Conluio das Perdas 

Cuti

Gotas de chuva unidas serpenteiam brilhantes na vidra­ça. O frio da tarde começa a manipular suas agulhas de arrepio. É um frio fora de hora. É só a noite enxugar as lágrimas, o ca­lor volta com toda a sua potência. Mais que nunca, preciso de tempo aberto, de perspectiva espacial, de horizonte, de estrelas ao longe. Fico aqui curtindo saudade, saudade de quem retorna às minhas próprias raízes e, ao mesmo tempo, me abandona nesta São Paulo de tantos sonhos e decepções.

Não fosse aquela história de "hora errada em lugar erra­do", talvez eu tivesse a sua companhia, ainda por muitos anos, a meu lado.

Feito o exame de corpo de delito e tomadas as providên­cias médicas, quando retornávamos para casa, eu disse, entre outras coisas: Vamos vencer isso. Não desanima. Eu já passei por isso também.

Falei, mas era mentira. Havia, sim, vivido alguns vexames do tipo: pai da namorada, ao me conhecer, impede o namoro; ser barrado em porta de prédio ou me indicarem o elevador de serviço quando eu era visita; não ser servido em restauran­te ou tomar chá-de-cadeira; ser preso por vadiagem, mesmo com a Carteira de Trabalho assinada... Enfim, eram fatos que me haviam feito sofrer, mas nada daquilo se igualava ao que acontecera.

Depois de desabafar comigo, imensa muralha ergueu-se entre nós. Em minhas investidas de aproximação, ele apenas sorria como quem diz: "Preciso ficar em paz." Até que, um dia:

Vou embora – disse, com o olhar perdido.

Uma incisão profunda em meu ser. Desde Helena eu não perdia ninguém. Haviam se passado treze anos daquele adeus que ainda está aqui, como uma cicatriz em minha memória.

Ela perdera a cor. O brilho dos olhos havia sumido sob uma névoa de desencanto. Sete anos de um casamento cheio de alegria e realizações iam chegando ao fim. O futuro vinha como densa neblina cobrindo o rio por onde eu deslizava len­tamente para grandes interrogações de minha vida. A maior dúvida era como explicar tudo aquilo a uma criança que estava ali sem entender o meu cismar e o definhar de Helena. Foram inúmeros malabarismos verbais e gestuais para impedir que ele sofresse e eu perdesse por completo uma miséria qualquer de possibilidade de reverter o quadro. Em um daqueles dias, ele me assustou ao fazer a pergunta envolvendo a zona que eu ainda recusava encarar: Papai, o que é morrer? Minha memória bloqueou, durante esses anos, a resposta que eu dei. A ideia do fim me aterrorizava. A única lembrança que me ficou da­quele momento foi que eu o abracei muito, como se alguém o ameaçasse sequestrar e eu tivesse de reunir todas as forças para protegê-lo.

Depois, tudo veio como se fosse uma enxurrada de pesa­delos. Naquele dia em que, ao chegar do trabalho para render a enfermeira contratada, ao dar banho no meu filho e colocá-lo diante da televisão, sentar-me na cama e perceber que o grande amor de minha vida punha sangue pelo canto da boca, não me contive. Assim que o médico – que fora chamado às pressas – se foi, meu filho e Helena adormeceram, esvaziei meia garrafa de uísque, chorei muito e decidi que seria melhor lançar a realidade nua e crua sobre a inocência de Malcolm, no dia seguinte, antes de irmos para a escola. Foi então que me surpreendi. Ao me ouvir falar sobre a futura morte (eu usara a palavra exata) de sua mãe, ele retirou do bolso da calça do uniforme escolar um papel muito enrolado que dizia assim: "Querido filho, não posso mais falar, por isso escrevi este bilhete. Guarde-o com muito carinho. Adoro você, mas a doença ficou muito forte e logo eu tenho de ir embora igual o seu gato Leleco foi. Vou deixar você e não vou voltar mais. Todo mundo é assim, um dia vai embora sem poder retornar. Agora, você e seu pai vão viver sem mim. Estude e trabalhe muito para ser feliz. Eu te amo para sempre. Sua mãe."

Depois do féretro, ele, sentado no meu colo, tirou do bolso novamente aquele papel e me deu, dizendo: Guarda ele pra mim, papai. Guardo até hoje.

Com o fato que o fez ir embora, aquelas palavras de Helena voltaram-me com novos sentidos, como se endereçadas a mim e não a meu filho. A sensação de perda veio como uma sombra que estava apenas escondida.

Aos 18 anos, prestando vestibular para Engenharia entusiasmado com o seu sonho profissional, era um filho que muito me auxiliava desde que passamos a viver juntos só os dois. As dificuldades raciais – tema recorrente em nossas conversas sobretudo quando ele sofria alguma discriminação, arranjava uma namoradinha branca ou queria discutir suas tranças – jamais impediram nossos passos. Eu aprendera a enfrentá-las. Sabia que, se tivesse dinheiro, tudo ficaria mais fácil. Assim, sempre busquei superar barreiras para alcançá-lo e ensinei isso a ele. Depois da morte de Helena, Malcolm tornou-se a minha mais importante motivação de viver. E como ele correspondia aos meus incentivos, nossos laços se estreitaram muito. Meu filho tornara-se meu companheiro. Bastava haver qualquer coisa que me aborrecia em alguma de suas atitudes, ou vice-versa, ele me dava alguns leves socos, como quem chama para a briga, e ia me dizendo suas desculpas ou permitia que eu desse as minhas. Eu ensaiava aquela luta com ele e, assim, íamos conversando até, por fim, nos abraçarmos e todo aborrecimento se afastar completamente. Foi dessa forma que ele conseguira me livrar do álcool.

Contudo, às vezes, nós, seres humanos, perdemos a noção de que debaixo de nossos pés existe areia movediça.

Helena, próximo ao ocorrido com nosso filho, do fundo de minha memória parecia reivindicar seu antigo posto de mãe. Esse meu drama íntimo ocorria em sonhos. Sua imagem surgia muito nítida e, repetidamente, para me repreender quanto à educação de Malcolm, coisa que, em vida, raras vezes ela fizera. Após um desses entrechoques oníricos, acordei sobressaltado, com o pressentimento de que algo aconteceria. No sonho, ela, vestida de policial – algo estranho para alguém que fora modista –, brandia um cassetete em minha direção e gritava. Aflitivamente, eu não podia ouvir uma palavra sequer. A cena da noite foi, como de costume, sobreposta pelas atividades diárias, até que, no final de meu expediente de trabalho, o celular tocasse e uma voz autoritária anunciasse a prisão de meu filho ocorrida horas atrás.

Pagar nossas contas era uma tarefa de Malcolm. Durante o intervalo do cursinho, ele foi ao banco. Como de outras tantas vezes, a porta automática travou seguidamente, mesmo quando nenhuma moeda havia em seu bolso. Certa vez, conversando sobre um desses incidentes, meu filho me dissera ser o "automático" da porta giratória um controle remoto nas mãos do segurança que ficava em uma guarita interna da agência e, dali, escolhia as pessoas para realizar uma maior investigação sobre metais. Naquela ocasião, como nas outras por fim, Malcolm conseguiu entrar. Entretanto, antes que ele pegasse a senha e se sentasse para aguardar o atendimento, dois indivíduos muito bem trajados adentraram o banco sem que a porta travasse, renderam o segurança e atingiram com um tiro o colega deste, que estava ao fundo e tentara reagir. Um dos invasores deu o grito, depois de ambos se encapuzarem: Isso é um assalto! Todo mundo deitado no chão com a mão na cabeça! Cerca de dez pessoas, incluindo funcionários, ouviram, durante cinco minutos, ameaças de morte de outros dois ladrões que também haviam invadido o local, já com os rostos cobertos e portando cada qual uma metralhadora, enquanto os dois primeiros, com pistolas em punho, faziam a coleta nos três caixas. Um bandido, fora da agência, trajando uniforme de segurança, afastava os clientes alegando estar o sistema em manutenção e haver falta de energia. Alguém desconfiou e logo a viatura em serviço na região foi acionada.

Quando a quadrilha encetava a sua fuga, foi surpreendida, na saída. Houve tiroteio, os assaltantes retornaram para o interior do banco, ficando um deles de bruços após ter sido baleado.

Pai – Malcolm relatou-me – eu vi tudo. Eles me pularam três vezes. Uma, quando entraram. Outra, quando tentaram sair e, depois, quando retomaram. Eu estava com a cabeça debaixo de uma cadeira, o rosto voltado para a porta e o resto do corpo para fora. Um deles, quando estavam tentando fugir, pisou nas minhas costas. Quando tiveram de voltar, um outro caiu em cima das minhas pernas e a arma dele – uma metralhadora pequena – veio parar próximo do meu cotovelo, depois de bater no meu ombro esquerdo. O cara agonizava. Foram muitos tiros, vidros estilhaçados e uma gritaria geral. Os policiais nem consideraram que havia reféns dentro do banco. Tentei me encolher, mas o peso do homem em cima das minhas pernas travou meus movimentos. De repente a artilharia parou. O que se ouviu naquele instante foi o som de multas sirenes, choros e gritos histéricos. Eu tremia e suava frio. Aí, houve mais dois tiros. Acho que devem ter sido esses que mataram o segurança, aquele que tinha me barrado. Ele tentou reagir mesmo tendo sido algemado pelos ladrões. Então, eu consegui, num impulso, me encolher e fiquei na posição fetal. Só que, quando eu fiz isso, a arma caída ficou mais perto de mim. Fechei os olhos. Foi, então, que me deu uma crise de choro e a minha tremedeira aumentou. Houve, a partir daí, muitos outros tiros. Depois parou tudo, só ficando gemidos. Demorou um tempo assim. Aí, os policiais entraram falando alto, até que senti passos perto e escutei: "Esse daí não mata não! Esse a gente leva." Recebi um forte chute na coxa e agarram minhas mãos que cobriam a cabeça e me algemaram.

Quando Malcolm me contou, chorei abundante e silenciosamente, arquitetando cruéis vinganças. Ele havia sido preso como sendo o único bandido que restara vivo e, por isso, fora maltratado por um dos policiais, até que se pudesse explicar e um funcionário da agência, que fora depor, o reconhecesse como cliente.

Depois de, com a ajuda de amigos, eu conseguir a punição do PM, só me restava continuar insistindo para meu filho se recuperar. Eu o queria de volta aos estudos e Junto a mim. Ele ficou muito tempo sem sair, curou seus ferimentos, mas se recusou a fazer tratamento psicológico e não pegou mais em livros ou apostilas. Por fim, se foi para Salvador, onde eu nasci, mas não tinha parente algum, nem amigos.

O e-mail que ele me enviou no dia de hoje alivia bastante a sua ausência, que deixou imenso o apartamento em que moramos desde o seu nascimento.

"Pai, hoje eu colei lá no Curuzu. Fui para a saída do Ilê Ayê! Rolou um axé, senti maior firmeza. Mesmo com a miséria que tem aqui, os caras representam mesmo o nosso pessoal. Levantam o moral da galera. Trombei uma mina firmeza que você vai gostar. É daqui. Elinalva. Meu coração tá bombando. Ela tem uns esquemas com umas pessoas do bloco e vai rolar um lance de eu desfilar. Se der, vai ser massa. Com essa gata no meu caminho, acho que começo a desencanar daquela treta do banco, do vestibular e de todo aquele estresse. Vou pedir mais uma vez para você me desculpar pelo jeito como eu saí de casa. Foi mal. Você sabe. Você sabe... O importante é que eu estou ficando de boa. Você tá ligado que é o melhor pai do mundo. Quando puder, cola aqui em casa. Um beijo do teu filhão. Malcolm."

Agora eu sei: apesar da areia movediça sob nossos pés, a determinação é que não nos deixa afundar. Quando terminei a leitura do e-mail, com uma preocupação a respeito das decepções amorosas, saltou à minha mente algo que há anos eu havia perdido em mim mesmo. À pergunta de Malcolm, ainda menino, sobre a morte, eu havia respondido: Morrer é ir morar somente dentro dos outros.

Na última noite, minha hóspede maior sorriu-me no sonho e eu senti em meus dedos as delícias do toque em seu cabelo crespo.

A chuva passou. Estrelas lantejoulam o céu. O calor vai voltar. 

(In: Contos crespos, p. 196-202)

 

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