A história mal contada1

Consuelo Dores Silva

 

Todas as manifestações contra o trabalho servil, aqui descritas, desmentem a historiografia que ao longo dos anos silenciou a este respeito, levando-nos à crença de que o escravo foi incapaz de elaborar formas individuais e coletivas de resistência à escravidão. Seja fugindo para os quilombos, ou não sendo "bom escravo", o negro desejava fugir ao status de "coisa" imposto pela estratificação social; como sabemos, ninguém nasce com predisposição para ser escravo, mas as circunstâncias históricas é que são determinantes desta condição.

Mais de três séculos de trabalho compulsório resultaram na concentração de não-brancos nas regiões mais pobres do Brasil, e os condicionaram a uma posição hierarquicamente inferior. Assim, "nascer negro ou mulato no Brasil normalmente significa nascer em famílias de baixo status" (HASENBALG, 1979, p.220). Logo, devido à sua pouca escolaridade, os negros encontram muitas barreiras, para ascender socialmente, e o mesmo fato se repete com seus filhos, mais do que com filhos de operários brancos não-qualificados, os quais "(...) obtêm 1,1 a mais de educação que os não-brancos." (HASENBALG, 1979, p.207). Além de se inserir no mercado de trabalho com poucas qualificações profissionais adquiridas através da educação formal, os negros se encontram num contexto social que classifica as pessoas, segundo "a boa aparência". A seleção, mediante a cor da pele, limita, portanto, os seus sonhos de mobilidade social.

Numa sociedade pluri-racial, a cultura dominante se impõe coercitivamente sobre as outras culturas e os grupos dominados terminam por introjetar a inferioridade.

A referência feita à escravidão teve como objetivo mostrar como pessoas de cor negra, descendentes de escravos, possivelmente, introjetaram no Brasil, ao longo dos séculos, uma imagem negativa de si mesmas.

A procura do negro pela liberdade é exaustiva, pois lhe reafirmam a sua negação como pessoa humana. Esta é, pois, a tragédia do negro da Diáspora.

O negro, perdendo a liberdade, negou-se a si mesmo; entretanto, ao se tornar escravo, ocorreu-lhe um processo de metamorfose. A história das culturas se caracteriza pela mudança das relações sociais entre os homens; sendo assim, poderíamos dizer que, o homem negro, ao negar os estereótipos negativos que lhe são atribuídos socialmente, elabora uma contra-ideologia em que afirma a sua individualidade, a sua pessoa.

O Mundo Novo, em que o homem se reapropria de sua essência, é o sonho dos homens transformados em escravos. A Nova Sociedade só surgirá, se os descendentes destes homens, a quem foi negada a humanidade, se reapropriarem de si próprios. Esta reapropriação se caracteriza pelo assumir a própria cultura e identidade, perpassando pela tomada de consciência das relações de opressão à participação política, e a conseqüente negação do colonialismo. O colonialismo se manifesta nos países do Terceiro Mundo sob a forma de desvalorização cultural dos povos não-brancos da América, África e Ásia.

O oprimido necessita, portanto, reavaliar o seu papel como sujeito histórico, para desmistificar a ideologia que apregoa a superioridade de uma cultura sobre outras; e principalmente, se habituar à denúncia do discurso, que afirma a sua inferioridade, e justifica a dominação e a violência dos povos colonizadores.

 

Nota

1. Originalmente publicado na obra Negro, qual o seu nome? (1995).

 

Referência

SILVA, Consuelo Dores. Negro, qual o seu nome? Belo Horizonte: Mazza, 1995.