A liberdade contra o peito

 

Para Akins, Allan e Subverso. Para Cuti

 

Até hoje não sei se era por medo ou por respeito, mas as gotas de suor evitavam a cicatriz no rosto do Joel. Um suor nascido de nosso desespero, porque chovia muito. Talvez até fizesse frio. A vingança nos abriga do mundo, e só nos dá direito a janelas estreitas e embaçadas para enxergar nossas próprias sensações. Ela também nos impulsiona. Nós íamos apressados.

- Segura isso aí, guri, segura isso aí. Se cair, nós tamo ferrado – dizia ele de vez em quando.

Joel não falava alto. Na verdade era quase um sussurro, mas o nervosismo da situação fazia daquilo um grito. As advertências pressionavam nossa arma contra meu peito, aguçando meu estado de alerta. Entretanto, era aquele “guri”, trazido por ele do sul do país que me deixava mais tenso e irritado. Embora calado. “Pô, esse cara tem a mesma idade que eu!”, reclamava em pensamento.

- Tá seguro, tá seguro – foi só o que eu disse.

Estávamos apertados debaixo de um mesmo guarda-chuva, que protegia mais a mim. A cem metros do portão principal, nosso olhar se petrificou, e só a visão lateral nos ajudava a desviar dos carros e outros obstáculos. Era um grande portão de ferro que abria para fora. Pareciam dois enormes braços metálicos nos convidando para a guerra – e eu realmente a sensação de que já íamos entrar atirando. “Agora a gente também quer brigar...”, acho que pensávamos juntos.

- Falta pouco, guri. Segura aí. Se isso molhar, vai ser fogo!

Cheguei a abrir a boca pra lhe lançar uma reação já ensaiada. “Ah, Joel! Para com isso! Cê não tá em Porto Alegre, não, cara!” Mas de novo considerei a gravidade do momento e aliviei.

- Tá seguro, Joel. Já disse, tá seguro - falei demonstrando impaciência.

De um modo como eu não podia imaginar, meus músculos ainda se retesariam mais, pois, quando já éramos vistos por todos na calçada em frente, veio aquele grito longo e estridente, como um pedido desesperado de socorro. A sirene anunciava o começo das aulas. Acompanhei o sorriso nervoso e satisfeito de Joel. Chegamos.

Ao pular uma poça de água na entrada da escola, meu caderno caiu. Joel se virou rápido, disposto a me dar uma bronca, mas viu uma das minhas mãos firme sob o casaco, e relaxou. Peguei o caderno encharcado e seguimos pra sala.

Pelo pátio, colegas respingavam em nossas faces sorrisos debochados, por conta da última suspensão. Havíamos rasgado a fantasia da rainha da primavera, inconformados com a derrota de Bárbara, nossa amiga, que fez a melhor campanha, era melhor aluna, e mais bonita que a menina branca escolhida pelo júri. Até arriscamos dizer que foi racismo. Em outros episódios de rebeldia não houve consequências tão graves contra nós. Naquele, porém, certa má vontade de professores, funcionários e alunos começou a pressionar nossas notas para baixo, e a nos empurrar para os vagões abandonados do Metrô. Lá, diluíamos os resultados negativos e toda a revolta na fumaça que tragávamos – e nos tragava. Vestíamos todas as capas que nos eram jogadas, imaginando que, assim, estaríamos protegidos, invencíveis. No fundo, tomávamos o mau tempo só para nós, e as nuvens do preconceito nos acompanhavam aonde fôssemos: “Lá vem os Diabinhos do Metrô”, elas estampavam em letras alvas e garrafais, e permitiam a todos fazerem a previsão dos nossos insucessos. Isso até aquele dia...

Caminhávamos sob um aguaceiro, e a torrente de sarcasmos que caía sobre nós nos mantinha mais acesos, prestes a explodir, mas nos controlávamos. Contudo, já no corredor, a salvo da chuva, nos deparamos com alunos que abafavam novos risos. Não me contive. Surpreendo o Joel, avancei em direção a olhos arregalados por um repentino temor, disposto a acabar com tudo ali mesmo. Meu amigo, enfim, me seguia, mas não conseguiu impedir-me. Diante daqueles que ainda riam, saquei do peito aquele livro quente e o ergui o mais que pude, como um troféu, ou mesmo o próprio fogo olímpico. Atirei par ao alto.

- Pá! Pá! Pá!

Soltamos largas gargalhadas, e uma enxurrada de interrogações desbotou de uma vez a alegria do grupinho...

Seguimos sem olhar para trás. A gente carregava um ar de superioridade, e sabíamos o porquê. Além do livro, dentro dele, a redação que foi pedida. Nossa vingança espremida. Mesmo certos de que não ganharíamos o concurso, já nos sentíamos vitoriosos. Eu, Joel e MC Crânio, um primo que nos deu uma força, fizemos o texto usando o rap dos Racionais MCs, outro de GOC, textos de Lélia Gonzales, poemas de Miriam Alves, frases de Malcom X... Era munição suficiente para destruir intenções racistas como se fossem bolhas de sabão. No ar. Cada aluno branco ou negro que riu de nós era agora algo frágil e fácil de atingir. Muito fácil. Mas nós queríamos mais. Muito mais. A turma inteira seria nosso alvo. Eles veriam quem eram os Diabinhos do Metrô.

(Sete: diásporas íntimas, p. 64-67)

 

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