Viagem a Ititioca

Afagando com o olhar as pernas grossas, seios fartos, jeito de gata vadia, Neco cantarolou mentalmente, assim como quem não quer nada, “ela disse-me assim / tenha pena de mim/ vá embora...”. Lupiscínio, filosofia pura. Roxinha de tal quilate merecia castigo, desses que macho competente inflinge na cama. Merecia e acabaria pedindo, sim, contrita, “tenha pena de mim”.

Mas não era tempo de ir embora. Pelo contrário, era ainda preciso chegar à casa dela. Aquele ermo esquisito.

Ititioca, Odete?

- Ititioca, amor – pra lá de Pendotiba.

Amor...O que o fez estremecer, arrepiado na nuca, súbito consciente do roçar do colarinho no pescoço.

Amor... Compensava o fato de que Ititioca é fim do mundo, onde o vento faz a curva. Só podia compen­sar... E por isso ele suprimiu o pensamento de que melhor seria aquietar-se, voltar sozinho para casa.

Deve ser coisa de idade. Desde que entrara nos sessenta, vinha-lhe às vezes, na véspera da farra, o tormento da dúvida. Sua casa não era lá essas coisas, certo, um barraco em São Gonçalo, beira-rio. Riozinho sacana, parido em Tribobó: um dia fez do barraco leito forçado de sua cheia, e lá se foram o aparelho de televisão, a vitrola, os discos, a cama, os papéis.

Mas era. O fogão funcionava, a cama nova lhe adulava o corpo, o rio agora corria calmo, tantos os presentes que a macumba entregara às águas. Chegada a noite, era só limpar a posta do robalo, mergulhar na panela a trouxinha de pano cheia de temperos suspen­sa sobre o fogão, gargarejar um cálice de pinga, comer, dormir. Era, a casa, não era, às vezes sim.

Ali, agora, Odete era mais. Sentada a seu lado no ônibus, permitia que a barra da saia avançasse para além da metade das coxas e, acompanhando o balanço do veículo, movimentava-se com graça. Cada solavan­co era pretexto para elevar acima do esperado uma das pernas, dando a ver, no instante da passagem entre a coxa e outra, a cena fugaz, mas persistente nas retinas, de uma calcinha de bolas vermelhas.

— Falta muito, Odete?

— Tenha paciência, bem...

"Bem". Adorava a inflexão que ela dava à palavra. Bem, amor... Tom lânguido o bastante para que ele começasse a sentir-se embalado e, assim, ajudado pelo ronco do motor nas passagens de marcha, visse elevar-se ligeiramente o pano da calça na altura da pelvis. Sem esforço, tão súbito! Depois dos sessenta, espontaneidades tais são pequenos milagres, razões de se dar graças a Deus. Trauteou: "Ela disse-me assim..."

— Neco... Como você canta bem! Mais alto, amor!

Não era o lugar próprio. Não nesse ônibus aos pedaços, a caminho de um ermo chamado Ititioca. Depois, Odete não viu nada... Seria preciso ter estado com ele muitos anos atrás, quando o gogó era firme e claro nas serestas. Aí então se podia fazer honras a Lupiscínio, que compositor, que filósofo... "Ela disse-me assim / tenha pena de mim / vá embora..." Lindos eram os passeios a Paquetá, cercado de amigos, moças, violão. As noites, intensas, eternas. A voz era cheia, sim, e não havia os claros que o tempo foi abrindo na roda de parceiros. Agora apenas cantarolava, Odete.

Não era mais hora de melodia. O ônibus havia parado num ponto final. Neco achou que finalmente houvessem chegado, mas era só o início de outro percurso. Tinham de tomar outro ônibus até Ititioca.

— Daqui a pouco estaremos em casa, bem.

Da janela, a cidade parecia entristecer à medida que avançava o ônibus. Iam sumindo o asfalto das ruas, os jardins eventuais, a impressão de estabilidade das ca­sas. Certo, onde ele morava havia também a ameaça do rio, mas tristeza não tinha mandato. E Odete mos­trava-se alegre quando anunciou:

— Chegamos, amor.

Chegar não era exatamente a palavra. Havia um bom pedaço a ser vencido a pé até a casa. No caminho um arremedo de padaria onde Neco comprou, por sugestão dela, um frango assado, um pacote de pães e uma garrafa de vinho doce.

A rua agora inclinava-se para cima, transformando-se em ruela, com restos de lixo, urzes e tocos. Ruma­vam, Neco percebeu, para o alto de um morro. E naquele início de noite era preciso cuidado com os trechos deslizantes e as pedras. Odete, fagueira, à frente. O hábito é tudo, ele pensou, convocando ener­gias para continuar. Molhado de suor, acalentava a esperança de um banho fresco para depois entregar-se ao frango, aos pães, ao vinho e, claro, a Odete. "Tenha pena de mim..."

— É aqui mesmo!

Era voz estranha. Mas Neco fixou-se primeiro na pequena casa de alvenaria no alto do barranco, ladea­da por outras, a maioria de pranchas de madeira, folhas de flandre e mesmo de materiais indefiníveis àquela hora. Só depois reparou no rapaz que se esco­rava na parede junto à porta. Tinha seus vinte anos, vestia um jeans apertadíssimo e usava brinco nas duas orelhas. Voz zombateira, em falsete:

— É aqui mesmo, dona Odete... Isso são horas de chegar?

— Mas cheguei, não é mesmo, neguinho? — res­pondeu

 

Odete, no mesmo tom —. Neco, este é meu filho, José.

 

Ele sabia dos três filhos, mas não que um deles fosse efeminado. E isso ficava mais do que evidente nos trejeitos e na voz do rapaz. Que avaliou Neco com olhar longo, estendeu-lhe a mão de modo como faria a dama ao cavalheiro num salão elegante, reapresentando-se:

— Encantado, sou Josefa.

Uma bichona, meu Deus, pensou Neco, enquanto transpunha a porta de entrada. Odete parecia não ter escutado a deixa do filho. Dentro da casa, uma desor­dem exemplar: mesa de jantar aos pedaços, poltrona com o forro estragado, nenhuma cadeira à vista. Tro­peçava-se em frangalhos de jornais e revistas. Além da saleta, havia uma cozinha minúscula e dois pequenos quartos de dormir. De um deles saiu um garoto de seus dez anos, logo apresentado por Odete:

— Este é Francisquinho.

O menino, macilento e triste, olhou esperançosa­mente para o visitante. Ou melhor, para as mãos dele, que ainda seguravam os pacotes e a garrafa. Simpatia é quase amor, há quem diga, mas também quase um raio, tal a rapidez com que chega. Neco simpatizou de cara com Francisquinho, apiedou-se do olhar supli­cante e esperançoso. Prometeu:

— Vamos traçar este franguinho, amigão. Mas antes quero tirar o suor do corpo.

Não havia água corrente. Mas numa bacia apoiada num tonel de lata, ele pôde lavar o rosto e as axilas. Enxugou-se com o ar noturno, observando as luzes ao longe. De repente, uma voz alta e provocante:

— A vagabunda continua trazendo homem da rua para dentro de casa!

Sobressaltado, Neco virou-se, percebendo que o insulto partia de um barraco de tábuas situado num ponto acima da casa de alvenaria. Não avistou nin­guém, apenas uma luz acesa, mas continuava ouvindo espaçadamente a palavra "vagabunda" em tom monocórdio. Da porta dos fundos, Odete chamou-o, aflita, sussurrando:

— Não dê atenção. É meu filho mais velho, João, que mora ali em cima. Me odeia, não sei por quê. Vive com uma vagabunda e, ainda por cima, bebe o dia inteiro.

Neco registrou que "bem" e "amor" haviam sumi­do do vocabulário de Odete desde que chegaram à casa. Ele podia entender que o ambiente doméstico atrapalhasse a sedução, mas foi ela mesmo a dona do convite. Uma canseira, para se chegar até ali; água, para banho de verdade, não havia; e agora aquele bêbado, certamente violento, gritando insultos... Me­lhor entrar e recomeçar pelo farnel que trouxera.

Na saleta, descobriu que não o haviam esperado para jantar. Na verdade, praticamente não havia mais frango assado, José e Francisco tinham se apoderado das coxas, o peito não estava à vista; sobravam asas, pescoço, pedaços de pele. Odete banhou-o com uma mirada terna e cúmplice, enquanto lhe estendia uma laranja e faca.

— Para sobremesa, depois...

Neco detestava pele de galinha. Chupou asas, ossinhos, comeu pão com laranja e buscou a garrafa de vinho. Sem encontrá-la, questionou Odete com o olhar, mimetizando com as mãos o ato de beber. O mesmo ar cúmplice de antes, modificado por leve inflexão reprobatória, ela sussurrou:

— O José, você sabe...

Josefa. Josefa! Ele mesmo tinha se apresentado assim. A mãe podia fingir que não ouviu, mas Neco escutara muito bem e sabia que tinha pela frente uma bicha desvairada, dessas que fazem ponto perto da estação das barcas, em Niterói, à sombra da estátua do índio Araribóia, com seus imensos colhões de bronze. Pois bem, a bichona estava agora refestelada no des­troço de poltrona, bebendo vinho pelo gargalo. Pare­cia já estar de porre, mas estendeu a garrafa em direção a Neco, fingindo etiqueta:

— Posso lhe servir?

Era demais. Neco estava zangado, ia engrossar, quando Odete pegou-lhe sedutoramente a mão, le­vou-o até a frente da casa e lá fora entoou a cantilena de sua vida difícil, com filhos de pais diferentes e remotos, um bêbado que a odiava, outro que... bem... tinhas suas manias...

— Mania.,. Mania, Odete?

Ele começou a replicar, indignado com a cegueira daquela mãe, mas ela roçou-lhe a virilha com a mão, ao mesmo tempo em que lhe cravava um olhar de promessas. Voltou a chamá-lo de "bem". Sempre sus­surrando, explicou que faria uma cama para ele no quarto dos filhos, por causa do menor de idade, um santinho, para manter as aparências, et coetera e tal. José ia sair, Francisquinho dormia cedo, et coetera e tal.

Retornava o espírito que o arrastara até Ititioca. Ainda ficou algum tempo, contando estrelas, depois que ela se afastou. Ao entrar no quarto, José dava os retoques finais no cabelo, cantando e saracoteando em frente a um espelho. Depois, retirou de uma gaveta uma revista de nu masculino, folheou-a cuidadosa­mente e, dando risadinhas, partiu. Ficou no ar um cheiro forte de lavanda.

Aquela ausência deveria tornar as coisas mais leves. Francisquinho jazia sonolento sobre a cama. Neco despiu-se, mantendo a cueca, para se acomodar no catre que lhe foi reservado. Odete pôs ali, à guisa de cobertor, o lençol que ele vira antes na cama de José. Neco afastou-o com a ponta dos dedos: nada desse mundo o faria cobrir-se com pano usado por aquele sujeitinho.

Depois, não era bem questão de dormir. Tinha de manter-se pronto para o instante em que Odete viria, pé ante pé, convocá-lo para o amor. Esticou o corpo, enroscando-se; o desejo é uma serpente. Mas do quar­to de Odete partia um ronco abafado, e Neco começou a imaginar se não seria melhor acordá-la imediatamen­te. Poderia estar cansada, talvez devesse ser estimula­da. E por que não? Conferiu o sono de Francisquinho, levantou-se, foi até a porta do outro quarto. Estava fechado a chave.

Retornava a irritação da hora do jantar. Além disso, uma vazio persistente na boca do estômago reacendia a consciência do quase-jejum. Nem banho, nem jantar, até agora, nada de Odete. De onde se achava, lobrigou pequena geladeira na cozinha. Enferrujada, com algumas caixas de papelão por cima — por isso não tinha podido percebê-la antes. Dentro, havia gar­rafas de água, algumas verduras e, embrulhado em papel laminado, o peito de frango assado que compra­ra. Frio demais, àquela altura, para mitigar uma fome. De volta ao catre, ainda achava que Odete pudesse surpreendê-lo a qualquer momento. Pernilongos mantiveram-no acordado durante algum tempo, mas o cansaço foi mais forte. Sonhou coisas confusas, angus­tiantes, às vezes despertando por instantes e lamentando não estar em sua própria cama, em sua própria casa, ouvindo o barulhinho do rio. Ter saudade daquelas águas, quem diria.

Levantou-se com os primeiros raios de sol. José não havia voltado para casa, a noite devia ter-lhe sido favorável. Francisquinho adormecido, plácido, irra­diava simpatia. De Odete, nem sinal.

Neco abriu a porta da casa, bateu depois o trinco e preparou-se para a jornada de volta. Inspecionou de­moradamente com o olhar os arredores. No varal ao lado da casa estendia-se, vistosa, a calcinha de bolas vermelhas de Odete.

Do barraco de João, alguém o espreitava pelas frestas das tábuas. "Vagabundos!" Ouviu o insulto abafado, mas não estava nem aí, era homem de paz, só queria agora ver Ititioca pelas costas. "Tenha pena de mim..." A letra da canção, por que secreto motivo, lhe doía na cabeça. Puta que o pariu, Lupiscínio.

(Rio).

 

PURIFICAÇÃO

Deitado sob os escombros do barraco de madei­ra, João podia ouvir as vozes lá fora. Já duravam uma semana as operações de remoção das favelas, mas só na noite anterior tinha havido bombardeio. Helicópteros ofi­ciais e particulares despejaram centenas de artefatos explosivos, arrasando habitações e matando moradores. Alegava o governo que dera prazo suficiente para que to­dos abandonassem o Morro, mas devido à resistência feroz não restara outro jeito senão a força extrema.

Força purificadora, diziam os evangélicos. Após anos de expansões e proselitismo, uma diversidade crescente de seitas protestantes espalhava-se pelo país. Recentemen­te haviam se agrupado em torno de uma organização política, o Partido Evangélico, que tinha maioria no Con­gresso Nacional. Concorriam eleitoralmente com os católicos-carismáticos, também em ascensão, mas faziam consenso no culto ao Espírito Santo. Não mais Deus-Filho, nem Deus-Pai, e sim a terceira pessoa da Trindade, a ponta do triângulo que operava feitos miraculosos e leva­ra os crentes a falarem línguas estranhas.

A palavra de ordem era purificação. Casas de diversão e cultura eram compradas e transformadas em templos. A rede evangélica de televisão cobria o território nacional com men­sagens de regeneração dos costumes e das crenças de toda espécie. Os pregadores eram todos especialistas em marketing e técnicas de motivação coletiva. A network carismática, por sua vez, promovia a maior parte dos espetáculos para a ju­ventude. Cada banda musical portava o nome de um apóstolo.

Os movimentos religiosos cabiam como uma luva no tipo novo de mão que passara a segurar as rédeas do mando. Mandava-se agora cortar quaisquer vínculos com quem esti­vesse à margem das regras do pacto entre Deus e o Mercado. A pretexto de combater o narcotráfico no Morro, o governo queria apagar os traços do velho povo, gente sem recursos, sem qualificação escolar, inassimilável pela Nova Ordem. Es­timulavam-se ligas de higiene social, os ideais de pureza global eram incompatíveis com a sujeira popular.

Os evangélicos em especial queriam apagar todas as marcas consideradas negras. Por isso, havia agora ritos de apagamento. Um lugar com sinais de culto afro-brasileiro era perseguido, eventualmente arrasado a fogo e purificado com sal. Todos os negros que no início haviam aderido às seitas evangélicas terminaram sendo considerados suspeitos e fi­nalmente expulsos.

Fora grande a resistência nos morros e favelas do Rio de Janeiro. E de repente, as autoridades decidiram-se pelo exter­mínio puro e simples. As casas eram primeiro bombardeadas, depois invadidas por uma Guarda Cívico-Evangélica, que usava uniforme cinza semelhante ao da polícia militar con­vencional. A Guarda aprisionava ou, às vezes, atirava nos sobreviventes. Nada disso era considerado excessivo, ao con­trário, perfeitamente funcional, porque as pequenas unidades médicas que faziam a retaguarda dos exterminadores retira­vam dos corpos em boas condições órgãos para transplante cirúrgico em doentes abastados, integrantes da atual esfera produtiva da sociedade.

— Veja se há alguém se mexendo ali! — comandou uma voz.

João imobilizou-se na posição em que se achava e co­meçou a suar muito. Sabia que grande parte dos membros da Guarda era composta por jovens dos condomínios de classe média da Zona Sul do Asfalto, treinados em técnicas de es­trangulamento e tiro ao alvo. Muitos fingiam ser religiosos apenas para ter a chance legalizada de bater e matar.

Ouviu os passos bem próximos e as exclamações satisfeitas:

— Achei! Achei!

Era noite, mas através da fresta penetrava a luz de uma lanterna que deixava João perceber o vulto de um rapaz bran­co, forte e careca ajoelhado perto de alguém. Sorte, sorte, não tinha sido descoberto. Haviam encontrado um vizinho, já idoso, dono da birosca onde João costumava beber com amigos. Tinha o rosto congestionado pelo medo e implorava que o deixassem em paz.

O rapaz pareceu aquiescer, mas subitamente cavalgou o peito do outro, fazendo um gesto rápido e preciso com as duas mãos para o lado. O pescoço do velho quebrou-se com um ruído surdo.

Aterrorizado, João sentia que não deveria sequer respi­rar e permaneceu onde estava, imóvel como uma pedra. Uma pedra que no entanto parecia derreter-se ao fogo. Ele suava profusamente, encharcando o macacão abóbora de lixeiro da Limpeza Pública, que ainda envergava.

Havia mulheres na Guarda. João ouvira falar que algu­mas delas eram também impiedosas, mas a maioria limitava-se a assistir aos espancamentos e assassinatos, fazendo orações em seguida, vira justamente uma moça que agora aparecia por trás do careca e, ajoelhando-se ao lado do morto, come­çava a rezar. Manuseava um terço virtual: um contador digital de bolinhas que simulava um terço e facilitava ao militante católico rezar a qualquer hora, em qualquer lugar. A princípio símbolo de status, o pequeno objeto acabara tornando-se muito popular. A tarja magnética servia ao mesmo tempo para fazer saques de dinheiro em caixas automáticos de bancos e depo­sitar a doação nos templos.

A moça era muito jovem, mas obesa, cabelos longos e cor-de-milho, que emolduravam olhos muito azuis e um ros­to quase angelical. Devia ser "católica-carismática", pensou João, atentando para o terço. Além do mais, os carismáticos divergiam dos evangélicos pelo aspecto físico: homens e mu­lheres pintavam de cor-de-milho os cabelos para se assemelharem a adolescentes norte-americanos. Como fazia parte dos novos ideais de pureza social a aparência branco-anglo-saxônico-puritana, copiava-se aqui tudo, literalmente tudo, que viesse do Centro do Império.

A moça devia também trabalhar em banco ou em shopping center, deduziu, observando os detalhes da blusa cinza que passara a caracterizar os atendentes em serviços de muito contato com a classe abastada. Sob a alegação de se evitar tumultos, gente muito pobre, identificada como cida­dão não-consumidor, era proibida de entrar em shoppings e em bancos.

Ele próprio trabalhara muito tempo num banco como técnico em manutenção de equipamentos eletrônicos, até o dia em que veio a ordem de se demitirem todas as pessoas de pele escura. Os empregos típicos da classe média eram cada vez mais escassos, e agora dava-se preferência aberta a gente de pele clara, como sugeriam as televisões e os estrategistas de marketing. João terminou achando um lugar na Limpeza Pública e mudando-se do Asfalto para o Morro.

Os lábios da moça moviam-se rapidamente, no mesmo ritmo dos pequenos gestos que fazia com o dedo indicador sobre a superfície do eletro-terço, enquanto que os olhos, estranhamente cada vez mais azuis, pareciam perscrutar os arredores. Talvez ela estivesse tentando localizar sobreviven­tes, imaginou João. Isso não o preocupava tanto quanto os latidos que ressoavam ao longe. Poderiam estar chegando os pitbulls ou coisa pior.

Essa suspeita lhe acrescentou calafrios ao suor abun­dante. Um pitbull podia arrancar com as mandíbulas, durante o salto, um prego enorme encravado pela metade na parede. Na caça a favelados, haviam-se revelado mutiladores perfei­tos. Mas, com o tempo, descobriu-se um preparado que lhes desnorteava o faro, e isso vinha salvando mãos e dedos.

Havia o pior, entretanto: os evangélicos estavam impor­tando uma raça de cães do sul dos Estados Unidos, inteiramente brancos e treinados para atacar apenas negros. Resistentes aos bloqueios químicos do faro, visavam princi­palmente o pescoço da vítima, e já se dizia que poriam fora de moda os pitbulls. Desfilavam nas ruas com grandes coleiras prateadas, com nomes como Himmler, Eichmann e Pinochet.

A moça agora movia freneticamente os lábios. "Boca-mole", pensou João, tão nova e já uma boca-mole. Assim chamava-se no Morro um certo tipo de gente do Asfalto. Aos poucos, o povo empobrecido foi se dando conta de que na sociedade oficial falava-se muito por não se ter nada a dizer. Jornais, rádios e televisões falavam o tempo todo sem querer dizer realmente coisa alguma. Nos intervalos, canções repetitivas, intermináveis, destinadas a fazer os mais jovens mexerem toscamente os corpos num arremedo de dança.

Governantes e políticos vociferavam frases incompre­ensíveis para eles próprios. E as pessoas dos shoppings, dos condomínios fechados e seguros, frequentavam cada vez mais consultórios terapêuticos e encontros de autocrítica carismática, de onde saíam falando sem parar sobre si mes­mos. Quanto mais se explicavam, menos se entendiam.

Tornara-se costume de muitos descer o Morro aos do­mingos para contemplar, do lado de fora dos condomínios, a gente que falava interminavelmente nos jardins. A distância, por trás das grades, às vezes de enormes vidraças à prova de choques, o movimento compulsivo das bocas no falario lem­brava o dos peixes no aquário. Assim surgiu a designação de "boca-mole", que logo se estendeu a políticos, jornalistas, artistas e pregadores religiosos.

Num certo momento, João bem se lembrava, quando parecia iminente o colapso total do entendimento no As­falto, os fundamentalistas do Espírito Santo ganharam força inédita e começaram a dominar as cidades. Não era preciso entender mais nada, bastava declarar-se fiel e se­guir os preceitos bíblicos, interpretados por pastores ou padres carismáticos.

Depois de algum tempo, não era preciso sequer escutar o que diziam. Bastava antenar-se com o movimento espas­módico dos lábios e balançar ritmadamente o corpo, quando havia música. Os eleitores passaram a votar em bocas-moles, fantoches maquiados para a televisão e apoiados por religio­sos. Os verdadeiros senhores eram financistas, industriais e representantes de organismos estrangeiros.

A moça rezava cada vez mais ruidosamente, mas João sabia que não havia sequer palavras, tudo era uma massa so­nora confusa, inteligível apenas a quem fosse tomado pelo Espírito Santo. Pela fresta dava para perceber que a moça estava agora sozinha. Os outros membros da Guarda tinham se afastado dali.

Persistiam no entanto, mais próximos, os latidos. E os olhos da moça continuavam estranha e intensamente azuis, como se não fossem reais as pupilas, como se sugerissem uma espécie de aparelho eletrônico capaz de furar a espessura da noite em busca de vítimas.

De repente, João soube por que ela continuava ali, à espera, rezando. De algum modo ela já o havia localizado há tempo e orava por ele mesmo, a próxima vítima. Toma­do de imenso terror, ensopado de suor, ele ainda pôde se dizer que se tratava de uma jovem sozinha, fácil de se do­minar. Sairia dali, correndo, antes que voltasse a Guarda. Pez então um esforço para sair de debaixo do destroço da parede de madeira onde julgara estar a salvo, ergueu a ca­beça e deparou com o olhar translúcido da moça, que o verrumava como um feixe de laser. Ao lado dela, uma ma­tilha de cães absolutamente brancos.

Juntos, saltaram sobre ele.

Grito — doído, cantado ou ofensivo, João sabia, sempre foi recurso de negro.

Sufocado, de olhos fechados para evitar a visão terroiifica, ele conseguiu mesmo assim soltar um grito lancinante. De repente, a mão de uma pessoa estranha à cena lhe pegou pela cabeça, obrigando-o a levantar-se, e ele viu Joana, sua mulher, ainda o sacudindo e abanando a cabeça com ar de reprovação.

— Nisso é o que dá beber numa segunda-feira, depois de um domingo em que não se fez outra coisa — ralhou ela. — uma vergonha ficar assim escornado, de boca mole, baban­do... Ainda mais quando se tem obrigação a fazer, como a sua!

Trémulo, mal conseguindo refazer-se do pesadelo, João levantou-se nos poucos da cama encharcada de suor. Piscan­do muito, passeou o olhar pelo barraco, certificou-se de que tudo ainda estava em seu lugar e lembrou-se de que, às sete horas da noite, no retorno do trabalho na Limpeza Pública, havia parado na birosca para tomar com amigos um gole de pinga. Não tinha sido grande coisa, ele aguentava bem a be­bida, porém Joana estava certa: foi pesada a farra no domingo, ele deveria dar-se um tempo no dia seguinte.

Mas o problema mesmo era outro. Aquela era uma se­gunda-feira em que ele tinha obrigação de Exu. No canto do quarto, os materiais do ebó — a farofa de dendê, a ca­chaça, os charutos, as velas — estavam prontos, à espera. Ele havia bebido antes, certamente desgostando o Com­padre. Daí, o cochilo imprevisto, daí aquele sonho horrível, que até agora lhe parecia tão real.

Ainda estava em tempo, porém. Calçou rapidamente as sandálias de borracha, enfiou o ebó num saco plástico de supermercado e, sem mais dar ouvido à rezinga da mu­lher, saiu de casa. Iria à procura de uma boa encruzilhada no Asfalto, como sempre fazia. Exu gosta de quinas per­feitas, senão de sopé de árvore frondosa.

Antes de descer o Morro, parou no início de uma rue­la que sempre usava como atalho e contemplou por um instante o céu. Nuvens escuras, carregadas, prenunciavam chuva. Baixando o olhar, avistou ao longe os movimentos sorrateiros de um grupo que começava a subir a ladeira principal da favela. Vestidos de cinza, os homens carrega­vam rifles e metralhadoras. À frente, controlados por coleiras, pitbulls excitados.

 

 

METAFÍSICA DO GALO

Não obstante, já houvera o toque da faca no pesco­ço da ave quando alguém gritou em advertência que a soltassem. É legorno, disseram, não serve para o santo. O bicho sentiu o frio da lâmina, o calor do arranhão e ademais, ouvindo o grito, debateu-se.

Legorno — assim: esbranquiçado, pescoço liso, sem o porte dos grandes dourados, negros, vermelhos. Mas galo, sem dúvida, e ali estavam as cristas carnudas, as asas largas e curtas, o esporão que confirma o macho. Nem mesmo se poderia dizer galispo ou garnisé, que era de bom tamanho, só que legorno.

A meia-noite, uma ave tresnoitada, sacudida pela mão que a conduz ao sacrifício, ofuscada pela lanterna que outra mão carrega, pode assustar-se ainda mais e evocar o diabo pela barulheira que faz. Nessas ocasiões, há quem lhe fale ao ouvido, quem peça coisas ao santo, conversando com o galo. Com aquele ali não adiantava, era um esporro só. Legorno, ainda por cima. Não serve, há quem discuta, mas também quem tenha certeza: não serve para o santo.

Vida de galo é só canto, bicada e pastoreio de galinhas. Se é raça de briga, pode virar herói na mão de um galista. Em de casa de quimbanda, sendo todo preto ou vermelho, são mui­tas as chances de que termine encruzilhado numa meia-noite, em meio a farofa, cachaça e charutos.

Legorno, afora a serventia às fêmeas, é bom de panela. Depois do contato com o fio da faca, porém, o galo nun­ca mais foi o mesmo. A princípio arredio, varava cerca e grade, evitando companhia. Voltava a casa quando tudo ficava qui­eto e teimava em passear pêlos quartos, mais atento a gente do que a galinhas.

Um dia, bicou a verruga do dono da casa. Foi assim que se começou a falar dos seus poderes. Tar­de de domingo, ressaca de pinga, o quimbandeiro jazia escarrapachado na cama, deixando à plena mostra a verruga sinistra, prcocupante, que lhe crescia no nariz. No posto mé­dico, haviam falado em cirurgia e exames. Mas para ele próprio era coisa feita, desgraça desejada, despique tramado por desafeto competente em malefícios. Aí, vem o galo e extirpa o mal com uma só bicada, sangue quase nenhum, segundo o testemunho espantado da dona da casa, que entrava no quar­to naquele exato momento.

E da ordem natural das coisas que o fato se tenha espa­lhado, que vizinhos tenham acorrido em busca de milagres para outros males, que o quimbandeiro tenha procurado se­gurar a ave, de olho na administração dos negócios de cura. O comportamento do bicho, entretanto, desencorajava ações serenas. Agora, não só transvoava as barreiras, fugindo à aproximação, como passara a andar a maior parte do tempo em cima de muros, chamando a atenção do povo.

O Mutuá, bairro de São Gonçalo, tem quintais, cercas, terrenos baldios, mas antes de tudo histórias fortes de quimbanda. Ali ainda é possível a um galo tomar as liberda­des que tomou o legorno, desafiando quem tentasse agarrá-lo. Fato é que o dono abriu mão de ações mais enérgicas, em parte grato pelo episódio da verruga, em parte suspeitoso de que o santo pudesse ter deslocado os nervos do bicho no instante do quase-sacrifício. Até mesmo gente que normal­mente cobiça aves deixadas ao léu respeitava o desacerto do legorno.

Quem comeria uma ave na certa transtornada por Exu? Mas bicho nenhum, ainda que desvairado, foge por in­teiro ao destino instalado no seu íntimo. Galo é galo, gosta de ninho no chão, de remexer a terra com unhas fortes atrás de comida, gosta de banho de areia para se livrar dos insetos infiltrados nas penas. O legorno não gostava de nada disso, certo, mas acabou adorando juntar-se, como todos de sua espécie, a uma galinha.

Uma tresmalhada, sem choco, que só dormia no alto das árvores.

De dia, aparecendo alguém, o galo subia no muro, onde se equilibrava, andando, pesquisando vermes; a galinha, em­baixo, no pé do muro, à cata de semente e farelo. De noite, empoleirava-se no galho mais alto de um tamarindeiro, ele logo abaixo, vigilante. Nada diziam as pessoas contra o ma­cho, porque havia o peso das virtudes a se celebrar. Mas a fêmea, olhada com desconfiança, passou a ser chamada de galinha maluca, começou-se a especular se já não deveria es­tar na panela.

Deus, bem sabem os cristãos, condenou os animais à panela da eternidade quando os entregou às mãos dos ho­mens. Lá no Génese, Ele não deixa por menos: "Sede o medo e o pavor de todos os animais da terra e de todas as aves do céu, como de tudo que se move na terra e de todos os peixes do mar...".

Ou seja, tem vida, se mexe, vira comida fácil, fácil. Por isto há quem possa achar difícil compreender exortações do tipo "baleias e peixes, bendizei ao Senhor! / pássaros do céu, bendizei ao Senhor! / bichos do mato, bendizei ao Senhor!".

Alguns, aqui e ali, escapam: gato e cachorro, por exem­plo, esses que se pensa conhecer melhor. Pensa-se, é verdade, pois bicho é mesmo o que não se determina nem se sabe. Bicho é só pensamento e ilusão.

Dos que vivem empanados com os homens, arrisca-se, é muito natural saber mais. Cachorro, reflexo do dono, é todo euforia e latidos. Gato, não, gato é só pulo e silêncio, fiel a si mesmo e ao lugar, de onde seduz os humanos.

De um galináceo, ai dele, não se conhecem afetos. É que nele mais interessa ao homem, no fundo, a morte — seja da prole nos ovos que se comem, seja a carne no prato.

Talvez por isso não se soubesse muito o que fazer com a extravagância do legorno e da galinha maluca. O par esqui­vava-se às romarias organizadas. Às vezes chegava gente do bairro e, ao pé do muro, tentava obter do galo benefícios mi­lagrosos. Alguns saíam dizendo-se curados, ora de reumatismo, ora de asma, ora de maiores desgraças. Nem sempre pagavam ao dono, que ainda tentava bancar o oráculo, quando já havia perdido em muito o controle das consultas, pela natureza desacertada do galo. O quimbandeiro esforçava-se para tole­rar as coisas do jeito que eram.

A galinha é que era cada vez menos tolerada.

Pra começo de conversa, não era d'Angola, essa que o povo de santo chama de conquém. Chama, respeita e tem porquê. Diz o fundamento que certa feita a peste estava ma­tando muita gente numa região. As pessoas foram consultar o doutor em mistério, que mandou pintarem de manchas ver­melhas, com o pó da entidade responsável pela geração da vida, uma galinha comum. O ardil manteve a Morte afastada e fez nascer a conquém, por isto forte nas obrigações. Duas delas, sabe todo bom zelador de santo, equivalem a um bicho de quatro pés.

O problema é que a galinha do Mutua não unha nada que invocasse o respeito da tradição. Ordinária, sim, sem qual­quer marca especial que justificasse a presença ao lado de um prodígio. Conquém, não uma ave amalucada, deveria ter fei­to companhia ao galo.

Daí, a intolerância. Daí que aturar legorno mandingueiro é uma coisa: tem a força do incomum, a pressão do povo, a possibilidade de ganhos, a tradição africana de honrar os ani­mais. Já a maluquice de uma galinha pode no máximo afetar o choco, nunca a sua carne. E sendo panela o assunto, o povo de santo, como aliás a cristandade esperta, nada sabe, nem quer saber, daquela quizila imposta no Génese: "...não comereis a carne com sua alma, isto é, o sangue...".

Por estas e outras, a galinha tresmalhada, sem dono co­nhecido, foi morta e servida ao molho pardo pela mulher do quimbandeiro. Se fosse d'Angola, pelo menos teriam borrifa­do água debaixo das asas no instante do sacrifício, como manda a lei do santo. Era pedrês, comum: nenhum rito, ne­nhuma homenagem.

Ao desaparecimento da fêmea, seguiu-se o do macho. Não por morte, mas por sumiço, melhor, por sonegação. Tor­nou-se averso à simples visão de humanos, escondendo-se durante o dia no fundo de um monte de pedras, tocos e fo­lhas adjacentes à casa do dono. Era avistado à noite, de vez em quando, andando no muro. Arisco, trépido, legorno.

Mais uma vez, estranheza: onde já se viu galo morar em toca, que nem cobra ou tatu? Quiseram desentocá-lo à força. Em vão. Um vizinho versado em metafísica do oculto veio amenizar as inquietações com a palavra "ádito", a câmara se­creta de templos antigos. Ali, ao abrigo de olhares não-iniciados, os sacerdotes zelavam por deuses poderosos.

Decidiu-se respeitar o ádito do legorno, deixá-lo em paz. Com o passar do tempo, nem mesmo à noite mais se podia avistá-lo: parecia estar definitivamente enquistado, em jejum absoluto. A toca, já afamada, era objeto de curiosidade e sus­surros reverentes da vizinhança.

Mas o olor que se diz exalar das coisas santas não parece existir no universo do galo, por mirífico que seja.

O mau cheiro levou um dia o quimbandeiro a pesquisar o lugar com a enxada. Havia apenas ossos, restos apodreci­dos de carne, vermes e penas. Foi tudo cuidadosamente limpo, envolto num pedaço de veludo preto e exibido a quem de direito. Ou seja, a gente que, por viver na lei do santo, sabe das transmutações, sabe da força da matéria tocada pelo Invisível.

Na quimbanda do Mutua já é consenso teológico que, mesmo morto, um bicho de pena afeiçoado pelo santo per­manece animal de poder. E mais, começa-se a pensar diferente sobre legorno: agora galo galo, quem sabe, em definitivo.

(A lei do Santo)

 

 

SANTUGRI

NÃO É NADA, não é nada, a roda. Se o vazio ou o traço? Bom, do vazio Deus fez este mundão todo. Não é nada o traço? Mas a criatura só existe quando deixa marca, traça. Para mim, o traço, o vazio, a roda é tudo. Não é na­da, não é nada, é tudo. Gosto, sirn, sabe por quê? Porque, seu moço, a roda não tem começo nem fim. Começo, fim, a mesma coisa, é nada e tudo. Gosto, moço. Nela, meu corpo é meu parece que nele nem corre sangue, corre mel. O meu corpo, meu corpo/foi Deus quem me deu/na roda da capoeira/Rarrá!/ Grande e pequeno sou eu.

Meu nome é Santugri, moço. Posso dizer que o nome está ligado a meu segredo. Muito mais não posso contar, nem se quisesse, porque eu mesmo não sei. Mas posso di­zer, isto sim, posso, que este meu nome foi causa de mudança.

E que antes, veja só, eu me chamava Heraclo. Home­ro, meu pai, gostava desse nome, dizem, e insistiu com o homem do cartório para me registrar assim. Eu jamais gos­tei, meus amigos não gostavam, ninguém gostava, era di­fícil de chamar — Heraclo. Pior: não combinava com meu gosto pela brincadeira. Onde já se viu um homem chama­do Heraclo em roda de capoeira?

Mas foi assim mesmo, com essa graça desditosa, que me criei. Aqui, no Acupe. Isto aqui mudou pouco, moço: a mesma areia na rua, as casas de palha, o caranguejo no mangue. Só não tem mais escravo. Pois é, conheci mui­tos, sim. Meu pai? Não, era negro forro. Mas o velho Quinquim, que me ensinou as artes da brincadeira, era escravo. Jamais tomou conhecimento dessa tal de Áurea, de Abolição, essas coisas, porque tinha gosto em se chamar escravo. Se mudasse, dizia, podia perder a revolta, deixar escapar a ironia.

Pois foi Quinquim o meu mestre. Me levava pra mata, pró Alto da Campina, que hoje querem queimar para fazer indústria, trocar ar fresco por dinheiro, e ali praticava comigo. Às vezes virava pião no jogo e eu uma folha seca, que só de roçar o giro louco daquele corpo era lançado pra trás de cara e tudo no chão. Mas aprendi assim, e como até a me sentir bicho. Como esquecer? Era de noite, à beira do poço, a gente ouvia a zoada do sapo-boi, quando Quinquim me mandou tomar postura de sapo. E depois, arregalar os olhos, deixar a pele arrepiar e pensar que nem sapo. Por um instante fui sapo e enxerguei longe, com a maior clareza, no escuro da mata.

Graças ao velho, entrei no jogo, me fiz mestre na arte do chapéu. Conhece não? O chapéu apara a faca e depois vai direitinho no ouvido do outro. É, sim, surra de chapéu, minha marca, meu traço. Mas também fazia bonito na dança, pois a roda comporta tudo. Muitas, muitas vezes, dia de festa de São Benedito, bem lá na frente da capela, Quinquim formava a roda, com cavaquinho, ataba-que e ganzá. Berimbau não havia, o velho não gostava. Juntava gente pra ver, sim senhor, e eu ia ao chão manhoso, lento, acompanhando Quinquim. Era assim jogo em dia de São Benedito — coisa devagar, sentida, de voto, devoção. Coisa muito religiosa, com a gente murmurando "eh! eh! Camaradinho, camará!".

Assim, assim, moço, eu me enchi de mundo. Dei pra falar pouco. Céu fala alguma coisa? Falar pra quê, para espantar a minha alma, pra não ver o natural da terra? Precisava não, bastava me acender de grandeza. Mas ainda faltava. Quinquim me explicou: o nome. Heraclo não encaixava, era como passo em falso, era como pedra no meio da roda. Isso era lá nome de capoeira? Isto me desgostava.

Um dia, o destino — coisa poderosa, o destino — ajeitou as coisas. Estava num fundo de armazém lá no jebe-jebe das peneiras, tomando caninha com Quinquim, o farmacêutico e um gringo que passava férias no Acupe, quando tive de exemplar um valentinho. Coisa de poucos tabefes, ele se acalmou. Pelo meãos foi o que achei na primeira hora. Pois o desinfeliz voltou, azul de raiva, esírovenga na mão, pra me dividir a cabeça, como se faz com coco em beira de estrada. Entretido na prosa e na cana, nem dei pelo molecoíe, que chegou sonso pelas minhas costas.

O berro do gringo me salvou a vida: caí nas molas, vendo passar por cima o fio da morte, e botei o valentinho no chão, com uma meia-lua em cima da orelha. Dizem que ficou lerdo pra sempre. Azar. Se conto a história é porque foi importante o grito salvador. Disse o farmacêutico que o gringo chamou pelo Santo Cristo em língua de gringo. Mas Quinquim ouviu "Santugri", e assim ficou. Passou a ser o meu nome daí em diante. Santugri pra cá, Santugri pra lá — gostei. Ninguém era besta agora de me chamar de Heraclo. Não nasci outra vez? Pois tinha direito a nome novo.

Foi minha sorte, moço, pois o som dessa palavra casava fácil com meu corpo, repercutia bem na roda. Santugri. Quando Quinquim morreu, Santugri ocupou seu posto de mestre no jogo. Faz parte de mim, queira eu ou não. Passarinho não canta por gosto, canta por obrigação. Eu jogo capoeira por cerimónia, por destino. É minha sina, minha sorte. Morrendo, moço, não quero ir pra lugar nenhum — a roda já é meu paraíso.

(Santugri)

 

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