinho do que seus crimes.” (LISPECTOR, 1999, p. 123). Nesse, a narrativa se anuncia coletiva e representante de um nós, que questiona sua piedade por um criminoso. A autora reconhece que há um nós que difere do eles por não conceber certos fatos sociais e por não conseguir compreender, de um outro lugar, como se dá toda a trama das injustiças sociais. Para a autora, Mineirinho possuía uma violência assustada e inocente, como a da criança que pede reclama da fome para a mãe que grita assustada. O sentimento paradoxal continua quando ela afirma:
 

Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo e Mineirinho [...] essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador – em amor pisado; essa coisa em que Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede. (LISPECTOR, 1999, p. 125).
 

Há, então, uma necessidade de aproximação do objeto narrado para que se possa compreendê-lo e entender o que há de um em outro. O que há de Lispector em Mineirinho ou Eremita, o que a faz culpada em relação ao subalterno. Evaristo trata da criminalidade, em ralação à Ditinha, sob um outro viés e sua justificativa foge do padrão convencional que a coloca como uma faminta que necessita roubar para sobreviver. O que Ditinha retrata é o conflito sofrido pela narrativa de Lispector, um conflito muito mais existencial do que físico em que feio e belo, rico e pobre, paixão e ódio se misturam a impulsionam para uma outra vida. A personagem, ao chegar ao quarto da patroa e se deparar com os tantos presentes ganhos na festa, não acredita no que vê, pensa estar em um sonho ou conto de fadas. Percebe-se que há uma inversão na impossibilidade apresentada anteriormente associada ao fato de uma criança não conseguir dormir de fome. Ditinha até se lembrou que fizera 29 anos na semana anterior, mas ninguém, nem ela, havia notado. Quando guardou os presentes, a criada viu um broche com uma “pedra verde que até parecia macia”. Ele adorava essa jóia e quando a patroa a colocava, ficava mais linda que nunca. Em um ímpeto, sem saber por que, nem para que ela recolheu a pedra e a colocou dentro do sutiã encardido, entre os seios.

Ao voltar para casa, a personagem sofre, seu corpo sangra com a marca da pedra, ela já não se dá conta das coisas, anda sem rumo, chega em casa sem saber o que fazer. Ditinha entrou no quarto da fossa, refletiu sobre sua vida: estava na merda, só tinha merda ali e, assim, joga a pedra nos excrementos. A empregada não se perdoa, vive em um conflito de culpa e submissão, até que é presa pelos policiais, denunciada pela patroa.

Após longa data, Ditinha volta para a favela envergonhada, dilacerada, incapaz de erguer a cabeça, olhar para os filhos. Os vizinhos descobrem sua volta no dia em que ia mudar, seu filho e amigos colocam-na, com todos os seus erros e enganos, aos olhos da favela. Inesperadamente, ouvem-se vozes emocionadas: Ditinha voltou! Choros e risadas invadem a favela para comemorar a volta dela. Carregaram-na como em um cortejo e colocaram-na, todos muito emocionados, dentro do caminhão de mudança como se fosse santa. Com toda essa emoção, Ditinha retirou as mãos dos olhos envergonhados e sorriu pela primeira vez desde o episódio da pedra que até parecia macia.

O trecho descrito é o ápice do que venho tratando neste texto, nota-se um narrador que representa a voz que se contrapõe ao anterior. Aqui se tem uma visão do quarto de despejo, do íntimo da subalternidade, lá há o envolvimento e a preocupação, mas isso não dá conta do mistério que é para a autora esse universo. Prova disso é o final do conto “Eremita”, em que há o reconhecimento dos furtos, uma justificativa para eles, mas nenhuma reflexão sobre a dimensão desse ato para a própria Eremita. Em nenhuma narrativa Clariceana, das estudadas aqui, é possível perceber a naturalidade da essência subalterna. Ela sempre aparece no âmbito do exótico, do misterioso ou piedoso, em uma narrativa violenta e sofrida pela culpa e paradoxal de querer compreender um universo do qual não se consegue ter as dimensões que ele ocupa.

As reflexões feitas por Ditinha ao longo da narrativa demonstram a simplicidade e ternura com que o tema é tratado. Ela não se reconhece na mansão, mas também não se sente bem em casa. A narrativa deixa claro que a empregada tem respeito e admiração pela patroa, que ela procura fazer tudo o mais perfeito possível para poder voltar no dia seguinte, mas a lida do dia-a-dia, a luta por dias melhores, o enfrentamento da realidade que é suja e pobre são alguns dos aspectos que impulsionam a quere uma pedra bela que aparenta ser macia.

Nota-se que o narrador prepara o leitor para a cena do furto. Mesmo o ato em si é de tal inocência que a personagem não sabe o que fará depois com a pedra roubada e nem tem ideia de seu valor material. Em momento algum esse gesto parece comum ou corriqueiro, embora a patroa devesse sempre ter aguardado por ele. É como se o narrador fizesse questão de justificar o ato para que a personagem não fosse julgada erroneamente.

Para Foucault (2003), o poder é uma força que atravessa todo o corpo social e deve ser considerado muito mais do que uma instância negativa que tem como função a repressão. Ele produz coisas, gera prazer e produz discurso. O abismo existente entre D. Laura e Ditinha ilustra essa relação de poder na sociedade. Enquanto aquela dita as regras, manda e cria as leis esta obedece e se vê cada vez mais subjugada à situação criada pela patroa graças ao poder que lhe foi concedido.

Para finalizar, mostramos a figura da criada Ditinha diante de sua comunidade – Eremita na floresta – sendo reconhecida aplaudida por seus pares que em momento algum a julgaram pelo seu ato. O enunciador deixa clara a sua identificação com a atmosfera da alegria presente nas festas da favela quando narra que

“as vozes e as emoções se liberam. Ditinha! Era Ditinha! A mulher havia voltado! [...] Grandes e crianças que nem estavam acostumados a grandes demonstrações de carinho correram para ela e a pegaram no colo. Andaram com ela ali em volta feito santo em andor. Gritando, chorando, rindo. Que bom, Ditinha havia voltado! Depois solenemente colocaram a mulher no caminhão como se colocassem uma santa no altar. Todos choravam. O motorista do caminhão enxugou uma lágrima no canto dos olhos. Ditinha, que se mantivera o tempo todo com o rosto entre as mãos, olhou para todos e sorriu. Era o primeiro sorriso desde aquele dia em que escondera no seio a pedra verde-bonita-suave que até parecia macia”. (EVARISTO, 2006, p. 126).
 

Essa passagem exemplifica bem a proximidade do enunciador do discurso com sua personagem. A cumplicidade que impera entre os moradores da favela é toda exposta nessa aqui quando a criada, é carregada como se tivessem revivendo seus medos, traumas; expurgando suas culpas, todos ali, em uma só emoção. Como se fosse um cortejo.

Enquanto os dramas clariceanos retratam a mulher da década de 50 denunciando sua alienação e apatia diante da sua existência, os de Evaristo refletem a figura feminina que sofre por lutar contra a fome, a pobreza e a discriminação. Ambas muito contribuíram para a questão do gênero na literatura brasileira, inovaram, cada uma a sua época e perspectiva, trazendo a mulher em cena e refletindo sobre sua condição, que é ainda vista como subalterna, seja por seu trabalho, seja por estar subjugada a um marido ou a uma sociedade machista. Pode-se pensar, então, em Conceição Evaristo como leitora de Clarice Lispector que, influenciada pela necessidade de inscrever seus dramas existenciais na literatura, o faz com uma perspectiva contemporânea, agregando ao gênero, reflexões de classe e raça.

 

Referências

ASSIS, Eduardo Duarte de. Notas sobre a Literatura Afro-descendente. In: Poéticas da Diversidade. Org. Marli Fantini Scarpelli e Eduardo Duarte de Assis. Belo Horizonte: UFMG/FALE: Pós-Lit, 2002. P. 47-61.

ASSIS, Eduardo de. Conceição Evaristo: literatura e identidade. Disponível em: <http//: www.letras.ufmg.br/literafro>. acesso em: 12/03/2011.

ESTANISLAU, Lídia Avelar. Feminino Plural. Brasil Afro Brasileiro. SOARES, Maria Nazareth (Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

EVARISTO, Conceição. Vozes-Mulheres. In: Cadernos Negros 28. São Paulo: Quilombhoje, 1990. P. 28.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

EVARISTO, Conceição. Da grafia–desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Representações performáticas brasileiras: Teorias, práticas e suas interfaces. ALEXANDRE, Marcos Antônio. (Org). Belo Horizonte: Mazza, 2007. P. 16-21.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 18 ed. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.

GOTLIB, Nádia Batella. Clarice – uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

PERROT, Michelle. As mulheres ou o silêncio da história. Travessa: Bauru, 2005.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Tradução Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

 

1 Professora de Língua Portuguesa efetiva do CEFET – MG, pesquisadora do grupo Letras de Minas, registrado no CNPq, mestre pela UFMG.

2 Becos da memória é um romance entrecortado de caráter multifocal, publicado em 2006, pela Mazza Editora.

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As fronteiras da palavra em Carolina Maria de Jesus

Maria Madalena Magnabosco*

Inicialmente agradeço o convite realizado pelo Grupo de Estudos Mulheres e Letras para a participação de um evento que nos devolve histórias e memórias de mulheres, principalmente daquelas que transgrediram os cânones e lutaram para serem ouvidas em contextos nem sempre muito acolhedores, como foram e ainda são diversos desses pautados por uma hegemonia patriarcal.

No ano do centenário de Carolina Maria de Jesus é uma honra compor essa mesa e partilhar com vocês da evocação da memória e da palavra testemunhal como constituinte de suas histórias.

Inicio utilizando um refrão da música “Angélica” de Chico Buarque de Hollanda: “Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho? Que canta sempre esse lamento? Que canta como dobra um sino?”

Quem é Carolina Maria de Jesus?

Podemos partir de diversos pressupostos para responder a essa pergunta, mas quando nos perguntamos “Quem?” Perguntamos pela ontologia, pela origem, pelo que principia Ser. E, Ser é linguagem. Nos dizeres de Heidegger (1927): “a linguagem é a morada do Ser”.

É desse princípio que parto para esboçar um fragmento da memória de Carolina Maria de Jesus em Quarto de Despejo.

Sabemos que a escrita sempre acompanhou Carolina, desde a mais tenra idade, a ponto de Eurípedes Barsanulfo ter se referido a ela, ainda criança, como Poetisa de Sacramento. Assim, apesar de todos os sofrimentos, faltas, discriminações, dificuldades de sua história, Carolina encontrava na escrita uma ressonância que lhe permitia transcender os cenários da realidade sócio-histórica-cultural e política em que vivia.

Escrever relatando o cotidiano de dentro da favela a retirava, por momentos, da ordem do trágico, de uma desolação para com o mundo. Através da escrita diária Carolina se reconstituía, não pela descrição linear do vivido, mas pela (re-) descoberta de seu eu. Carolina se reconhecia pela narrativa, pelo desafio em ultrapassar pela palavra o obstáculo entre sua vida e a realidade sufocante da favela. Escrever para esquecer a fome, a dor, a miséria. Escrever para suspender temporariamente a ordem do trágico. “Quando fico nervosa, não gosto de discutir. Prefiro escrever.” “Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes brilhantes. [...] É preciso criar esse ambiente de fantasia para esquecer que estou na favela” [sic].1

Quem é essa mulher que narra o cotidiano de sua situação-limite feminina, em um mundo basicamente formado pelos então considerados atributos masculinos da violência, da agressividade e da luta pela sobrevivência? Quem é essa “mulher negra num mundo dominado por brancos”, num espaço ditado por homens, sem posses em uma cidade moderna onde “administrar o pouco dinheiro é mais difícil que ganhá-lo”,2 escritora de livros em um ambiente de elite intelectual refinada e europeizada?

Vítima ou louca? Uma pergunta astuta para aqueles que não consideravam o “Quem”, que não ouviam o “Ser”, mas o substituíam pelo “Que” e consumiam modernamente os versos, palavras e rimas como elementos à margem de um cânone literário.

Desconsiderando essa dicotomia da vítima ou louca, própria da modernidade das letras e corpus cientificistas, Carolina (como Quem) sofreu a passionalidade daqueles que vivem as antinomias da existência sem conhecimento suficiente para compreendê-las e, se possível, transformá-las. Passionalidade da fome, do excesso de falta, da solidão na luta pela sobrevivência. Passionalidade da tragédia onde se dá a luta incessante entre potências antagônicas, tanto no mundo dos sentimentos como no mundo objetivo do fazer humano, o qual ainda não encontrou palavras e símbolos para representar determinadas vivências e emoções.

Nos dizeres de Albin Lesky:3 "Não é a oposição entre o homem e a sorte decretada [...] que constitui o núcleo essencial, mas sim o ser humano, sozinho, na patética expressão da coragem com que porta seu destino. À enormidade da dor responde o borbotar na paixão".

Essa patética expressão da coragem torna-se um núcleo que anima Carolina em seus movimentos intermitentes de potência-impotência, de dentro e fora das relações de gênero. A instabilidade de seu humor, o modo passional com que buscava firmar seu espaço no mundo, suas explosões, se ritmavam a partir desse núcleo. Afinal, após todas suas histórias, podemos dizer que a passionalidade— nesse contexto histórico-cultural da modernidade — nada mais é que uma resposta possível às vivências limites, que interditam a luta, a comunicação, a projeção criativa e construtiva da agressividade. É a expressão patética dessa coragem de ainda lutar pela vida lá onde não existem nem palavras, nem significantes que encenem uma troca comunicativa com o outro. É a expressão do ainda-não-saber-dizer, da palavra na fronteira, não pela falta de um desejo de comunicação, mas porque está ausente um significante que poderá suportar outras referências e significações do que seja o viver de uma mulher, como Carolina, nesse mundo já conhecido e reconhecido pelas “tecnologias de gênero” (Teresa de Lauretis).

Pelo ainda-não-saber-dizer ou pelas fronteiras de sua palavra surge na cena relacional a repetição de um comportamento que reincide como resposta à violência simbólica sofrida por Carolina. O trecho do texto e da vida que repete pode ser uma comunicação pela fissura, pela ruptura a partir da qual se buscam outras referências, onde se procuram outras respostas às interpelações sobre si própria, isto é, sobre a própria imagem e identidade, tal como nos coloca Homi Bhabha.

Assim, retorno a pergunta: “Quem é essa mulher?” e também a reincidência do estribilho: “Levantei. [...] Fui buscar agua. Cheguei em casa, aliás no meu barracão, nervosa e exausta. [...] Levantei as 7 horas. Alegre e contente. Depois que veio os aborrecimentos. [...] Despertei as 7 horas com a conversa dos meus filhos. Deixei o leito, fui buscar agua” (sic).4

Movimentos que se repetem e reincidem podem ser uma estratégia utilizada para comunicar o desejo de uma outra escuta sob outras leituras e escritas. Utilizando uma linguagem psicológica, o sintoma — enquanto reincidir de respostas — já é comunicação de outras consciências onde o sujeito, pelo exílio de antigos sentidos, viu-se expulso da familiaridade de seus conhecimentos e reconhecimentos. Seja essa familiaridade uma identidade de gênero, de classe, de raça, ideológica, da imagem corporal, o sujeito sente-se exilado dela e nela. Ele estranha e, ao mesmo tempo, inicia uma travessia, uma desconstrução no próprio estranhamento.

Esse é um dos momentos mais delicados do processo de habitar a fronteira das palavras pelo contexto de situação nas zonas potenciais e ambíguas da construção de novos símbolos que representem outras imagens. Se acolhido e valorizado como alteridade, esse momento é frutífero e transformador de significados. Entretanto, se rechaçado e concebido como loucura, perigo, sujeira e contaminação negativa, ele será apenas a reafirmação do então cultuado e valorizado por um raciocínio e por uma linguagem hegemônica da medicina, da psicologia e dos estudos sobre gênero, recolocando a dúvida: Vítima ou louca?

É no próprio conflito entre potências, no embate com as forças antagônicas e contraditórias que percorrem sua história que Carolina se defronta com a força/fragilidade de sua palavra testemunhal. A palavra reincidente no cotidiano de seu diário — que a devolve à sua ética — é a mesma que negativiza sua imagem perante o outro, já que nas escutas deste, ela (palavra) perde a função mediadora e transcendente entre o Ser de Carolina e a objetividade do mundo que passou a viver, principalmente após a publicação do livro Quarto de Despejo. Sua escrita tinha por objetivo suspender — pela mediação do testemunho narrativo — as vivências patéticas do dia a dia na favela através de uma linguagem que lhe despertava sonhos, desejos, bem como lhe possibilitava organizar sentimentos e pensamentos. Essa função mediadora de suas palavras, quando da recepção por um público progressista, torna-se não mais mediação, mas experiência dolorosa da dificuldade de transpor eticamente o mundo do progresso e desenvolvimento da modernidade. O que era mediação torna-se obstáculo, negatividade que explicita e acirra a angústia de Carolina ao perceber as parcas possibilidades de transformar o mundo pela justiça que ela tanto desejava.

Quanto mais sua palavra voava mundos através de eventos políticos dos quais participava — viagens a outros países, traduções para outros idiomas —, mais Carolina se debatia em seu deslocamento-exílio. Da palavra que agia como bálsamo sobre seu sofrimento surge a palavra com a qual ela deverá lutar exaustivamente para tentar consolidar politicamente5 sua liberdade e expressão da alteridade. Digo politicamente, pois essa palavra balsâmica, ao se tornar pública receberá julgamentos e avaliações de uma estrutura institucional e acadêmica inteiramente diversa da realidade da autora. Sob essas avaliações, suas palavras são interpretadas por critérios canônicos literários, comportamentais, estilísticos, políticos e sociais que não condiziam com o objetivo de sua escrita. Nas palavras de Meihy & Levine: 

Os leitores brasileiros reagiram ao diário de Carolina de forma consistente, objetiva e pesada, contrastando as visões de mundo expressas no texto com suas preferências políticas. Jânio Quadros deixou-se fotografar abraçando a escritora que ia, assim, oferecendo munição à crítica que a via como um sema sem controle da própria imagem. Ao mesmo tempo, outros filtravam passagens do livro para vazar suas mensagens: dom Helder Câmara, arcebispo progressista de Recife, disse que “haverá quem chorará como comunista quando ver um livro como este”. [...] Luís Martins, distanciando-se da autora, afirmava que “não sabia se Quarto de despejo seria, rigorosamente falando, um trabalho decente de literatura, mas é um livro que deixa marca. Outros aclamavam o livro como um manifesto que deveria ser lido pelos “políticos, administradores, e candidatos a cargos públicos”.6 

Cobrada pelas pessoas quanto a posicionamentos políticos, fidelidade partidária, pertença a grupos religiosos e comunitários, domínio sobre sua linguagem, Carolina torna-se uma mercadoria amada e odiada através da mídia. As brigas, irritações, agressividades de Carolina podem ser a luta dilacerante contra essas pressões para que fosse e pertencesse ao que nem conhecia e, também, contra a distorção ética de sua palavra quando interpretada pelas regras institucionais de um mundo já transfigurado por valores progressistas e partidário-higienistas. Seu humor intransigente e oscilante que a caracterizou como louca pode ser o modo que tinha para dizer: “Não é isso que quero falar. Vocês não estão entendendo. Me ouçam!” Em outras palavras, recorrendo a Zaratrusta, “seus ouvidos não são para o que diz minha boca”.

Infelizmente, no moderno contexto higienista do sexo-raça, para Carolina ser ouvida seria necessário uma “desinstitucionalização da escuta” por parte daqueles que participavam ativamente da formação ideológica das representações e imaginários sociais da modernização. Todavia, isto não aconteceu.

Perdida a mediação da palavra contextual (já que “não ouvida”) diminui-se a força do sujeito para defender-se, já que ele se torna minoria entre grupos e concepções legitimadas por instituições socioculturais e políticas hegemônicas. Perdida, confundida e misturada, Carolina passa a ser o emblema da contradição, da inconstância, da agressividade e, porque não dizer, da loucura. Diante de sua ingenuidade e pouco preparo para lidar com o mundo consumista das imagens e com os jogos sociais e políticos da época, ela se tornou o protótipo não só do favelado como oportunista, mas também da mulher perigosa que necessita ser colocada em seu devido lugar, ou seja, às margens da palavra ou no “quarto de despejo” da feminilidade.

Nesse contexto ruidoso, a consolidação política (de cidadã da pólis) de sua liberdade como alteridade foi se esgarçando, enfraquecendo e perdendo o sentido à medida que sua palavra era ouvida sob determinados significados já estruturados por categorias hegemônicas acima mencionadas.

A ordem do trágico — enquanto a desolação própria de uma incomunicabilidade com o outro, própria da irrepresentabilidade da experiência — presente nos textos-vida Quarto de despejo e Casa de alvenaria – diário de uma ex-favelada, não foi para esconder ou mesmo deformar a realidade do modernismo no Brasil, mas para realçar como uma representação simbólica pode tornar inaudível uma alteridade que busca, passionalmente, inserir-se e apropriar-se da e na voz, através da mediação de outros jogos de linguagem.

Esse ainda tem sido um dos grandes dilemas da mulher, ou seja, o conflito do dizer sem ser ouvida por outros paradigmas. A inaudibilidade torna a existência trágica e patética, torna a palavra uma sonoridade esvaziada, impedida de bordear outros sentidos. Sem sentido, a palavra volta-se contra o próprio sujeito, como em um efeito boomerang, e onde poderia haver o início de novos diálogos e novas escutas ocorre apenas uma reafirmação dos significados já instituídos e autorizados por representações legitimadas pela cultura. Nesse momento de impotência, ou melhor, do silêncio ruidoso da palavra, o sujeito fragilizado pelo ainda-não-saber-dizer (já que sem representações que o auto-representem) corre o risco de avaliar-se pejorativamente como “fora-da-ordem, louco, nervoso”, isto é, sem condições de trocas simbólicas e comunicativas com o outro.

Mediante tais argumentações, afirmo que a inaudibilidade de significados contextuais e enunciativos da dor leva o sujeito a reinscrever-se em símbolos legitimados pela cultura, dada a necessidade de vínculos que tornem possíveis algumas identificações com grupos e identidades culturais. Retirando-se do corpo vivido que sofre e do corpus linguístico que legitima e também estigmatiza sentidos da dor, o sujeito se (re-)inscreve na situação-limite da incomunicabilidade.

Creio ser esta uma das impotências vivenciadas pelas mulheres que — ao resistirem aos discursos autorizados de gênero — ainda-não-podem-dizer. É o encontro com a palavra silenciada que, muitas vezes, as levam a se acreditarem habitantes dos quartos de despejo da feminilidade. Esta seria uma das ordens do trágico que levam Angélicas, Marias, Veras e Carolinas a se desconhecerem e a cantarem sempre o mesmo estribilho, por não poderem embalar, agasalhar e acolher o s(eu) filho que estava para nascer: a palavra nova já inscrita e escrita em seus corpos-testemunhos e auto representadas por outros símbolos, signos, significantes e linguagens: as narrativas testemunhais.

Notas

1 JESUS. Quarto de despejo, p. 19 e 52.

2 MEIHY; LEVINE. Cinderela Negra – a saga de Carolina Maria de Jesus, p. 63.

3 LESKY. A tragédia grega, p. 183.

4 JESUS. Quarto de despejo, 1995. O trecho foi transcrito conforme escrita original da autora.

5 O conceito de política utilizado no projeto encontra seus fundamentos em ARENDT. A condição humana, p. 15: “A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas essa pluralidade é especificamente a condição — não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam — de toda vida política. (...) A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.”

6 MEIHY; LEVINE. Cinderela Negra – a saga de Carolina Maria de Jesus, p. 31.

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

LAURETIS, Theresa. As tecnologias do gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.). Tendências e impasses – o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 5. ed. São Paulo: Ed. Ática, 1995.

LESKY, Albin. A tragédia grega. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1990.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; LEVINE, Robert. Cinderela Negra - a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.

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* Maria Madalena Magnabosco é Psicóloga Clínica, Psicopedagoga, Doutora em Literatura Comparada, com Pós-doutorado em Estudos Culturais. Professora de cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia. E-mail para contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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Serendipidades!

 

"You don’t reach Serendip by plotting a course for it.

You have to set out in good faith for elsewhere and lose

your bearings serendipitously”. 

John Barth, em The Last Voyage of Somebody, the Sailor (Nova York, 1991)

 

O uso da palavra serendipity apareceu pela primeira vez em 28 de janeiro de 1754, em uma carta de Horace Walpole (filho do ministro, antiquário e escritor Robert Walpole, autor do romance gótico The Castle of Otranto). Na carta, Horace Walpole conta ao seu amigo Horace Mann como tinha encontrado por acaso uma valiosa pintura antiga, complementando: "Esta descoberta é quase daquele tipo a que chamarei serendipidade, uma palavra muito expressiva, a qual, como não tenho nada de melhor para lhe dizer, vou passar a explicar: uma vez li um romance bastante apalermado, chamado Os três príncipes de Serendip: enquanto suas altezas viajavam, estavam sempre a fazer descobertas, por acaso e sagacidade, de coisas que não estavam a procurar... .

Serendipidade então passou a ser usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados. Ou seja, precisamos ter pelo menos um pouco de conhecimento sobre o que "descobrimos" para que o feliz momento de serendipidade não passe por nós sem que sequer o notemos.

Um defeito de cor é fruto da serendipidade. Ele não só contém uma história, como também é conseqüência de uma outra história que, depois de pensar bastante, percebi que não posso deixar de contar. Até poderia, mas, além de não estar sendo honesta, também estaria escondendo o que ajuda a fazer deste livro um portador de histórias especiais. A primeira destas histórias aconteceu em janeiro de 2001, dentro de uma livraria. Eu estava na seção de guias de viagem procurando informações detalhadas e ilustradas sobre a cultura, o povo, a história e, principalmente, a música de Cuba. Separando alguns guias para ver com calma, vários deles, como peças de dominó, caíram da prateleira, e consegui segurar apenas um, antes que fosse ao chão. Era Bahia de Todos os Santos - guia de ruas e mistérios, do Jorge Amado. Foi aí que aconteceu a primeira serendipidade. Na época, eu estava cansada de morar em uma cidade grande, cansada da minha profissão, tinha acabado de me separar e queria vida nova, em um lugar novo, fazendo coisas diferentes e, quem sabe, realizando um velho sonho: viver de escrever. Desde o dia em que o livro de Jorge Amado caiu nas minhas mãos, eu sabia que este lugar de ser feliz tinha que ser a Bahia.

Ainda na livraria, de pé diante da prateleira, abri Bahia de Todos os Santos e comecei a ler um prólogo chamado "Convite": "E quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua trepidante da cidade mais agitada, não tenhas, moça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa cotidiana."

Na hora, tive a sensação de que ele tinha escrito aquelas palavras exata­mente para mim, o que foi virando certeza quando continuei correndo os olhos pelo doce e tentador convite. Bahia. A Bahia me esperava e Jorge Amado ainda estava vivo para me apresentar a ela. Num trecho mais adiante, ele mesmo dizia: "vem e serei teu cicerone." Eu só não tinha ainda a mínima idéia do que fazer na Bahia, mas quando o momento é de serendipidade, as coisas simples­mente acontecem. Foi por isso que, algumas páginas adiante, encontrei o seguinte texto:

"( ... ) Do Alufá Licutã, quem conhece o nome, os feitios, o saber, o gesto, a face do homem?

Comandou a revolta dos negros escravos durante quatro dias e a cidade da Bahia o teve como seu governante quando a nação malê acendeu a aurora da liberdade, rompendo as grilhetas, e empunhou as armas, proclamando a igualdade dos homens. Não sei de história de luta mais bela do que esta do povo malê, nem de revolta reprimida com tamanha violência.

A nação malê não era apenas a mais culta entre quantas forneceram mercadoria humana para o tráfico repugnante, em verdade os escravos provindos dessa nação alcançavam os preços mais altos, sendo não só os mais caros, tam­bem os mais disputados. Serviam de professores para os filhos dos colonos, as contas dos senhores, escreviam as cartas das iaiás, intelectual­mente estavam bem acima da parca instrução dos lusos condes e barões assina­lados e analfabetos ou da malta de bandidos degredados à longínqua colônia. O mais culto dos malês era o Alufá Licutã.

Levantaram-se os escravos, dominaram e ocuparam a cidade. Logo derrotados pelo número de soldados e pela força das armas, a ordem dos senhores furiosos foi matar todos os membros da nação malê, sem deixar nenhum. Homens, mulheres e crianças, para exemplo. Ordens executadas com requintes terríveis, para que o exemplo perdurasse. Assim aconteceu. ( ... ) Da revolta e do chefe pouco se sabe. No mais, o silêncio. É o caso de se perguntar onde estão os jovens historiadores baianos, alguns de tanta qualidade e coragem intelectual, que não pesquisam a revolta dos malês, não levantam a figura magnífica do chefe? ( ... ) Tema para estudos históricos que venham repor a verdade, redimir a nação condenada, ressuscitar o alufá, retirá-lo da cova funda do esquecimento na qual o enterrou a reação escravagista. Tema para um grande romance ...”

Acho que esqueci pelo chão os guias sobre Cuba, encantada com o que tinha acabado de descobrir, porque, apesar de não pertencer à categoria de “jovens historiadores baianos", estava claro que era para mim a provocação sobre escrever o romance. Durante quase um ano, por meio da internet, de telefonemas para a Bahia, de buscas em livrarias, bibliotecas, sebos, e de material emprestado, pesquisei sobre os malês, escravos muçulmanos, bravos, inteligentes, e que realmente tinham sido banidos da história. Até então eu nunca tinha ouvido falar deles. Aquele foi também um ano desesperador, porque tudo que eu queria era estar na Bahia, andando pelas ruas por onde os malês tinham andado, entrando nas igrejas onde eles tinham entrado, nadando no mar no qual eles tinham nadado, pois tinha certeza de que, se não estivesse in loco, o livro não sairia. Eu acreditava que alguma coisa no ar da Bahia me faria ouvi-los e senti-los, muito mais do que apenas conhecê-los. Mas não tinha como ir, não tinha dinheiro nem trabalho para me sustentar por lá.

Exatamente um ano depois daquele fortuito encontro com Bahia de Todos os Santos, finalmente fui conhecer Salvador. Para falar a verdade, apenas para poder dizer que já tinha estado lá antes de despachar a mudança. Já havia passado alguns dias em Salvador, procurando lugar para morar, quando resolvi conhe­cer a Ilha de Itaparica. Saí para caminhar pela Praia do Duro, em Mar Grande, e fui parar em Gamboa, atraída por um tronco de árvore que se vê de longe, não só pelo tamanho, que é considerável, mas também pelo inusitado de estar "plantado" na areia. Parei para olhá-lo de perto e percebi que um homem tam­bém me olhava, sentado no muro de uma casa bem em frente ao tronco. Ele percebeu meu interesse e se aproximou, contando que estávamos diante do que tinha sido a "Árvore do Amor", nascida ali mesmo, na areia, em condições adversas e transformando aquele trecho da praia em um famoso ponto de en­contro dos enamorados da ilha, e por isso o nome. Ali, casais se entregavam ao amor e, talvez estimulados pela natureza, pela sombra frondosa da árvore, pela tranqüilidade e beleza do mar, pela magia da ilha, costumavam ultrapassar os limites do recato dos veranistas que, a partir da década de 1970, invadiram a ilha com magníficas casas à beira-mar. A Árvore do Amor então começou a definhar - dizem que envenenada por uma veranista mais pudica e insensível - até que tombou. Mas tinha resistido bravamente antes de morrer, pois du­rante anos o tronco ainda deu galhos e folhas, até secar de vez e se tornar o que eu estava vendo.

Apaixonei-me por aquela história, e talvez para que o homem conversasse um pouco mais comigo e contasse outros detalhes sobre a árvore, perguntei se ele não sabia de alguma casa por ali que estivesse para alugar. Qual não foi a minha surpresa quando ele me indicou a casa ao lado, que eu ainda não ti­nha percebido, mas era linda, escondida atrás de um jardim bem cuidado, abraçada por amplas varandas e iluminada pela claridade que entrava por enor­mes portas envidraçadas e emolduradas de vermelho. O homem ainda disse que eu poderia falar com o caseiro, que por sinal estava por lá naquela hora. Conheci a casa, que por dentro era ainda mais fascinante, grande para as mi­nhas necessidades, mas perfeita para os meus sonhos de morar em um paraíso onde tivesse tempo e sossego para escrever o livro sobre os malês. Peguei o número do telefone do proprietário, com quem falei várias vezes, até chegar­mos a um preço que eu pudesse pagar.

Antes de voltar para Salvador, ainda naquele dia e enquanto esperava a balsa, que sairia aproximadamente uma hora mais tarde, resolvi conhecer a igreja e aproveitar para agradecer a descoberta daquela casa, que eu já considerava minha próxima morada. A igreja era pequena, mas muito bonita e bem cuidada, o que me fez ter vontade de fazer algumas fotos. Mal tirei a câmera da bolsa, apareceu ao meu lado uma menina, que disse adorar fotografias e que estava com a mãe, encarregada da limpeza. Ela era simpática e esperta, me acompanhou pela igreja, contando quem eram os santos que estavam nos nichos e história de cada um deles, e me mostrou os melhores ângulos para as fotos, pedindo depois que eu tirasse uma fotografia dela. Quando eu já ia bater a foto, ela pediu que esperasse e foi chamar a mãe, que estava limpando a sacristia. A mulher apareceu dizendo que a filha adorava tirar fotografias e que, justamente naquele dia, estava fazendo aniversário; a foto seria um grande presente para ela. Tiramos várias, da menina sozinha, da mãe, das duas juntas, em pé, sentadas nos bancos e na cadeira do padre. Perguntei como eu faria para entregar as fotos, e a mulher me ditou um endereço que achei ser brincadeira, algo como “rua da praça, sétima casa depois da farmácia”. Mas não era, e logo eu teria um endereço como aquele. Anotei em um papel qualquer e nunca mais me lembrei de onde o guardei, se é que guardei, pois, morando na ilha, eu poderia ir até a igreja pessoalmente.

Voltei para Salvador, onde fiquei mais alguns dias, e depois fui até São Paulo, permanecendo apenas o tempo necessário para arrumar minhas coisas e pegar o avião de volta, em definitivo. Eu me mudei para a Bahia em março de 2002, e durante mais de sete meses fui a feliz moradora da casa de portas e janelas vermelhas, ensolarada e colorida, na Ilha de Itaparica, "Praia de Gamboa, Rua da Praia, s/n, fundos com Rua da Igreja”, até que um assalto me fez ficar com medo de continuar morando lá, e me mudei para um flat em Salvador. Mas esta é outra história, e antes dela muitas coisas aconteceram. Nos primeiros dias na ilha, nem pensei em trabalhar; estava tão feliz por morar naquele lugar maravilhoso que passava horas e horas caminhando pelas praias, pelas ruínas, pelos fortes e pelas ilhas vizinhas. Acho que nunca tinha sido tão feliz, acreditando ter encontrado o meu paraíso na terra. Mais de um mês depois, achei que já era hora de começar a escrever a história dos malês, que, afinal, tinha o real motivo da minha mudança. Com idas semanais a Salvador, encontrei muito material para pesquisa. Aliás, comecei a achar que era material demais e a acreditar que muito mais gente, além de mim e antes de mim, tinha aceitado o convite de Jorge Amado e produzido páginas e páginas sobre os malês e as revoluções, coisas que ficavam apenas pela Bahia e não eram divulgadas no resto do país. Abandonei a ideia de escrever o livro sobre os malês, porque já não havia mais nada de novo a ser contado sobre eles, e escrevi Ao lado e à margem do que sentes por mim. Um romance misturando ficção e autobiogra­fia, que me ajudou a enumerar muitos questionamentos que eu vinha fazendo a respeito do amor, da vida, do passado, do futuro, das escolhas e das imposi­ções. Quando mais da metade desse livro estava pronta, aconteceu o assalto, e percebi que não teria mais tranqüilidade para continuar na ilha. Em menos de uma semana eu já estava morando em Salvador, e três meses depois coloquei o ponto final no romance. Foi então que aconteceu a mais feliz das serendipidades.

Como achei que não tinha mais nada para fazer na Bahia, já estava puxan­do o fio de uma história acontecida em São Luís, no Maranhão, tomando o cuidado de me informar sobre a quantidade de material produzido sobre ela, que era quase nada. Começando a providenciar a mudança, encontrei as fotos tiradas na igreja da ilha, das quais nem me lembrara durante todo aquele tem­po. Resolvi aproveitar para passar um fim de semana lá, para me despedir dos amigos e ir até a igreja, ver se encontrava uma das fotografadas, mãe ou filha. No sábado de manhã, encontrei a igreja fechada e, à tarde, estava sendo cele­brada uma missa. Quando terminou, não vendo nenhuma das duas, resolvi perguntar por elas a uma senhora que recolhia as velas e os paramentos. Mostrei as fotos e a senhora disse que as conhecia, indicando mais ou menos onde moravam, na praia de Amoreiras.

No domingo de manhã segui para Amoreiras, parando de vez em quando para perguntar e seguindo as indicações que me davam, até chegar a uma casa bastante simples, numa rua estreita, sem calçamento e sem saída. Elas logo se lembraram de mim, a pessoa que tinha tirado as fotos no dia do aniversário da Vanessa; era esse o nome da menina. Dona Clara, a mãe, me convidou para tomar um café e, quando entrei na sala, percebi uma inusitada mesa de centro, com o tampo de vidro sustentado por pilhas e pilhas de papéis e revistas. Elogiei, dizendo que era bom saber que alguém ali gostava muito de ler. Dona Clara disse que não era bem assim, que usava as revistas para apoiar o vidro da mesa, mas que também serviam para que as crianças recortassem figuras para algum trabalho de escola. Quanto aos papéis, o filho mais novo, de seis anos, usava-os para desenhar do lado em que ainda não tinham sido usados. Ela chamou o menino, que brincava no quintal, e pediu-lhe que me mostrasse os desenhos que fazia. Ele, Gérson, todo feliz com a platéia, correu para dentro da casa e voltou com folhas e mais folhas de desenhos. Nada de especial, mas olhei com atenção e até elogiei, pois, incentivado, o menino podia até melho­rar. Nunca se sabe onde estão escondidos os grandes talentos.

Virando um dos papéis, amarelado pelo tempo e que deixava vazar a escri­ta em caneta-tinteiro para o lado dos desenhos, percebi que parecia um docu­mento escrito em português antigo, as letras miúdas e muito bem desenhadas, uma escrita contínua, quase sem fôlego ou pontuação. A leitura daquela folha já estava bastante prejudicada, não só pela interferência do desenho do meni­no no lado oposto, mas também porque este parecia ter sido feito sobre uma superfície porosa, que bem podia ser o chão de cimento cru da sala, com os traços bastante calcados, fazendo com que a folha se rasgasse em alguns pon­tos. Peguei outro papel que tinha um desenho menor e, assim que o virei, a primeira palavra que consegui ler foi "Licutan". Surpresa, perguntei se eles sabiam quem tinha escrito aquilo, ao que dona Clara respondeu que não sa­bia, e que nem parecia escrito na nossa língua, pois a filha mais velha, a Rosa, que lia muito bem, tinha tentado ler, mas não conseguira. Eu disse que era a nossa língua sim, só que escrita de um modo antigo, e que provavelmente aquele documento era de uma época em que nenhum deles tinha nascido ainda. Dona Clara perguntou se eu conseguia ler e respondi que talvez sim, mas que teria que ser com calma. Perguntei onde ela tinha encontrado tais papéis, que fica­vam ainda mais fascinantes à medida que eu ia reconhecendo outros nomes, outras situações e alguns lugares que me remetiam à história dos malês. Ela então contou que tinha pegado os papéis, junto com algumas revistas, na Igre­ja do Sacramento, na vila de Itaparica, onde também fazia limpeza. Uma troca de padres levou o padre antigo a pedir que ela se desfizesse de tudo que estava guardado em um quartinho nos fundos da casa paroquial, e com dó de jogar fora, principalmente as revistas cheias de figuras, ela pediu permissão para le­var para casa. Quase tinha posto fogo nos papéis, mas se lembrou de que o Gérson vivia procurando papel para desenhar e que, quando não encontrava, desenhava até nas paredes.

Pedi ao Gérson que me mostrasse todos os papéis iguais àqueles que ele ainda tivesse, e era uma quantidade considerável, uma pilha de mais ou menos 30 ou 35 centímetros de altura. Perguntei se eles poderiam me emprestar aquilo tudo, pois eu queria tentar entender o que estava escrito ali, e dona Clara disse que eram meus, que eu nem precisava devolver. Gérson fez cara de protesto, e eu disse que daria a ele uma quantidade ainda maior de papéis, todos novinhos dos dois lados, e ainda canetas, lápis de cor, giz de cera, tintas, pincéis e tudo mais de que ele precisava para fazer muitos desenhos. O menino riu de orelha a orelha, mas não tanto quanto eu, que tinha certeza de ter encontrado ali muito mais do que ousara procurar. Perguntei a dona Clara quando ela levara aquilo tudo para casa, e ela disse que não tinha nem uma semana, que o padre novo nem tinha chegado ainda. Dei graças por não ter me lembrado de entregar as fotografias antes, porque, nesse caso, aqueles papéis teriam se perdido para sem­pre, nos costas dos desenhos de Gérson.

Quando fui embora, feliz com o meu tesouro, eles me pediram para voltar quando conseguisse ler tudo que estava escrito, para contar a história; e eu pro­meti que sim, que eles seriam os primeiros a saber. Mas voltei muito antes disso, logo no dia seguinte, com os materiais que tinha prometido ao Gérson. Acho que isto aliviou um pouco a minha consciência por estar tirando deles um docu­mento tão importante como aquele. Hoje já não penso mais assim, e foi por isso que resolvi contar aqui como tudo aconteceu. Acredito que poderia assinar este livro como sendo uma história minha, toda inventada - embora algumas par­tes sejam mesmo, as que estavam ilegíveis ou nas folhas perdidas, pois dona Cla­ra me contou que Gérson amassava e jogava fora os desenhos dos quais não gostava. Se eu me apropriasse da história, provavelmente a autoria nunca seria contestada, pois ninguém até então sabia da existência dos manuscritos, nem em Itaparica nem alguns historiadores de Salvador para quem os mostrei.

Depois de escrever e revisar este livro, entreguei todos os papéis a uma pessoa que, com certeza, vai saber o que fazer com eles. Mesmo porque esta pode não ser uma simples história, pode não ser a história de uma anônima, mas sim de uma escrava muito especial, alguém de cuja existência não se tem confirma­ção, pelo menos até o momento em que escrevo esta introdução. Especula-se que ela pode ser apenas uma lenda, inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis, ou, no caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam. Ou então uma lenda inventa­da por um filho que tinha lembranças da mãe apenas até os sete anos, idade em que pais e mães são grandes heróis para seus filhos. Ainda mais quando observados por mentes espertas e criativas, como era o caso deste filho do qual estou falando, que nasceu livre, foi vendido ilegalmente como escravo, e mais tarde se tornou um dos principais poetas românticos brasileiros, um dos primeiros maçons e um dos mais notáveis defensores dos escravos e da abolição da escravatura. Um homem inteligente e batalhado que, tendo nascido de uma negra e de um fidalgo português que nunca o reconheceu como filho, conseguiu se tornar advogado e passou a vida defendendo aqueles que não ti­veram a sorte ou as oportunidades que ele tão bem soube aproveitar. O que você vai ler agora talvez seja a história da mãe deste homem respeitado e admi­rado pelas maiores inteligências de sua época, como Rui Barbosa, Raul Pompéia e Silvio Romero. Mas também pode não ser. E é bom que a dúvida prevaleça até que, pelo estudo do manuscrito, todas as possibilidades sejam descartadas ou confirmadas, levando-se em conta o grande número de coincidências, como nomes, datas e situações. Torço para que seja verdade, para que seja ela própria a pessoa que viveu e relatou quase tudo o que você vai ler neste livro. Não pela história, que não desejo a ninguém, e logo você vai saber por quê.

Bem, agora fique com a história que, conforme prometi, foi contada em primeira mão para dona Clara e sua família, em deliciosas tardes na praia de Amoreiras. Nunca é demais lembrar que tinham desaparecido ou estavam ile­gíveis várias folhas do original, e que nem sempre me foi possível entender tudo que estava escrito. Optei por deixar algumas palavras ou expressões em iorubá, língua que acabou sendo falada por muitos escravos, mesmo não sen­do a língua nativa deles. Nestes casos, coloquei a tradução ou a explicação no rodapé. O texto original também é bastante corrido, escrito por quem deseja­va acompanhar a velocidade do pensamento, sem pontuação e quebra de li­nhas ou parágrafos. Para facilitar a leitura, tomei a liberdade de pontuá-lo, dividi-lo em capítulos e, dentro de cada capítulo, em assuntos. Espero que Kehinde aprove o meu trabalho e que eu não tenha inventado nada fora de propósito. Acho que não, pois muitas vezes, durante a transcrição, e principal­mente durante a escrita do que não consegui entender, eu a senti soprando palavras no meu ouvido. Coisas da Bahia, nas quais acredita quem quiser...

Boa leitura!

Ana Maria Gonçalves

As sementes da descoberta flutuam constantemente à nossa volta, mas só lançam raízes nas mentes bem preparadas para recebê-las.

Joseph Henry

 

(Um defeito de cor, p. 9-17).

 

 

 

A Ilha dos Frades

 

Eu me senti quase feliz ao avistar a Ilha dos Frades. Uma felicidade que talvez pudesse ter sido chamada de alívio, como aconteceria várias outras vezes em minha vida. Por causa da beleza da ilha, fiquei impressionada com as cores, com o ar, com as novas sensações, com a esperança de tudo nem ser tão ruim assim. Ao subir as escadas do porão e ver primeiro o céu azul, depois a luz do sol quase me cegando, fazendo com que os outros sentidos ficassem mais aten­tos. Tive vontade de nascer de novo naquele lugar e ter comigo os amigos de Uidá. Havia um murmúrio do mar, um cantaréu de passarinhos, homens gritando numa língua estranha e melodiosa. Nascer de novo e deixar na vida passada o riozinho de sangue do Kokumo e da minha mãe, os meus olhos nos olhos cegos da Taiwo, o sono da minha avó. O mar era azul e nos levava tranquilos até uma ilha que, de longe e de cima do navio, não parecia ter nada além de árvores e da pequena faixa de areia branca. Algumas pessoas festeja­ram, deslumbradas, esquecendo-se de que iam virar carneiros, mesmo que fossem carneiros do paraíso. Eu tentava imaginar o que o Akin diria se eu con­tasse sobre aquele lugar ou, melhor ainda, se ele visse tal lugar. Desembarca­mos do mesmo jeito que subimos a bordo, mas mandaram os homens na frente. Alguns saudaram a terra, saudaram a areia, batendo com a testa no chão. Os muçurumins pareciam não saber para que lado se virar e rezar, e demoraram olhando o céu até se decidirem, provavelmente baseados na posição do sol.

O sol estava quente e em pouco tempo já ardia na pele nua e acostumada à escuridão do navio, mas que ao mesmo tempo era refrescada pelo que parecia o vento harmatã, em África. Procurei o branco que queria a mim e à Taiwo como presente, mas não o encontrei, pois devia ter desembarcado assim que chega­mos. Para falar a verdade, acho que fiquei feliz por ele não me querer mais, porque assim podia ficar na ilha, junto com os outros. A Tanisha também estava feliz e me abraçou. Da praia, o Amari e o Daren acenaram para ela, que agrade­ceu por estarem todos vivos. Nós não víamos a hora de desembarcar também, mas, disseram que antes teríamos que esperar um padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha sido batizada em África, já tinha recebido um nome e não queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em terras do Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria através do meu nome que meus voduns iam me proteger, e que também era através do meu nome que eu estaria sempre liga­da à Taiwo, podendo então ficar com a metade dela na alma que nos pertencia.

O escaler que carregava o padre já estava se aproximando do navio, enquan­to os guardas distribuíam alguns panos entre nós, para que não descêssemos nuas à terra, como também fizeram com os homens na praia. Amarrei meu pano em volta do pescoço, como a minha avó fazia, e saí correndo pelo meio dos guardas. Antes que algum deles conseguisse me deter, pulei no mar. A água estava quente, mais quente que em Uidá, e eu não sabia nadar direito. Então me lembrei de Iemanjá e pedi que ela me protegesse, que me levasse até a terra. Um dos guardas deu um tiro, mas logo ouvi gritarem com ele, provavelmente para não perderem uma peça, já que eu não tinha como fugir a não ser para a ilha, onde outros já me esperavam. Ir para a ilha e fugir do padre era exatamente o que eu queria, desembarcar usando o meu nome, o nome que a minha avó e a minha mãe tinham me dado e com o qual me apresentaram aos orixás e aos voduns.

 

(Um defeito de cor, p. 62-64).

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As heranças africanas na narrativa de Mãe Beata de Yemonjá

Mitologia, autoria, oralidade

 

Giovanna Soalheiro Pinheiro*

 

E, enquanto os homens tocavam seus tambores,

Vibrando os batás e agogôs, soando os xequerês e adjás,

Enquanto os homens cantavam e davam vivas e aplaudiam,

Convidando todos os humanos iniciados para a roda do xirê,

os orixás dançavam e dançavam e dançavam.

Reginaldo Prandi

 

A memória cria a corrente de tradição

Que passa um acontecimento de geração em geração.

Walter Benjamin

 

O mito e o sagrado

A mitologia africana dos orixás é tão admirável e bela quanto a mitologia dos deuses gregos e romanos, no entanto, é pouco difundida e, menos ainda, analisada em nosso meio acadêmico. Os mitos da cultura européia foram contados e recontados em séculos de expansão cultural do ocidente. A cultura africana, por sua vez, ficou em segundo plano e, somente com a emergência dos estudos culturais, tornou-se mais manifesta, relativizando uma tradição que, até então, apregoava somente o estudo dos cânones universais. A literatura de Beatriz Moreira Costa – Mãe Beta de Yemonjá – arquiteta-se, sobretudo, a partir de uma expressão oral, centrada na tradição da memória coletiva circundada por elementos pertencentes à cultura e ao substrato mítico-religioso afro-brasileiro. Segundo Mircea Eliade:

O mito conta uma história sagrada, ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. (ELIADE, 1972, p. 11).

A estrutura mítica nos remete diretamente ao contato comunicativo com o espaço sagrado, visto que, para o homem religioso, não existe coesão espacial sem hierofania, ou seja, sem uma ligação direta com os deuses. O mito é uma necessidade cósmica para a explicação da essência dos seres e das coisas presentes no universo. Eliade revela que a palavra mito "é hoje empregada tanto no sentido de 'ficção' ou 'ilusão', como no sentido – familiar sobretudo aos etnólogos, sociólogos e historiadores de religiões – de ‘tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar’."(ELIADE, 1972, p. 8) É por essa razão que o sagrado mostra-se em criações da Mãe-Natureza. Não são as rochas, as flores, os bichos e as vegetações que são idolatrados, mas sim o que eles simbolizam para as sociedades. Nota-se, desse modo, que nas obras de Beata Yemonjá, Caroço de dendê e Histórias que minha avó contava, temos a mitologia dos orixás pontuando grande parte de suas narrativas, ora em planos primários, ora em secundários. Na composição da escritora, podemos observar um elo entre a narração popular e o objeto mágico-religioso, o que configura tanto os mitos de criação e de origem, quanto as narrativas moralistas, as quais visam aos ensinamentos de toda a comunidade.

Observemos o conto “Caroço de dendê”, que deu nome ao seu primeiro livro:

Quando o mundo foi criado, o caroço de dendezeiro teve uma grande responsabilidade dada por Olorum, a de guardar dentro dele todos os segredos do mundo. No mundo Ioruba, guardar segredos é o maior dom que Olorum pode dar a um ser humano. É por isso que todo caroço de dendê que tem quatro furinhos é o que tem todo o poder. Através de cada furo, ele vê os quatro cantos do mundo para ver como vão as coisas e comunicar a Olorum. E mais ninguém pode saber desses segredos, para não haver discórdia e desarmonia. É por meio dessa fórmula que o mundo tem seus momentos de paz. Existe também o caroço de dendê que tem três furos, mas a esse não foi dada a responsabilidade de guardar os segredos. Existe uma lenda que diz que Exu, com raiva desta condição que Olorum deu ao coco de dendezeiro de quatro furos, quis criar o mesmo poder de ver tudo à sua moda, com brigas e discórdias. Ele chamou o coco dendê de três furos e disse:

─ Olhe, de hoje em diante, eu quero que você me conte tudo o que vê.

Aí o dendê lhe respondeu:

─ Como? Se eu só tenho três olhos e não quatro, como meu irmão, a quem Olorum deu este poder?

─ Ousas me desobedecer, dendê? – disse Exu aborrecido.

─ Sim! Tu não és mais do que aquele que é responsável pela minha existência e a tua ─ respondeu o coco de dendê.

Dizendo isto, sumiu. Exu, desta vez, não foi feliz na sua trama. (YEMONJÁ, 2002, pág 97).

Temos, na história acima em primeiro plano, isto é, na base da estrutura narrativa, o mito da criação do universo. Na cultura Ioruba, explica-nos a narradora, a alegoria do caroço de dendê, de três e de quatro furos, deve ser associada à paz no universo em harmonia com a revelação e com os segredos do planeta. Olorum tem o controle do mundo, cabendo ao homem e aos outros orixás o respeito às regras por ele impostas.

Olorum ou Olodumare ─ O Deus supremo ─ é o orixá que simboliza o céu, tendo como atributos a totalidade, a perfeição e a universalidade. Observa-se, no relato acima, que essas qualificações são responsáveis pelo conhecimento total dos segredos do universo, expresso na figura do caroço de dendê de quatro furos. Exu, por sua vez, é aquele que descerra os caminhos e, por essa razão, é sempre o primeiro orixá a ser invocado nas aberturas dos trabalhos e nas oferendas. Figura a energia dinâmica, o fluido vital e ainda provoca algumas discórdias entre os homens e o mundo sagrado. Está associado, ao mesmo tempo, com o processo comunicativo, por entremear as relações entre os humanos e as divindades. A ele é dada, além disso, a majestosa habilidade nas adivinhações. Ao final do conto, podemos notar fins moralizantes, na medida em que Exu é censurado devido às suas armações. Embora possamos identificar a associação desse orixá à mensagem e à comunicação, expressas na figura do caroço de dendê de três furos, percebemos uma personagem astuciosa e, até mesmo, titubeante na urdidura de suas tramas. Aliás, ele é uma das figuras mais retratadas na obra de Mãe Beata de Yemonjá, fundamentalmente em Caroço de dendê. Ora aparece como intermediador no contato comunicativo entre homens e deuses, ora como protetor, porém é justamente a sua função de mensageiro que sintetiza toda a literatura oral da contadora de histórias.

No conto “Oko”, há a história mítica que relata a origem das plantações e a criação do ferro. No início da criação do mundo, não existia nada plantado e um homem com o nome de Oko, que remete àquele que nada fazia, recebeu o encargo de disseminar as árvores e vegetações necessárias à sobrevivência do seres humanos. Oko, em suas andanças, encontrou um “molequinho" que vivia sempre debaixo de uma palmeira remexendo a terra. Esse molequinho era Ogum, inventor do ferro e das ferramentas que auxiliam o homem, tais como as enxadas, o arado e a foice. Oko, orixá da colheita, da lavoura e das plantações, passou a cultivar a terra juntamente com Ogum. Tal mito, recriado por Mãe Beata, encontra ressonância em diversas obras sobre mitologia africana. No entanto, o que realmente nos interessa, são os relatos sobre a criação e a origem do universo e dos objetos nele inseridos. A rememoração das narrativas mágicas pereniza o imaginário religioso das comunidades às quais se referem e, sobretudo, resgata os valores e a importância de determinados seres e elementos, responsáveis pela sobrevivência e moralização do homem inserido no seu meio. O mito não somente explica como algo passou a existir, mas também educa os homens no que tange ao cuidado com a Mãe-Natureza e às normas que governam uma comunidade.

Para os povos de origem africana, segundo atesta Reginaldo Prandi, os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou Olorum – o Deus supremo – a missão de criar e reger o universo. Cabe, dessa forma, a cada um deles, a responsabilidade de organizar a natureza, a vida em comunidade e os valores morais da existência humana. Os relatos observados na narrativa de Beata de Yemonjá perpassam toda uma tradição mítica africana: Yemanjá, Nanã, Olorum, Ossâin, Xangô e Ogum são alguns dos personagens pintados em sua obra. É importante ressaltar, por fim, que há uma confluência de gêneros, não sendo possível delimitar as histórias sagradas das ficcionais, isto é, não se pode estabelecer parâmetros de separação entres os mitos e os contos profanos, uma vez que temos o entrecruzamento dialógico de ambos, quer em primeiro plano, quer em segundo.

Memória coletiva e oralidade

Na obra de Mãe Beata, a memória e a tradição mítica resguardam e revelam os primeiros heróis dos povos de origem africana, a transformação de homens em deuses, os sonhos, o amor, o ódio, o nascimento das árvores, das águas, dos montes e, por fim, a gênese do universo e dos valores imanentes a toda e a qualquer sociedade. Não pode e não deve haver civilização sem história folclórica, sem narrativa oral, sem lendas e sem mitos, visto que, por meio destes, passamos a legitimar a nossa própria organização antropológica. Organização que nos remete à literatura oral, a mais acolhedora infância, e que congrega as manifestações mítico-folclóricas mantidas pela tradição.

Essa literatura é o espelho em que vemos a nossa imagem sócio-cultural transfigurada. João Ribeiro já dizia: “O folclore é, pois, uma pesquisa de psicologia dos povos, das suas idéias e seus sentimentos comuns, do seu inconsciente, feito e refeito secularmente, e que constitui a fonte viva donde saem os gênios e as individualidades de escol”. (apud CASCUDO, 2004, p. 7). Nesse contexto, compreende-se por tradição, do latim tradere, traditio, a transmissão de um conhecimento, através da ação de divulgar a cultura popular ágrafa, mantida na memória, como evidencia Câmara Cascudo.

Mãe Beata de Yemonjá, enquanto ialorixá, sacerdotisa-chefe de uma comunidade de terreiro, reestrutura, em Histórias que minha avó contava e Caroço de Dendê, a narrativa oral da cultura afro-brasileira, enredando e reunindo os mitos da tradição. Na realidade, a contadora de histórias procura expor a sua visão de mundo, por meio de uma voz coletiva afro-descendente, tendo como fio condutor a vivência nos terreiros de candomblé. A sua escrita é mantenedora da tradição das contadoras africanas que, na sociedade colonial, andavam pelas casas-grandes e senzalas narrando as suas histórias.

Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, fala sobre as superstições e canções de acalanto enriquecidas nas vozes das escravas africanas, amas-de-leite dos meninos brancos. Fala sobre as negras contadoras de histórias que embaralhavam as suas tradições narrativas aos contos portugueses, fazendo dessa arte de contar, de lugar em lugar, uma verdadeira profissão:

Foram as negras que se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias. Há o akpalô fazedor de alô ou conto; e há o arokin, que é o narrador das crônicas do passado. O akpalô é uma instituição africana que floresceu no Brasil na pessoa de negras velhas que só faziam contar histórias às outras pretas, amas dos meninos brancos. José Lins do Rego, no seu Menino de engenho, fala das velhas estranhas que apareciam pelos bangüês da Paraíba: contavam histórias e iam-se embora. Viviam disso. Exatamente a função e o gênero de vida do akpalô. (FREYRE, 2005, p. 413).

Mãe Beata de Yemonjá apregoa, conforme Dilma de M. Silva, a “tradição africana da palavra narrada”, e defende a conservação de idéias, valores e imagens, cultivando as glórias guerreiras e sociais dos africanos (apud YEMONJÁ, 2004, p. 6). Sua literatura é a rapsódia de algumas das lendas afro-brasileiras que compõem o substrato mítico-religioso dos povos descendentes dos Iorubanos e outras etnias. Ou seja, há a compilação de narrativas mais ou menos extensas, acerca das habilidades religiosas e artísticas que configuram a identidade e os valores morais desses povos.

Em sua obra Literatura oral no Brasil, Câmara Cascudo também faz um estudo referindo-se à construção das narrativas orais dos povos negros:

Toda África ainda mantém seus escritores verbais, oradores das crônicas antigas, cantores das glórias guerreiras e sociais, antigas e modernas, proclamadores das genealogias ilustres. São os akpalô kpatita, ologbo, griotes. Constituem castas, com regras, direitos deveres, interditos, privilégios. De geração em geração, mudando de lábios, persiste a voz evocadora, ressuscitando o que não deve morrer no esquecimento. (CASCUDO, 1984, p. 143).

É exatamente nesse perfil que se enquadra a fala de Beata de Yemonjá, posto que a inclusão afro-descendente na literatura oral do Brasil tem, na sua apresentação textual, forte mecanismo de divulgação desses valores. O enredo é sempre circundado por orixás, essencialmente Exu e Yemonjá, o mensageiro e a comunicação, que juntos compõem a tradição oral africana. Também nele estão presentes nomes, objetos, mitos, contos, ervas, mezinhas e tantos outros elementos que indicam o continente artístico e cultural dos afro-brasileiros. A produção de Mãe Beata configura-se do mesmo modo como uma manifestação da memória, capaz de expressar a vivência das comunidades de candomblé nesse contar histórias, transmitindo conhecimento a crianças e adultos com muita energia.

Em outro livro, Histórias que a minha avó contava, a escritora combina os elementos da tradição oral africana à tradição oral tipicamente indígena. Quase todos os contos são plenos de animais, construindo pequenas fábulas, repletas de ensinamentos “que implicam em sabedoria do viver”, segundo atesta Teresinha Bernardo. É o que acontece, por exemplo, em “A lagoa encantada”:

Em cachoeira de Paraguaçu existia um candomblé antigo que chamavam de Candomblé das Velhas. Elas eram muito respeitadas. Do lado do terreiro havia uma lagoa que todos diziam ser encantada. Ali morava a Cobra Cauã, um encostado que quando se manifesta no corpo de uma pessoa se enroscava como cobra. Dizem que tem muita força, assim como Oxumarê. Hoje já não existe mais esse candomblé, pois o progresso naquela região foi tomando todo o espaço e até a lagoa encantada desapareceu.

Muitas coisas importantes da nossa história estão se perdendo, mas a fé do povo negro não se acaba. (YEMONJÁ, 2004, p. 29).

Oxumarê, em forma de serpente, simboliza o arco-íris que liga o céu à terra, fecunda o solo e suscita as grandes riquezas. É senhor do movimento, do revolver incessante da vida e da eterna renovação. Há lendas brasileiras que, de certa forma, podem se assemelhar à expressa pela voz narrativa de Beata de Yemonjá. Cobra Norato, por exemplo, personagem apropriado por Raul Bopp e também estudado em Lendas brasileiras, de Câmara Cascudo, possui um imponente espírito guerreiro, protegendo a natureza e os habitantes da região norte do país.

Em outros contos de Mãe Beata, pode-se perceber a presença do sincretismo religioso, como, por exemplo, em “O vagalume”, onde há a presença de personagens bíblicos ─ Jesus Cristo, São José e a Virgem Maria ─, corporificados nas figuras de orixás africanos: Oxalá e Yemanjá.

Percebemos, em “O vendedor de orobôs”, a presença de Xangô, senhor dos raios, do fogo e da pedra, o qual simboliza o caráter, a justiça, o amor e a verdade. Castiga pesadamente os mentirosos, como acontece no texto em questão:

Existia um homem que trabalhava na feira vendendo orobô mais era muito avarento e queria ficar rico rápido. Certa feita, chegou uma senhora e pediu seis orobôs, o que fez ele, pegou três de verdade e três sementes quaisquer e entregou para a inocente senhora.

Quando ela entregou a sua Yá mãe, esta logo percebeu e disse: ─ Filha, você foi enganada, mas deixe esse malandro, Xangô vai cobrar a ele.

Passados alguns dias, ela foi à feira e como quem não queria nada, encontrou o vendedor de orobôs, muito doente dos olhos, quase sem enxergar. Então ela disse: ─ Olha, aquela senhora para quem você vendeu os orobôs falsos na semana passada, é filha de Xangô, isso é castigo do rei, você parta um orobô em banda e passe nos olhos, pedindo perdão a ele, pois os orobôs são os olhos de Xangô e é através deles que ele vê todas as nossas ações, as boas e as más, para nos julgar (YEMONJÁ, 2002, p. 15).

A oralidade é constante em nosso cotidiano, sendo muitos os seus caminhos, o mito, por exemplo, é um grande parceiro de tal tradição verbal, visto que, como foi dito nos parágrafos acima, serve como fonte pedagógica e ética. Nos textos de Mãe Beata, podemos observar os deuses africanos em consonância com os princípios moralizantes. A grande maioria dos seus contos, a exemplo do citado acima, apregoa o modo como os indivíduos devem se comportar em sociedade, sendo sempre guiados por deuses que julgam o comportamento humano, punindo-o conforme seus atos. Nesse sentido, fica claro, ao lermos a sua obra, que os ensinamentos advindos das narrações são, em grande medida, precedidos por cometimentos imorais, mas que não definem arbitrariamente o caráter do agente. É como se, por intermédio dos orixás, todos tivessem uma segunda oportunidade, mas não sem antes receberem determinado castigo.

A oralidade em questão

Os componentes verbais que caracterizam a literatura marcada pela oralidade permanecem no plano do contexto social. Portanto, cada comunidade, com suas inerentes tradições, revela-se por meio de lendas e mitos pronunciados de geração em geração. A estética oral se fundamenta no próprio processo do diálogo e da transmissão; não se fixa, portanto, no plano escrito, seguindo as regras da literatura tida como universal. Segundo Lourenço J. da Costa Rosário, em A narrativa africana de expressão oral, o termo literatura oral carrega em si um paradoxo, pois a literatura se encontra intimamente relacionada à forma escrita, mas, segundo ele, tal paradoxo é apenas aparente:

Temos para nós que ainda assim, a designação mais próxima da legítima será a da Literatura Oral, apesar do aparente paradoxo semântico. Nela está contido o essencial, a característica literária de um acto criativo verbal e a sua transmissão na oralidade que faz com que se deva reger por conceitos muito próprios em termos de teoria literária. (ROSÁRIO, 1989, p.52).

A língua e o narrador da oralidade estão mais centrados nas normas e nos valores coletivos e isso ultrapassa em muito o âmbito da chamada “criação artística”. Essa produção visa à transmissão de heranças culturais e, sendo assim, os preceitos estéticos do texto canônico não devem ser tomados como referência para os valores e os paradigmas aplicáveis à leitura de tais construções. A textualidade de base oral segue estruturas apropriadas à sua natureza: na passagem para a forma escrita, a linguagem oral adequa-se ao novo contexto de expressão, sem perder suas marcas de origem.

As histórias de Beata de Yemonjá expressam, portanto, os valores coletivos, culturais e religiosos, os quais são rememorados, por meio de sua voz evocadora, capaz de transmitir o conhecimento para todos os membros de suas comunidades. Recriar a tradição é fundar novamente a existência transitória do homem no mundo, é eternizar as suas glórias, é fazer do passado o presente e, sobretudo, construir uma sociedade profundamente ligada aos seus ancestrais. É essencialmente isso que propaga a oralidade nas obras da sacerdotisa de Exu e Yemanjá. Guiada por esses orixás, representantes da comunicação e da mensagem, Mãe Beata é responsável pela realização de uma escrita que objetiva o resgate das tradições africanas, a fim de perpetuar a expressão sócio-cultural de toda uma coletividade.

Autoria

O conceito de autoria é muito complexo e mesmo paradoxal, se aplicado à obra de Beata de Yemonjá. Seria ela a autora de seus textos, ou a obra é o fruto de uma coletividade; ou ainda, no processo de rememoração estaria a sacerdotisa “inspirada” pelos seus orixás de cabeça?

A primeira questão a ser analisada está em consonância com a intencionalidade. Intenção que aqui não será entendida simplesmente no nível interpretativo, mas, especialmente, no âmbito da formação sócio-cultural da escritora. Sabe-se que a contadora de histórias descreve as tradições e heranças presentes na memória cultural comunitária. Neta de portugueses e negros escravizados passou a infância rodeada pela presença de mãe Afalá e por outras mulheres de origem africana, notadamente, pela avó paterna, mulher que, segundo Mãe Beata em seus relatos, “tratava de todos no engenho com suas ervas e mezinhas”. (YEMONJÁ, 2002, pág, 12).

É possível notar, ao longo do texto, que há a expressão de um continente sócio-cultural e religioso, o qual depende, consideravelmente, da experiência da escritora. Percebe-se que, nesse sentido, não é possível desvencilhar a criatura (autora) de sua criação (a obra), uma vez que os seus conhecimentos, enquanto mãe de santo nos terreiros, arquitetam seu processo de construção textual. Não há aqui a finalidade de reduzir a obra a uma interpretação biográfica, até mesmo porque há uma transmissão e um diálogo que estruturam o processo de construção narrativa, como apropriação e reprocessamento da memória discursiva comunitária. Desse modo, a voz autoral associa-se às vozes memoriais presentes nos textos. No prefácio ao livro Caroço de dendê, afirma Vânia Cardoso:

As histórias de Mãe Beata dão voz a uma parte importante da memória afro-brasileira, expressando uma sensibilidade que reflete esteticamente a cultura do “povo de santo”. A dinâmica da transmissão oral destas histórias dentro das comunidades-terreiro e a interação entre contadores e ouvintes no dia-a-dia dos terreiros nos levam a pensar nos contos de Mãe Beata como, de certa forma, uma criação coletiva destas comunidades, individualizadas pela sua criatividade como contadora de histórias. (YEMONJÁ, 2002, p. 12-13).

Nota-se, de tal modo, que a sabedoria é adquirida por meio de um processo dialógico – uma interação entre comunidade dos terreiros e a tradição oral africana – fazendo com que a autoria seja de caráter essencialmente coletivo. Na realidade, os seus contos devem ser examinados levando-se isso em consideração, apesar de apresentarem especialidades próprias ao modo de expressão da autora.

Uma última abordagem refere-se à inspiração da narradora no seu constante contar de histórias: Exu e Yemanjá, orixás que simbolizam a mensagem e a comunicação, seriam fontes divinas que vão ao encontro da oralidade presente na obra de Mãe Beata. Da mesma forma que as Musas moviam Homero e Hesíodo, nas narrações dos grandes feitos heróicos e na genealogia dos deuses, os orixás africanos movimentariam o processo de constituição das lendas e dos mitos das religiões afro, fazendo com que toda uma tradição cultural e religiosa seja rememorada e reedificada, por meio dos textos da escritora.

É preciso mencionar que os contos são as vozes de um povo, de um tempo e de um espaço em constante processo de transformação. Encadeados dialogicamente, formam esse imaginário coletivo e essa memória resguardada. Mãe Beata de Yemonjá é figura central na luta pelo reconhecimento e pela valorização da cultura afro-brasileira, uma vez que sua literatura é a difusão inabalável de uma tradição pouco compreendida e menos ainda propalada pelo cânone nacional. Como disse a própria escritora: “nós, negros, estamos precisando muito disso, de saber as nossas histórias. Precisamos saber que nós somos capazes, nós, negros, que nós das religiões afros temos história, temos saber”.(YEMONJÁ, 2002, p. 15).

A literatura oral de Beata de Yemonjá expressa não somente a cultura africana, mas abre passagem para a análise de tal tradição mágico-religiosa, que é, antes de tudo, admirável pela beleza e subjetividade que carrega em si. Os mitos, na narrativa da escritora, são, na verdade, parte indispensável no que tange à formação histórica dos povos de origem africana. Falam sobre a criação do mundo, sobre a transformação de homens em deuses e, especialmente, explicam a existência do presente com base na rememoração de um tempo e de um espaço enigmáticos. A oralidade, assim como o conceito de autoria, é parte integrante desse universo, pois em se tratando de uma tradição da palavra narrada, transmutada de geração em geração, não se pode falar em uma construção individual, isolada do seu contexto sócio-cultural.

Referências

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FERNANDES, Frederico Augusto Garcia Fernandes (Org.). Oralidade e literatura: manifestações e abordagens no Brasil.Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2003.

YEMONJÁ, Mãe Beata de. Caroço de dendê: a sabedoria dos terreiros. Rio de Janeiro. Pallas, 2002.

YEMONJÁ, Mãe Beata de. Histórias que a minha avó contava. São Paulo: Terceira Margem, 2004.

* Graduada em Letras pela UFMG.

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