Agosto

exatamente a esta hora
os garotos escondidos
ao pé da porta cerrada
             do Banco Nacional
entre camas de caixas
             rompidas
             de papelão
e trapos de sono e sonho
em quem tropeçamos todos os dias
de manhã
quando passamos pela Rio Branco
em cadência comercial acelerada
ao comando dos relógios de ponto
já estão de velhos pelas ruas
com seus estômagos de vácuo
lustrando sapatos de couro cromo
para-brisas de carros rancorosos
vendendo flores feridas de abandono
cascas de amendoim
com as bocas gritando por substância
ou a exigir com trancos
(mãos de relâmpago nos bolsos
                                   pastas ou bolsas)
e uma corrida desabalada
                     ao imprevisível
                    (ou nem tanto)
o que lhes seria de direito
(de há muito que cobramos
esta dívida eterna)

exatamente a esta hora
soçobramos em um mar de pernas
rostos coxas roliças bustos
                  traseiros ondulantes
pela Paulista São Bento Barão...
(os olhos respingados de números
cartas compromissos a saldar
fichas de computação
                     e desejos estéreis
que iremos tentar adormecer
sobre balcões e mesas
tão logo nos cubra a agonia)
 
a esta hora exatamente
a esta hora
                 no Rio
bombas explodiram
madeira ossos estuque e artérias
e aqui
os edifícios não moveram
sequer um músculo
                            como sempre
                    (Plano de voo, p. 23-24)

 

Sentinelas

Eram três
        e era noite.

Eram três
e me cercaram.

Era noite
e seca a lâmina fina.

Três pivetes,
meninos sem nome.

Três afluentes do meu sangue.
               (Plano de Voo, p. 36)

 

Oferenda

É certo:
ascendentes presenças não se distanciarão
                                                    nunca
um dedo além do meu ego.
E todo o ruído da ruas
nada mais é que um emergente sussurro
                                            quilombola.

Igual que as pancadas pluviais de verão,
é impossível prever, com segurança, quando
o banzo desabará sobre mim.
Mas sigo me desanuviando.

Em mim, sempre é verão
(âmago abrasivo transpirando, irriquieto,
toda sorte de desejos e lutas).

Os tambores que persistem nas noites
                                            dos tempos
não embalam simples recordações: -
há que se recriar paciente
nosso universo turvo.

Meus músculos estão todos prontos.
Se quiser, mulher, começamos já.
                    (A noite não pede licença, p. 32)

 

Fogo cruzado

Mas, ovelha negra
me desgarrei
o meu pastor não sabe
que eu sei
da arma oculta
na sua mão.

Agnus Sei
João Bosco e Aldir Blanc

Ele sabia que ali era o fim da linha; o último refúgio. Desde o dia em que eles chegaram de surpresa em seu barraco e ele conseguiu fugir pela janela do quarto, tinha ido para todos os lugares que considerava seguros, porém, eles sempre o encontravam. É certo que não tinham conseguido agarrá-lo ainda, mas sempre o descobriam.

Um mês de sobressaltos, vigilâncias, tiros e fugas. Um mês sem dormir e comer direito. Um mês de raríssimas cachaças, poucos cigarros. Um mês sem mulher. Agora, o último esconderijo. E também a certeza de que eles o encontrariam de novo: tinham todo o serviço. Só podiam ter todo o serviço para saber com tamanha precisão onde ele havia se ocultado anteriormente. “E quem deu com a língua-nos-dentes foi o Boneco, ninguém mais”.

Quando conseguiu fugir deles pela primeira vez, a única coisa em que pensou foi pegar o dedo-duro e acabar com a raça dele. Um dia depois, quando invadiu o barraco do Boneco, de madrugada, um trinta e oito e uma ponto-meia-cinco nas mãos, só encontrou Nica.

A negra assustou-se, tremia muito, mesmo à luz da vela, ele pode ver seus olhos inchados e cor de sangue, duas ilhas cercadas por manchas roxas. Informou que o Carlinhos Pif-Paf tinha chegado todo sem jeito no barraco, querendo falar com o Boneco. Ela disse que não o via desde a manhã do dia anterior, quando ele saiu de casa. Então, o Carlinhos respirou fundo e, olhando para o teto, disse que havia lido num jornal pregado numa banca que a polícia tinha descoberto um presunto todo esculachado e sem documentos nas quebradas de um subúrbio qualquer. A foto do sujeito não era muito boa, mas ele achava que o tal do desconhecido se parecia com o Boneco. Ela nem pensou duas vezes. Foi correndo para o IML.

No Médico Legal, abriram a geladeira e colocaram o corpo na mesa. Os dedos pisados e sem unhas. A boca inchada só com os cacos de dentes podres inteiros. Nariz estourado. Testículos também. Marcas profundas de algemas nos pulsos. Sinais de pontas de cigarro por todo o corpo perfurado de balas. Mas era ele. Era o Boneco mesmo.

Então, um profundo sentimento de pena foi substituindo na garganta o gosto amargo do ódio que sentiu pelo companheiro.

De lá pra cá foi isso: pulando de um lado para o outro; sempre com eles no calcanhar. E, finalmente, aquele reduto imundo, fedorento e abandonado. O proprietário, Cana-Brava, há muito tinha saído de circulação.

O dia arrastou-se quente, abafado. Ele rezou para não chover, pois o barulho dos pingos contra as latas e o zinco do telhado bloquearia a vigilância de seus ouvidos. Contou os buracos do teto, as fendas nas paredes. Andando de quatro, juntou e fez um monte com as pedrinhas espalhadas pelo chão. À medida que o sol caminhava pelo azul doído do céu, o ar dentro do barraco ia se tornando mais e mais pesado, e ele começou a ter a impressão de que mãos invisíveis iam pouco a pouco introduzindo tampões em suas narinas. Sentou-se em um canto qualquer, com a camisa totalmente aberta. Durante algum tempo, ficou brincando com a ponto-meia-cinco: tirando e introduzindo o pente, até que o tédio fez com que a jogasse em cima de uma mesa toda desconjuntada, feita de caixotes de madeira. Depois, só de cuecas, caçou pulgas na camisa e calça sujas. Procurou pensar em diversas coisas: mulher, futebol, besteira que fosse; mas eles sempre na mente. A boca seca. Vez por outra, recolhia com a língua algumas gotas de suor que lhe escorriam pela face. O que não daria por um cigarro!

Com a noite, vieram os vampiros: mosquitos e pernilongos bem-criados que picavam dolorido e produziam coceiras e calombos em todas as partes desprotegidas do corpo. Uma vontade louca de matá-los a tiros; de sair correndo dali. E as horas carregando pedras que pesavam toneladas.

De repente um barulho esquisito lá fora, no mato. A mão apertou tanto o cabo do trinta e oito que o sangue fugiu da ponta dos dedos. Tudo quieto. Nem os pernilongos barulhando. Súbito, uma voz furou o silêncio:

– Tinhaço, te entrega. Sai daí de mãos pra cima que não te acontece nada. Você tá cercado. Não adianta resistir.

No mesmo instante, pensou no Boneco todo fodido. Sabia muito bem o que esperava, se ele se entregasse. Mas não deduraria ninguém. Mesmo porque não tinha quem entregar. Só que eles não acreditariam.

– Nós sabemos que você taí. – o sujeito insistiu – Não tente nenhuma manha. É besteira. Nós somos em dez. Melhor você vir por bem.

Mordeu o lábio inferior até sentir o gosto do sangue.

Então, alguém jogou algo dentro do barraco por uma brecha na janela. Ele não teve tempo pra nada, pois o objeto explodiu ao tocar no solo. Uma explosão seca. E aí, a fumaça. Fechou os olhos, mas a fumaça ardia, queimava a cara. Começou a sufocar. Veio um acesso de tosse. Abriu os olho por um segundo para localizar a ponto-meia-cinco em cima daquilo que considerava uma mesa. Encheram-se de lágrimas. Com a voz rouca, mas forte, entrecortada, gritou:

– Tá legal... eu m’intrego... num atirem... eu m’intrego.

Lá fora, a voz ordenou:

– Sai devagar, de braços erguidos.

Inutilmente, esfregou os olhos com as costas das mãos, sem contudo largar as armas. A vista submersa vermelha, semi-cerrada. Através de um pequeno filamento horizontal, conseguiu visualizar a porta, que caiu com o ponta-pé. Correu atirando à esmo feito mil fuzileiros e por poucos segundos ainda foi capaz de ouvir e sentir o fogo cruzado.

(Fogo cruzado, p. 13-16)

 Eles pensam que ninguém sabe

Eles pensam que ninguém sabe, mas eu vi. E por isso, não durmo direito há mais de um mês. Mesmo sabendo que eles pensam que ninguém é testemunha, não fico sossegado. Também, quem é que mandou eu ficar zanzonando sozinho, feito lobisomem. Ainda mais pr’aquelas bandas. Nenhuma pessoa com um pouco de juízo na moringa se arriscaria a andar sozinho pr’aqueles lados a tal hora. Acho que por pensar dessa maneira, eles não se preocuparam muito em dar uma busca mais detalhada no local. Talvez isso nem tosse importante. A julgar pelo arsenal que carregavam: Vinchesters, Chimites... canhões e trabucos de todos os tipos e calibres; o mais importante pra eles tava lá dentro daquele barraco quase caindo aos pedaços. Eu percebi, de longe, o grupo – graças a Deus que não me viram primeiro! – e me amoitei rápido, observando a manobra.

Primeiro, se dividiram e depois foram se espalhando e cercaram o barraco. Quando todos tinham tomado posição, um deles gritou: “Tinhaço, te entrega. Sai daí de mãos pra cima que não te acontece nada. Você tá cercado. Não adianta resistir”. Ninguém respondeu. E o mesmo cara insistiu: “Nós sabemos que você tá aí. Não tente nenhuma manha. É besteira. Nós somos em dez. Melhor você vir por bem”. Nada. Então, um sujeito foi se arrastando feito cobra – eu vi muito bem, porque minha vista é pra lá de boa – e quando chegou debaixo da janela do barraco, atirou um negócio pelo buraco que havia nela e saiu correndo. Teve um barulho seco lá dentro e começou a sair fumaça. Era uma granada de gás. Demorou um pouco e todos ouviram uma tosse – todos quer dizer: eles e eu – e uma voz rouca, mas forte, entrecortada, gritou: “Tá legal... Eu m’intrego... num atirem... eu m’intrego”. Lá fora, o chefe do grupo ordenou – só podia ser o chefe porque era o único que falava: – “Sai devagar, de braços erguidos”.

Pro meu espanto, não dos outros, a porta abriu num repente e um monstro dum negrão saiu correndo, com dois berros nas mãos, atirando pra todo lado, feito um doido. Pro meu espanto, não dos outros, porque eles abriram fogo cerrado em cima do infeliz e picotaram o nego à bala. De araque! O sujeito ficou um tempo suspenso no ar, não sei quanto, mas tenho certeza que ficou, de tanto tiro que recebeu, até que caiu, igual uma peneira, levantando pó do chão.

Não vi mais nada. Minha vista escureceu e eu apaguei mesmo. Quando acordei, o lugar tava deserto. Mas o sangue, as marcas dos tecos estavam lá, no barraco. Era só cutucar com um canivete, que a gente arrancava um bocado de arrebite. Dei o maior pinote da minha vida. Corri pra burro.

Agora, vivo nesse dilema. As imagens não saem da minha cabeça. Tenho certeza que eles pensam que ninguém sabe, mas eu vi. E por isso, não durmo direito há mais de um mês. Mesmo sabendo que eles pensam que ninguém é testemunha, não fico sossegado. Eles são fogo, e quem me garante que não venham a descobrir que eu também sei?

(Fogo cruzado, p. 65-66)

 Em busca do Eldorado

Para Araty Peroni

– Deixa estar, velha. – Disse sem despregar os olhos do caminho que ia terminar a mais de 600 metros do alpendre, lá na estrada – Deixa estar. É coisa da vida.

Com as mãos grossas por calos, afastou de maneira suave a cabeça da mulher que, devido aos soluços, dava sacudidelas em seus ombros.

A velha carregou os soluços para o quarto e ele foi, mecanicamente, sentar-se no banco de madeira da varanda, sem contudo desviar a vista do caminho. Neste, podia-se ver pelas costas um casal caminhando de mãos dadas, mergulhados no cinza da tarde.

O homem, com um boné sobre os cabelos negros, terno escuro – o paletó deixando à mostra o colarinho da camisa amarela-antes-branca, dava a impressão de haver pertencido a um sujeito duas vezes mais gordo que ele; a calça terminava feito uma sanfona no sapato de solas gastas e saltos tortos – e um saco encardido, semelhante a uma cebola, nos ombros, guiava com passos firmes a mulher.

Ela, com o crânio inclinado um pouco para trás, cabelos e o vestido vermelho dançando ao vento, acompanhava o marido, sentindo as pedras do caminho nas plantas dos pés. Um saco menor mas tão encardido quanto o outro, também dançava em suas costas ao compasso dos passos.

Da varanda, o velho perseguia-os com os olhos apertados. Por momentos, mordia os dentes com tamanha força que profundas crateras surgiam na fronte morena e em cada lado da face magra, brotavam dois pequenos montes entre a barba branca por fazer. As mãos massageando os braços entrelaçados. Nem ao menos piscava, acompanhando os vultos em vermelho e preto. Até que a vista se turvou.

Só então trouxe o olhar para as flores que escoltavam a escada, para as roseiras que se derramavam sobre a sacada e para a varanda. E pela primeira vez na vida sentiu a presença de ninguém, ali sentada com ele naquele banco onde caberiam mais quatro pessoas com folga. Uma presença inquietante que lhe abria a camisa e apertava o tórax ossudo com força, para dentro, como se tentasse transformar o peito em uma pelota de papel. Ali, naquela varanda onde antigamente, nas festas, colocava-se mais cinco bancos iguais àquele encostados na parede. As salas repletas sob a luz dos lampiões e ao som da harmônica e do pandeiro; que bons tocadores sempre existiram e ainda existem por aquelas bandas. Só não se faz mais festas porque os tempos são outros. Sem tanta fartura. Todavia, tem-se teto e alimento garantidos no sítio.

O nariz apontou para o assoalho e o velho fez uma leve pressão sobre o chapéu de palha. Quantos pés já pisaram nestas tábuas, agora cheia de buracos e fendas, carcomidas pelos cupins. Bem que ele andara pensando em reformar o assoalho, trocar o forro de sapé do alpendre que já deixava à mostra, aqui e ali, suas costelas de troncos finos de eucaliptos. Mesmo uma pintura nas paredes sujas de barro. Mas pra quê, agora?

Tornou a andar com os olhos pelo caminho e alcançou o casal já na estrada, que feito uma cobra ia afinar o rabo nas colinas, que se fundiam no horizonte.

Não entendia porque a maior parte dos jovens desprezavam o lugar que os vira nascer pela cidade grande. Deixar a terra, as criações, o plantio, em busca do quê? Ouviriam na cidade grande os passarinhos em algazarra ao amanhecer e ao cair da tarde, cantando o dia inteiro entre as folhas do pé de pêssegos, do laranjal, da jabuticabeira? Os grilos, o coaxar das rãs à noite? Teriam a oportunidade de ajudar um bezerrinho vir à luz, na cidade grande? Poderiam sentir o cheiro da terra molhada e das flores, pressentir ainda a tempestade, lá para onde iam? E seus filhos? Ao virem ao mundo, saberiam o significado de tudo isso? “... Ah, meu Deus! Por que? Pra que, meu Deus?!”

Os soluços da velha furaram a escuridão e o silêncio da casa, indo cravar-se em seus ouvidos. A pobre mulher custaria muito para acostumar-se com a ausência da filha e do genro.

O casal era agora somente dois pontos coloridos na poeira da estrada, que pouco a pouco se enterrava na noite.

E o velho sentiu, naquele instante, que era preciso matar a espera; assassinar a esperança de, ao menos, conhecer um neto; a necessidade de transformar-se em mármore.

Com a palha e o rolo de fumo-de-corda guardados no bolso traseiro, fez um cigarro que os dedos e as veias saltadas levaram à boca. Acendeu-o e tragou fundo, aspirando longa e lentamente a fumaça, de olhos fechados. Depois, foi soltando-a sem pressa e ainda de olhos fechados, pensou: “Deixa estar, velha. Deixa estar. É coisa da vida”.

(Fogo cruzado, p. 62-64)

Meu artista preferido

Ela num era assim, eu sei que não!

Antigamente vivia sorrindo. Como eu gosto dos dente dela... branquiiinhos... igual das moças que aparecem na televisão, nas capa de revistas, mais bonitos até. Faz tempo que ela nem mostra mais os dente. Antes, mamãe cantava o dia inteiro; era na cozinha, no tanque, passando roupa. Como era gostoso ver a mãe daquele jeito. Os cômodo eram pequenos pra ela. Agora tá diferente, parecendo velha. A gente nota que ela anda meio esquisita.

De primeiro, num ligava que eu brincasse sozinha pelo corredor ou com as criança dos vizinho. Podia descer as escada e ficar brincando na calçada que num tinha poblema. Agora, não quer nem que eu saia do quarto. Tenho que ficar o dia inteiro aqui dentro. Só vejo a rua pela janela – inda bem que é grandona – e já tô cheia de brincar com as buneca e ver televisão. Quando reclamei, mamãe disse que num era bom pra mim ficar solta nesse curtiço fedorento. Foi a primeira vez que ouvi ela falar assim da nossa casa e acho que se algum vizinho escutasse não ia gostar.

É um casarão tão bonito! Só que tá meio velho. As parede com tijolo aparecendo, sujas e com a cor gasta. Tem umas porta grande, que terminam fazendo uma curva em cima, igual porta dos castelo que eu vejo nas revistinha e nos desenho. Os vidro das janela tão quase tudo quebrado, mas as tábua não deixam entrar chuva e depois, mora tanta gente aqui, tanta criança! Fedorenta eu sei o que é; ela não me explicou o que quer dizer curtiço. Deve ser um negócio feio, mas eu num acho nossa casa feia. Gosto de correr por esses corredor escuro e agora tenho que ficar no quarto inventando coisas, vendo tevê ou olhando pra cara desses artista na parede.

Nem isso ela faz mais. Pregar fotografia de artista na parede. Também, tem tanto! O Tarcísio, o Jerry, Elvis, a Regina, a Betty, a Sandra, Roberto... Se for dizer o nome de todos, fico cansada. Meu preferido é o Ney. Sô fã dele.

Mas que tá esquisita, isso tá! Gozado. Pensando bem ela num se importou muito com as novela nesses dias. Ficou parada em frente da tevê como coisa que tivesse assistindo, mas eu reparei os zóio dela e eles tavam parados quiném os do Seu Mané Cego.

Ela num era assim, eu sei que não. Depois daquela noite, quando uns home de revólver e espingarda quase derrubaram a porta e levaram papai embora, ela foi ficando cada vez mais triste.

Levei um bruta susto. Primeiro, foi as pancada na porta e os grito chamando meu pai. Ele deu um pulo e, de joelho, abraçou a mamãe que tava na outra cadeira. Um abraço bem apertado igual nas novela. E os home batendo aos grito. Então, sem largar da mamãe, meu pai falou alto que eu ia abrir; que pelo amor de Deus entrassem com calma pra não me machucar que era pequena e que ele num tinha nenhuma arma. Que esperassem um pouco pelo amor de Deus. Fez sinal pra mim com o dedo e continuou abraçado. Assim que eu abri a porta e eles viram meu pai lá, daquele jeito, vuô todo mundo em cima e sairam arrastando ele, aos tranco. Nós duas nem dormimo aquela noite. Mesmo que quisesse eu num podia. Fiquei a noite inteira ouvindo os suspiro fundo que ela deixava escapar de vez em quando e sentindo na cama os seus soluço. Quando perguntava, ela dizia que o papai tinha ido viajar com eles, que logo-logo ia voltar. Eu duvido muito. Já faz bastante tempo que isso aconteceu e ele ainda tá viajando. Uma história mal contada, mas como a mamãe anda muito triste, resolvi não especular mais. O pobrema é que de lá pra cá ela tem se matado no trabalho. Conversa pouco. Tem pouca paciência comigo. Penteia meu cabelo e faz coquinho de qualquer jeito. Ralha por besteira. Deixou até de cantar! Tá cumas roda roxa em volta dos zóio, parece que levou murro; quiném acontece nos desenho. As roupa relaxada, frouxa em cima do corpo. De quando em vez pegava ela com as mão na cabeça, escorada nas parede ou então sentada e fazendo a mesa de travesseiro. Bem que eu desconfiei que ela tava doente, mas quando queria saber o que ela tinha, mamãe dizia que era nada, coisa passageira.

Ela num era assim. Vivia sorrindo. Cantava o dia inteiro. Num perdia um capítulo das novela. O grande amor dela é o papai e depois dele, homem pra mamãe é o Tarcísio. Quando ele aparece na televisão, as sombrancelha dela quase encosta nos cabelo. Ontem, quando foi deitar mais cedo sem ver a novela do Tarcísio, eu achei que a mamãe não tava legal e agora, de manhã, ela continua aí, deitada. Já chamei, chacoalhei e ela num responde e nem se mexe. Tá tão fria. Num sei o que acontece. Também num sei onde ela guardou a chave da porta. Acho que vou trepar numa cadeira, abrir a janela e gritar pra ver se alguém lá fora me ajuda, porque eu já pedi pro Tarcísio e pro Ney e eles só sabem ficar lá na parede, sorrindo.

 (Fogo cruzado, p. 59-61)