Tradição popular e pertencimento étnico na poesia de Lino Guedes

Eduarda Rodrigues Costa*

 

Palmares foi a primeira
Nação livre no Brasil;
Era formada de negro
Fugidos de angústias mil
A República foi feita
Pelo elemento servil

Lino Guedes

Lino de Pinto Guedes, mais conhecido com Lino Guedes, é considerado um ícone no cenário do discurso em favor da causa negra na primeira metade do século XX. Filho de ex-escravos, fez parte de uma geração que ainda sentia fortemente a inadaptação do afrodescendente à realidade pós-escravidão, prejudicado pelas barreiras que a sociedade impunha aos novos cidadãos, as quais dificultavam que o negro se inserisse no mercado de trabalho.

Um importante mecanismo de reivindicação dos direitos e de conscientização dos afrodescendentes eram os jornais da causa negra. Foi a partir do discurso difundido por estes órgãos que, mesmo apesar do restrito alcance que tinham, o negro pôde tomar a voz a fim de falar para seus irmãos de cor, mobilizando-os frente à discriminação e em favor da igualdade de direitos civis. Lino Guedes encontra-se como um desses porta-vozes da imprensa negra paulista, tendo atuado em vários periódicos da época, dentre eles o Getulino, do qual foi editor-chefe entre 1923 e 1924.

Empenhava-se na elevação do afrodescendente a partir do letramento, incentivando os poucos que eram alfabetizados, oferecendo-lhes um material de leitura com que se identificassem e, sobretudo, mobilizando-os em favor do reconhecimento moral perante a sociedade. Este último ponto estava centrado no trabalho e no casamento, pois segundo tal conceito, o negro alcançaria a dignidade almejada somente com o trabalho honesto e com a união por matrimônio. Tal assunto, bem como o amor, são temas encontrados nos versos de Dictinha, uma coletânea de poemas de 1926, porém que só foi publicada em livro em 1938. O verso utilizado, a redondilha maior, aponta para o caráter popular da escrita do autor, que também fazia uso das estrofes de seis versos ou sextilhas modernas, uma das formas mais utilizadas no cordel. Essa aproximação com a tradição popular denota a preocupação do autor em construir um texto de mais fácil apreensão para seu público, que tinha pouco domínio da escrita e também em manter vivo o elo com sua ancestralidade centrada na oralidade.

No primeiro poema de mesmo nome do volume, percebe-se a valorização da mulher negra a partir do emprego do diminutivo “pretinha” como forma carinhosa de tratamento. Mais adiante, o sujeito quer comparar a amada a uma “francesinha” devido à sua beleza, porém hesita pelo fator moral que impede a comparação, tendo em vista a conotação pejorativa que as francesas tinham naquele tempo, pois, de um modo geral, muitas que se encontravam no Brasil sobreviviam como prostitutas:

Penso que talvez ignores,

Singela e meiga Dictinha,

Que desta localidade

És a mais bela pretinha:

Se não fosse profanar-te,

Chamar-te-ia... francesinha!

 

Então, quando vais à reza

Com teu vestido de cassa,

Não há mesmo quem não fale,

Orgulho da minha raça:

– Olha que preta bonita

E que andar cheio de graça!...

(Dictinha)

Na outra estrofe, percebe-se que a exaltação da amada transfere-se da beleza física para a pureza de espírito, quando se remete a sua ida à igreja. Também é valorizada a maneira de se vestir, de modo que seu objeto de desejo não somente é bonito como é casto e elegante. É preciso observar que, apesar de o poeta buscar a edificação da imagem da mulher negra, percebe-se que tal intento se dá a partir de uma transposição dos costumes do branco para a realidade do negro. Isto acontece com relação à religião cristã, que fora imposta aos escravos, de modo que muitos deles perderam não só o vínculo com suas crenças religiosas, como também com sua cultura originária de uma forma geral. Deve-se, contudo, lembrar que no contexto da década de 30 a abolição ainda era um fato relativamente novo e que, deste modo, exaltar os costumes herdados dos povos africanos não traria vantagens para o afrodescendente diante de uma sociedade que ainda o via como inferior e que não aceitava suas diferenças. A repressão a manifestações religiosas de raízes africanas era muito intensa e somente mais tarde é que foi instituída por lei a liberdade de culto no país. É, pelo menos, compreensível a assimilação de valores considerados como do branco, visto a necessidade do homem negro em inserir-se no mercado de trabalho dominado pelo outro.

Em outro poema, intitulado “Triste fim”, aparece novamente a busca do elogio a Dictinha, porém o que se percebe é novamente a centralização no padrão estético do branco:

Você, apesar de preta

Você é uma rosa, Dictinha,

A florir com sua graça

Toda esta existência minha!

(Dictinha)

Tão bela quanto uma flor, apesar de negra, ou seja, ser preta é algo desfavorável, porém mesmo assim a mulher de quem se fala é dotada de imensa graça. Se por um lado, Dictinha é extremamente elogiada, por outro, a mulher negra é tida como dotada de uma beleza que está aquém da reconhecida como padrão, a beleza branca. Neste poema, o autor peca por mostrar que compartilha da verdade instituída pela sociedade e reconhece o quanto é desvalorizada a beleza negra.

Ainda no tema da elevação moral via matrimônio, em “Remédio único”, já no título nota-se a funcionalidade atribuída ao casamento, que é a de atrair para si o respeito do outro, aderindo aos seus costumes. A união deveria ser oficializada perante o padre e a noiva se guardaria pura até as núpcias:

Unicamente, Dictinha,

Por sermos pretos, que horror!

Muita gente com malícia

Vê nosso sincero amor;

Faz ainda comentários

Que enche de pavor

 

- Negro, só dá para escândalos!

Ao depois de namorar

Acorda um dia qualquer

E vai junto coabitar...

Por um trono, uma Princesa

Foi essa gente trocar!...

 

Mas com o nosso casamento

Fartar-se-á a exigente

Sociedade, Dictinha;

Salvemos, pois nossa gente!

Dando a ela o que já lhe sobra,

Que é um nome bem decente!

(Dictinha)

O que se observa nos trechos acima é um sujeito que se vê desafiado a cumprir esses rituais que nada condizem com os da tradição herdada de seus ancestrais, a tradição africana; isso mostra que ele já introjetou os valores europeus, cristãos e brancos, e reconhece que sem os mesmos os afrodescendentes dificilmente serão considerados dignos de respeito.

Em outro momento, no poema “Negrinha”, há a referência explícita ao conto de Monteiro lobato, cujo título é o mesmo. Neste, Negrinha é uma menina filha de ex-escravos, que ficara órfã muito pequena e passara a sofrer os castigos da severa Dona Inácia.

Li um conto de Lobato

Que muito me entristeceu...

Negrinha, remanescente

Da era em que viveu

A pátria amada, que nunca

Um carinho mereceu

 

Via com notada inveja,

A criançada que brincava,

E se lhe dava por troça

Um boneco, o segurava

Com certo medo, e com o espanto

Nos grandes olhos o olhava.

(Dictinha)

Privada de qualquer tipo de alegria, Negrinha se depara com o novo quando aparecem na casa de Dona Inácia, duas sobrinhas desta que, diferentemente da menina, podiam brincar e correr sem que fossem fortemente reprimidas. As visitantes oferecem a ela uma boneca para que segure e ela o faz, porém com grande receio de que a dona da casa a surpreendesse. Tanto no conto como no poema nota-se a preocupação dos autores em denunciar os maus tratos a que eram submetidos os afrodescendentes, mesmo no período pós-abolição, e, também, em protestar contra a invisibilidade a que eles eram submetidos, devido ao desprezo da sociedade branca.

Em outro texto do autor, o poema dramático Vigília de Pai João, datado de 1938, é notória a transição do posicionamento político do autor em relação ao seu texto de 1926; fica evidente sua preocupação com a questão social em que os afrodescendentes encontravam-se colocados. O livro é publicado em comemoração ao cinquentenário da abolição, entretanto a trama narrada se passa ainda no período escravista e a liberdade que aparece no enredo não é esta concedida pelo branco, mas a conquistada pela fuga dos cativos para o quilombo. Trata-se da noite em que os escravos de uma fazenda de café alcançarão a liberdade por meio de fuga armada pelos cativos Benedito e Pai João. Este último é a personagem central da trama e vem subverter o estereótipo difundido na literatura por vários outros escritores que se valeram da figura do “Pai João” como o escravo fiel e resignado, destituído de qualquer ambição, conformado como seu lugar na sociedade. O Pai João de Lino Guedes, ao contrário dos outros encontrados na literatura, é uma apropriação, pois passa não pelo olhar do branco, mas do negro, de modo que este o constrói como a personagem central e articuladora da peça, aquela que vai organizar a fuga dos companheiros de cativeiro.

O livro é iniciado com o seguinte cabeçalho:

Em comemoração do cinquentenário da Abolição da Escravatura no Brasil, a 13 de maio, em que Isabel, a Redentora, trocou seu trono pela liberdade de uma Raça, que assim que descobrir as belezas do alfabeto, se tornará a mais temida, como foi a que mais sofreu.

(Vigília de Pai João)

No trecho acima logo se nota a postura empenhada do poeta e jornalista em protestar contra a situação inferior em que os descendentes de escravos se encontravam. Entendia que, com o domínio da leitura, o negro se colocaria em posição igual à ocupada pelo branco, pondo abaixo o mito da inferioridade étnica. Lino Guedes mostra seu engajamento em Vigília de Pai João levantando alguns pontos relevantes para a conscientização dos afrodescendentes, que ainda eram poucos leitores naquela época, como para o público branco, que carecia de uma relativização da visão eurocêntrica que regia seu tempo.

Primeiramente vem desmistificar o pensamento de que o negro era um ser vazio e que, como muitos acreditavam só servia como força de trabalho. A esperteza com que Pai João articula a fuga de seus companheiros desmonta todo esse conceito reduzido e preconceituoso a respeito do negro: sem que nem mesmo seus companheiros da senzala saibam, ele juntamente com Benedito, outro escravo, garantem que o capataz caia em sono profundo e não perceba a fuga:

Um maço de dormideira

No travesseiro escondi

Chá de um pé de alface inteiro!

Eu mesmo quase dormi!

 

Amarrei num pé de mesa

A boa santa Thereza...

Santo Antônio na restinga,

Pra acabar com o cambalacho

Pus de cabeça para baixo

Um Santo Onofre sem pinga.

(Vigília de Pai João)

Com a ajuda das mandingas, os escravos teriam garantido o sucesso do escape. Próprio das culturas africanas, a prática de alguns feitiços ou mandingas remete para um segundo ponto chave da peça, a abordagem feita da religiosidade. Neste sentido salienta Paulo da Luz Moreira (2003):

E não podemos esquecer da campanha agressiva de repressão da polícia aos membros de qualquer tipo de manifestação religiosa de origem afro-brasileira, chamados preconceituosamente pela imprensa da época de “miseráveis envenenadores da plebe”. Nesse contexto, a atitude de Lino Guedes ao incluir de forma positiva práticas de magia afro-brasileira em Vigília de Pai João é bastante corajosa.

(MOREIRA, 2003)

Porém, a referência ao tema da religiosidade não se esgota nas crenças de raiz africana, pois o pensamento cristão é introduzido a partir do discurso de Pai João, que remete ao mito bíblico de Cam. Segundo conta o mesmo, Cam, filho de Noé, por desrespeitar seu pai, este o amaldiçoa condenando-o a escravidão. Embora na passagem bíblica não apareça qualquer remissão à cor da pele, a história sagrada diz que Cam fora banido para a região hoje reconhecida como África e que ele dera origem ao povo desse lugar. Deste modo, com aval da Igreja, a maldição de Cam transformou-se em uma verdade universal legitimando a servidão dos povos africanos. Pai João, que nascera livre, lembra de sua infância e do momento da captura, atribuindo não ao destino, mas ao homem europeu a escravidão:

E eu, meninote, cantava,

Dava pinotes, dançava,

Até nascer a manhã.

E todos eram felizes

Houvesse a seiva de Cam...

 

Que nos importava o mundo...

Dele, o mar, largo e profundo,

Nos separava como horror,

Qual se fosse uma barreira

Que ali se erguesse altaneira,

Difícil de se transpor.

(...)

Cam, desterrado e banido,

Nem tanto houvesse sofrido

Com a maldição do Senhor,

Pois, maldição mais pesada

É aquela do homem, lavrada

Contra o humilde servidor...

(Vigília de Pai João)

 

Fica evidente o posicionamento do autor por meio da fala da personagem, afirmando que o grande responsável pelo flagelo da escravidão era o homem e não Deus. Como afirma Paulo da Luz Moreira, se a escravidão segundo o mito de Cam estava perdida “em um tempo mítico sem começo nem fim”, no texto de Lino Guedes ela é indubitavelmente localizada no momento em que os europeus chegam ao continente africano.

A construção do texto em formato de peça já aponta para o engajamento do autor, interessado numa aproximação mais direta do público a que se direcionava com o discurso por ele defendido, tendo em mente na década de 30 apenas uma minoria dos afro-descendentes era alfabetizada. Além disso, seu empenho é reconhecido na utilização de um vocabulário marcado pela oralidade, repleto de cantigas populares, de lamentos e ainda do apelo moral, este último, entretanto, vem muito mais atenuado do que em Dictinha. O batuque exerce a função de alívio para o sofrimento do escravo que lembra com saudosismo seu passado livre:

Remove o teu pensamento!

Não deixa que o sofrimento

As tuas faces machuque.

Não penses mais no passado,

Não te julgues desgraçado

Pois ainda tens o batuque!

(Vigília de Pai João)

Mais adiante, em “batuque na cozinha”, nota-se o lamento, sorte reservada aos povos negros, que tinham seus costumes reprimidos na casa grande, mas procuravam no canto e na dança alívio para o sofrimento. Tal queixa, porém, se dá em tom bem humorado:

Batuque na cozinha,

Sinhá não qué...

Por causa do batuque,

Queimei o pé.

 

A Sinhazinha não quer,

Porque Nosso Sinhó lhe deu

Uma sorte tão bonita,

Não destino igual ao meu,

De sofrer cada castigo

Que até o dianho esqueceu...

 

Esse pé não é de ouro,

Mas também não é de prata

É o mimoso pezinho

Da Ritinha, da mulata,

A quem se diz suspirando;

- Ai, ai, esse pé me mata!

(Vigília de Pai João)

A peça termina com um canto de lamento, remetendo ao banzo, um mal que tomava os escravos, deixando-os apáticos e levando-os à morte sem que os mesmos se esforçassem para sair daquele estado. Pai João se nega a fugir com os outros e fica a tocar o bumbo como se todos estivessem em festa, a fim de garantir o sucesso da fuga. Por saudades de Mãe Maria, este não se anima em fugir com os outros escravos, morrer seria a melhor solução para os seus problemas.

Banzo... Banzo era a tristeza

Da africana região

Bailando como uma névoa

Na negreira embarcação...

Banzo era a mágoa que ia

A suspirar, no porão...

 

Banzo era a alma que ia

Com os escravos para além!

Era o coração de um povo...

Banzo era a vida... Porém,

Ante angústia de seus filhos,

Banzo era a morte também!

(Vigília de Pai João)

A partir da apreciação feita dessas duas obras do autor, ambas publicadas em 1938, é possível reconhecer o trabalho de um escritor fortemente comprometido com os ideais de liberdade para os afrodescendentes, esta alcançada, sobretudo pelo estudo, oferecendo a eles condições iguais para que se tornassem competitivos. O respeito aos compromissos morais como o do matrimônio condizem bem com os valores reinantes na época, e para não sentir-se excluído, o homem que pretendia viver em sociedade incorporava tais costumes. Porém, a apropriação dos mesmos não implicava na perda dos próprios modos de vida, das crenças e de sua cultura herdada da África; as duas obras em questão trazem profundas marcas da oralidade, que por sua vez é enriquecida por um vocabulário repleto de termos das línguas africanas. Pode-se assinalar ainda, principalmente em Vigília de Pai João, o ritmo representado tanto no enredo, a partir da referência ao bumbo, ao samba e ao batuque, quanto nas próprias cantigas populares que perpassam todo o poema. Por tudo isso merecem destaque os textos de Lino Guedes, autêntico poeta e jornalista de seu tempo, que se comprometeu em construir um discurso de elevação do negro, assumindo-se como tal e reivindicando seus direitos como cidadão.

Referências

CAMARGO, Oswaldo de. O Negro Escrito: apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura / IMESP, 1987.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura, política, identidades: ensaios. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005.

GUEDES, Lino. Dictinha. São Paulo: Edição do autor, 1938.

_____. Vigília do Pai João. São Paulo: Edição do autor, 1938.

LOBATO, Monteiro. Negrinha. 14. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1968.

MOREIRA, Paulo da Luz. “Lino Guedes e Vigília de Pai João, – articulando uma voz negra no Brasil.” Mimeo.

* Eduarda Rodrigues da Costa é Graduada em Letras pela UFMG.

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