Legbas, Exus e Jararacumbah blues (trechos)

Para muitos brancos Farrique era uma espécie de memória coletiva que não sabiam mais reconhecer e, por isso, recorriam a ele quando um fato estranho exigia uma explicação mais consistente. Entre nós, os negros, este papel de vate cabia à minha bisa. A seu modo, Farrique desvendou nosso passado estrangeiro na Verde Vale e no Jararacumbah, auscultou as entranhas do rio tempestuoso para revelar o exato momento das cheias. Desvendou os mistérios do ventre de jararacas albinas para encontrar neles a psique dos seus irmãos brancos. Montou capivaras gigantes, muitas vezes na companhia da minha bisa. Ele conheceu o nosso presente e pôde prever, o futuro que nos aguardava. A idade que seu corpo carregava ninguém poderia precisar, Como minha bisa, devia ter passado dos cem e, como o corpo dela, o dele ainda conservava uma energia extraordinária que dava inveja em muita gente. Poesia rejuvenesce, pensavam alguns na presença do Farrique. Outros concordavam e adicionavam: muita poesia rejuvenesce muito mais. Muitos atribuíam este papel à loucura, sem chegarem a uma posição conclusiva sobre o que fazia do Farrique este vate venturoso que habitava entre nós. De tempos em tempos, corria a informação de que, em função da idade centenária que seu corpo acumulara, o Farrique não só havia privado do convívio do nosso Fundador, mas também havia sido auxiliar do Cientista que viveu por aqui. Podia ter fundado cidades, podia até ter catalogado insetos, plantas e animais mas não realizou nada daquilo que fez a história de vida dos dois amigos porque tinha a alma das letras. Em seus encontros, arengava com o Fundador e o Cientista a respeito da superioridade do poema sobre as cidades e as plantas. O homem não precisa de mais cidades fundadas, ou de mais plantas catalogadas. A humanidade necessita de mais poesia vivida, emendava quando queria encerrar uma discussão com os dois amigos. É um louco, os dois sentenciavam, em sua ausência. Até que, um dia, o baniram do seu convívio. Na intimidade, no interior do seu esconderijo que ninguém sabia onde ficava, a menção na parede esclarecia a respeito dos limites que ele próprio atribuía à arte: a poesia é uma longa caminhada que quase sempre dá em nada. Irônico, Farrique era um realista utópico.

Estes pensamentos me acompanhavam enquanto me afastava do poeta. Essa loucura quero-a para mim, pensava. Um dia, será minha, também. Atraía-me a precariedade da poesia. Saí dali saltitando de alegria, não pela morte que fluía do poema, mas pela poesia que se valia da morte para se comunicar. Mesmo falando da morte, a poesia do Farrique me encheu de satisfação.

Da metade do caminho, podia ver a nossa casa. Ela ficava no fim da rua. Era a última casa. Atrás dela se levantava o verde paredão da mata fechada. Era a moradia da única família negra do Jararacumbah. A única casa construída fora do modelo enxaimel que os alemães adotavam. Este detalhe sempre chamava atenção, atraía olhares e atiçava a curiosidade maldosa dos moradores. Também destoava do modelo italiano já que a madeira não era pintada. Gostava de um pensamento do meu irmão: viver entre brancos pode ser a salvação ou a perdição de um negro. Sempre vivi entre brancos e achava o desafio estimulante, um equilíbrio precário que exigia precisão quase cientifica para não quebrá-lo, para mantê-lo. Diariamente, quando saía de casa para a escola, a imagem que se apresentava era a nossa casa no topo do morro, sem pintura. Descendo a rua coberta de macadame para esconder a lama dos dias de chuva, me via ameaçada percorrendo um corredor polonês. Viam-se do lado direito as casas enxaimel das famílias alemãs; do esquerdo, as moradias de madeira, coloridas, dos italianos. Anos de trabalho como babá de crianças brancas me ensinaram a dizer guten morgen, frau Braun ou buongiorno, signora Dalfovo. A estrutura do Jararacumbah não deixava dúvidas: os Weidgenants, os Mass, os Ruedgers e os Brauns à direita do macadame; os Canottos, os Dalfovos, os Rampelotis e os Ganzanigas, à esquerda. Entre eles se infiltravam os mesmos navios negreiros que salvaram alemães e italianos da mesma fome e da mesma miséria na distante Alemanha ou na longínqua Itália que eles abandonaram para recriá-las, primeiro na Verde Vale; depois no Jararacumbah. Nunca entendi porque, em vez de uni-los, a mesma origem sofrida os separava tão desesperadamente, ali, sobre as pedras do macadame do nosso Jararacumbah. O ódio recíproco parecia algo atávico que ia além da capacidade de compreensão de uma negrinha como eu. Só me cabia aceitar que entre eles se instalara o ódio autonutrido pelo Fundador que proibiu a partilha das terras entre as duas etnias imigrantes. Para a única babá negra disponível, a sabedoria residia em combinar o doce da apfelkuchen com o salgado da polenta con formaggio. Uma pitada a mais de sal ou de açúcar, ou seja, um deslize qualquer naquela instável estabilidade, por menor que fosse, seria a minha dupla danação: me expulsariam de suas casas para sempre.

– Bisa, bisa, o Farrique me disse um poema – gritei do portão, correndo na direção da porta da frente.

A porta da casa se abriu, minha mãe surgiu e correu na minha direção, e me abraçou. O abraço me pôs em alerta.

– Que foi, mãe? – perguntei.

– A tua bisa ... – ela só teve tempo dizer.

Não escutei mais nada. Corri para dentro e me dirigi, o coração apertado, para o quarto da bisa. Estava vazio.

– Mãe, mãe – gritei.

Minha mãe me alcançou no quarto, me agarrou de novo e me apertou forte. Ficou grudada em mim.

– Coragem, Bertília – disse. – Você vai precisar de muita força nesta hora – prosseguiu, me conduzindo, devagar, sempre me amparando, para sala onde se encontrava minha bisa. Quando vi o caixão desabei, desmaiei. Não sei quando tempo durou minha inconsciência. Só sei que meu corpo vagava por uma longa estrada iluminada por uma claridade que apenas deixava ver um cortejo de seres quase imperceptíveis carregando um corpo. O grupo chegava até onde a estrada se bifurcava e, então, desaparecia. Depois a procissão começava de novo, do mesmo ponto de partida até a bifurcação. Quando desapareciam, o mesmo grupo e o mesmo corpo reapareciam no ponto inicial da caminhada. E tudo recomeçava outra vez. Eu queria fazer parte daquele cortejo de luz, mas uma voz me dizia: ainda não, Bertília, ainda não. Esforçava– me para associar aquela voz a alguma pessoa conhecida, a um ente querido, a minha bisa, mas em vão. Não era a voz do Farrique declamando; não era a da minha bisa falando sobre o seu santo de devoção; também não parecia a da minha mãe, nem a do meu pai ou a do meu irmão. Era uma voz nova, irreconhecível, que entrava no meu mundo estranho. Gostaria de reconhecê-la, algum dia. Só me recomendava que eu assistisse ao espetáculo de luzes. Que imaginasse quem eram aquelas pessoas diáfanas em, procissão recorrente e quem elas conduziam em suas costas invisíveis.

Acordei algum tempo depois. Estava na minha cama e a minha mãe se encontrava ao meu lado.

– Mãe, que bom, tu estás aí – eu disse, aliviada por encontra-la velando por mim.

– Estou bem aqui, filha – ela falou e para que eu me convencesse da sua presença passou a mão pelo meu rosto e enxugou as gotas de suor da minha testa. – Tu deste um baita de um susto na gente, Bertília.

– O que aconteceu, mãe? – perguntei e esperei, mas ela, não disse mais nada. Segurava minhas mãos trêmulas, apenas. – Só sei que desmaiei, e não me lembro mais de nada.

– Agora, está tudo bem, filha. Vai te vestir para te despedires da tua bisa.

Ela me deixou sozinha. Minha bisavó havia falecido. O cortejo dos seres invisíveis do meu devaneio, carregando o corpo, havia sido varrido da minha memória. Isso até foi bom porque pude me concentrar no que vestiria para o velório da bisa. Coloquei o vestido de que mais gostava, cheio de cores, um presente da bisa no meu aniversário de 10 anos. Com ela aprendi a gostar de roupa colorida. O meu Santo adora o colorido das coisas, ela me dizia sempre que falávamos dele. Ele acha que a vida não é apenas o preto ou o branco, continuava. Minha mãe certamente viraria o nariz quando eu aparecesse vestida daquele jeito, na sala do velório. Acharia um desrespeito e me expulsaria. Calcei as meias, os sapatos e amarrei as tranças com duas fitas vermelhas. Olhei-me no espelho antes de abrir a porta do quarto. Mesmo negra, aos dez anos, sempre se é linda, disse para a Bertília refletida no espelho. Enquanto me enfeitava, ouvia as vozes que vinham da sala onde a bisa jazia deitada e imóvel.

(Legbas, Exus e Jararacumbah blues, p. 26-29)


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