Lembrança das lições
Cuti
Sou na infância.
A palavra escravidão vem como um tapa e os olhos de quase todos os moleques da classe estilingam um não sei o quê muito estranho em cima de mim. A professora nem ao menos finge não perceber. Olha-me também. Tento segurar a investida, franzindo a testa e petrificando o olhar. Mas não dá. Um calor me esquenta o rosto e umas lágrimas abaixam-me a cabeça para que ninguém as veja.
A aula continua. E eu detectando risos e fazendo um grande esforço para não lhes dar crédito. Enquanto a professora verifica umas fichas amarelecidas, a sala enche-se de gargalhadas surdas. Ela prossegue. A cada palavra de seu discurso, pressinto uma nova avalanche de insultos contra mim e contra um “eu” mais amplo, que abraça meus iguais na escola e estende-se pelas ruas, envolvendo muitas pessoas, sobretudo meus pais. Ela, após tomar fôlego, recomeça, sempre do mesmo jeito acentuado:
Os negros escravos eram chicoteados... – e dá mais peso à palavra negro e mais peso à palavra escravo! Parece ter um martelo na língua e um pé-de-cabra abrindo-lhe um sarcasmo de canto de boca, de onde me faz caretas um pequeno diabo cariado. Novos suplícios são narrados junto com argumentos entrelaçando-se em grades. Vou mordendo meu lápis, triturando-o.
O clima pegajoso estende-se na sala. O outro garoto negro da classe permanece de cabeça baixa o tempo todo. Nenhuma reação. Uma caverninha humana. Imóvel.
A minha respiração sinto dificultada.
É você, macaco. Você é escravo – cochicha-me um aluno branco.
Sussurro uma vingança para depois e sinto, pela primeira vez, um ódio grande e repentino, metálico, um ódio branco. A professora, em face da minha reação explodindo nas contrações do rosto, pede atenção com forte autoridade. Manuseia outra vez as fichinhas velhas e prossegue:
Os NEGROS ESCRAVOS eram vendidos como CARNE VERDE, peças, desprovidos de qualquer humanidade. Eram humildes e não conheciam a civilização. Vinham porque o Brasil precisava de...? Vejamos quem é que vai responder...
Tremo, encolhido, dolorido diante da possibilidade de ser chamado. Meu coração bate na vertical e meus intestinos se revoltam. Saio apressado da sala, sem pedir licença. Chego à privada em tempo.
Defeco o desespero das entranhas.
Olho as paredes e a porta do cubículo. Estão todas rabiscadas. Procuro espaço. Contenho, com bastante esforço, um choro que me vem insistente para afogar o mundo. Limpo-me com um pedaço de jornal não sujo de todo e fico sentado sobre o vaso branco, pensando, vagando como um prisioneiro perpétuo. A cor do vaso sanitário desperta-me tramas. Primeiro levanto-me e chuto-o com a sola do sapato, depois sou levado pelo vento das imagens, das ideias: “... ponho fogo na escola... veada filha da puta... papel de caderno debaixo da mesa dela... como a bunda de todo branquinho... acendo fósforo... quem me xingar de neguinho... são tudo veado... vou comprar um canivete... dou porrada mesmo!...” E a porta passa a me servir de lousa: “... branco caga no meio...”. Acho graça das coisas que escrevo e continuo.
A agressividade estridente da campainha surpreende-me, então, com meu lápis sem ponta. É o término do período.
Saio. Perambulo sozinho pelas ruas, carregando um mal-estar no meio dos cadernos e um nó de silêncio no peito. No dia seguinte, nada de escola. Vou comer bananas nos vagões da Sorocabana e Joel vem comigo. É meu vizinho, negro também, de outra turma na escola. Entre sutilezas de nosso diálogo, percebo que a “história” da escravidão já espancou mais um por dentro. A gente conversa muito, mas, nesse particular, fica só um silêncio cúmplice, uma bronca em comum, uma solidariedade de quem divide a dor. Não tocamos no assunto, contudo o protesto vem do nosso jeito: falta em cima de falta e nota vermelha, e a gente falsificando os boletins; cartinhas da diretora para os nossos pais, e a gente fazendo assinaturas falsas. As mentiras sempre ao lado da verdade de nosso sentimento de revolta.
Nosso empenho contra os compromissos da escola não dura muito. Alguém vai a nossas casas e dá com a língua nos dentes. Eu e Joel, na volta de um belo passeio, começamos a apanhar no meio da rua. É uma grande surra, de cinta. Fico com vergões nas costas e Joel com uma marca de fivela no rosto para todo o sempre.
A escola de novo. A vigilância aguçada dos nossos pais. Eu e Joel, cada vez mais, com fama de valentes.
Chegamos ao quarto ano com a malandragem bem burilada. Já não damos importância ao fato de nos chamarem pela cor. Entre a molecada, quase sempre fazem isso com medo, medo do Neguinho-eu e do Neguinho-Joel. O medo deles é que nos importa, nos dá alento, ilusão de respeito.
É o dia da festa. O dia do diploma. Nossos pais comparecem, sorriem às professoras, e vamos todos cantar o hino debaixo da bandeira verde, amarela, azul e branca. Verde... Meu pai e minha mãe verdes por um instante... CARNE VERDE. E as gargalhadas surdas balançam o pendão da esperança. Com a mão direita sobre o lado esquerdo do peito, não dou importância ao Joel, que faz piadas.
Ouviram do Ipiranga...
Todos cantam. Fico mudo e triste, até sentir dentro do peito um batuque que me vem de longe, do que não sei de mim. Euforia inexplicável. Descubro o Coração.
O tempo não tem tréguas e as lembranças servem de alerta e lamento. Não é todo dia que se é lançado ao passado como uma flecha, em busca de um alvo que sempre nos é obscuro.
Depois do grupo escolar, cada um para seu lado. Um namoro entre uma irmã de Joel e um primo meu, que mora lá em casa, faz com que as duas famílias entrem em choque por causa da virgindade perdida e a gravidez da moça. Nas discussões não falta, nem de um lado nem de outro, o adendo “nego (a)” à frente das pedradas de palavrões. O atrito fica forte, com tira-limpo aos socos e polícia. A família de Joel muda-se para longe.
Nessa época as dificuldades sobem na mesa de casa. Arroz e feijão sem mistura durante meses, com certos dias de nem isso ter. Meu pai se consumindo em uma cama. Eu e o primo à cata de emprego, aturando nãos e fazendo todo “bico” que aparece. Nasce o filho de meu primo com a irmã de Joel. Ela e a criança acabam permanecendo com a gente. Dão o nome de meu companheiro. Fico contente, embora a referência tenha sido a um nosso parente distante.
Depois de tempos – Joel já em um empoeirado das lembranças –, venho saber de seu destino.
É a primeira comunhão de meu sobrinho. Na porta da igreja tenho a notícia de sua prisão. Um conhecido branco, dos tempos daquela amizade, narra com tal ênfase as peripécias de Joel pelo mundo do crime que me faz lembrar dona Isabel, a professora. Desconverso. Tento afogar Joel no esquecimento. Em vão.
Hoje, mais uma entre tantas prisões: Preso o marginal Neguinho Joel – foto em primeira página. A marca da raça e a marca do golpe da fivela no rosto.
As máquinas lá fora não dão folga pra gente. O banheiro dessa fábrica torna-se o único refúgio, apesar do cheiro. Aqui venho ler jornal quando o chefe não está por perto.
Nesta manchete de hoje, no rosto de meu amigo, aquela marca aponta um grito aparafusado com jeito na minha garganta. Mais um aperto: Preso o marginal Neguinho Joel.
Porta e paredes rabiscadas já não adiantam nada. Já nem servem mais ao desabafo!
(In: Contos crespos, p. 160-164).