Quissange

 

Um leve som de quissange

Varando a varanda fluindo

Rara beleza, perfeito som

Visão noturna, madrugada furtiva

Dança de desejos

Guardados ardis

Poucos toques, beijos

Sem outonos, primaveris

Nós dois sem dilema

Você moça de Angola, Benin

Eu com calma de griot

Vou fazer meu melhor poema

E guardar todos os incensos, marfim

Lábios e sonhos

Prova cabal de que a África é aqui.

(Encantadas, p. 28)

 

 

Negra I

 

Negra, negra

O que fizeram não se perdoa

Mas você, ainda assim, me acolhia

No seu colo.

Quando a noite nos escondia

Na sua cálida placenta

E te roubaram o fruto ainda verde

Para servir na roça

E te rasgaram na senzala

E ainda assim me dás a mão

E te quero minha

E te quero toda

Pois, somos um só

Pra juntos começarmos de novo

E de novo tudo

Só que agora com cores bem diferentes.

(Encantadas, p. 107)

 

 

 

Tanclau

 

(Ou de como o negão descolou hospedagem

dos Federais)

 

Para início de conversa, o caso que vou contar não será mera coincidência com fatos do real que teimamos em dizer que é vida.

Já se vão alguns anos desde que encontrei no IPCN, numa daquelas reuniões, um rapaz chamado Tanclau. Fiquei pensando qual seria a origem do nome, bem falante, simpático, fizemos amizade e quase fundamos, depois de muito papo sobre afro-blocos, o que não chegou a ser o Afoxé Leí.

Tanclau era compositor e também atendia pelo nome de Armandinho. Naquela época o IPCN, um dos poucos movimentos negros que tinham sede própria, andava muito cheio, inclusive de alguns militantes sem pouso que lá descolavam um teto.

De profissão regular, nosso herói era cozinheiro de um hospital próximo e desenvolvia uma prática de militância legítima, facilitando o almoço da rapaziada que vivia a perigo. Diariamente, nos horários de almoço e jantar, ajeitava as coisas de modo que a moçada entrava na cozinha do hospital (pelos fundos) e defendia a boia.

Na verdade, Tanclau tinha uma solução para cada caso. Polivalente, além de cozinhar, nos feriados e domingos guardava automóveis, lavava e polia por um preço módico, batia um couro na Mangueira, de sobra fazia uns sambinhas que arrendava para blocos do sexto e sétimo grupo. Em suma, era, como diria Gonzaguinha, um malabarista da sorte, equilibrista da dor.

Esse papo todo é para nos situar no que ocorreu em Salvador, segundo confissão do próprio, nos idos de setenta e seis, e que veio resultar no batismo africano.

Naquela época, obscura para o contexto geral, vivia-se o "milagre” (que resultou nas inflações da vida), e o solo pátrio abrigava, com desmedida falta de pudor, torturados, torturadores e presos políticos nos mais diferentes rincões.

Tanclau andava no Mercado Modelo defendendo uns cobres com a venda de fitas do Bonfim, jogando capoeira para turista, dando uma de guia, entre outras malabarices da sorte e equilibrices de sobrevivência. De carteira assinada, só mesmo como compositor de Bloco Afro (a polícia não aceitava), fazia três anos. O Ilê Aiyê tinha nascido e inaugurado a revolução ijexá no carnaval e no comportamento de consciência que podemos ver na Bahia.

Num certo dia, temporada de verão, Salvador pululante de gringos, profetas, vampiros, hippies e poetas, a briosa Polícia Civil resolve "sanear" as áreas em torno do Mercado Modelo, onde os turistas se concentravam e, logicamente, as empresas de turismo recolhiam suas largas divisas.

Imaginem o clima de uma "blitz" na Praça Cairu. Critérios: se não fosse gringo, não tivesse carteira assinada ou terno e gravata, cana!

Nessa, Tanclau, crioulo de muitas convicções, vestido de bata africana e sem carteira nenhuma, dançou!

Tanclau havia trabalhado no Porto, trabalhado, digo, uma calça Lee para lá, um perfuminho para cá, isqueirinhos, radinhos de pilha e toda sorte de bugigangas contrabandeadas que as pessoas compram, às vezes sem saber para quê. Para exercer o nobre ofício de moambeiro, Tanclau, eclético como sempre, aprendeu com os colegas aquele inglês de beira de cais, que praticava com os embarcadiços das mais diferentes nacionalidades, vindo a se tornar até intérprete quando surgia produto novo ou desconhecido do vocabulário da região.

Aí, justo aí, os tiras dançaram!

– Documentos?

– I don't understand you, sir.

– É gringo?

– Pardon?

– Gringo preto? Só pode ser africano!

O chefe da operação, informado da presença, nas proximidades da viatura, de um gringo crioulo e não acreditando na existência de tal fenômeno, estanca em frente de Tanclau, com seu traje afro e ar de quem não está entendendo chongas.

– Africano?

– Yes, sir.

– Passaporte?

– I lost it, sir...

– Putz!

Tanclau explicou, com gestos e pondo os bolsos para fora, que não tinha nada.

– Gringo sem documentos vai para a Polícia Federal!

E assim foi.

Transferido o problema do "africano" sem passaporte para a esfera da Polícia Federal, encontrava-se Tanclau, com todas as honras que no solo pátrio damos aos não falantes da nossa língua (lembram-se do Biggs?), frente ao coronel-chefe da Divisão Baiana dos Federais que, no fundo não era muito versado em inglês, muito menos em iorubá (língua para a qual nosso herói volta e meia apelava).

– Vou chamar o professor do Centro de Estudos Afro-Asiáticos para localizar a origem desse negão e ver o que fazemos para mandá-lo de volta.

Tanclau, a essa altura, já se via embarcando para qualquer país africano o que, na verdade, sempre foi seu sonho escondido: ver a terra dos avós.

Quando o tal professor chegou, correu-lhe um suor geladinho pela espinha: – E agora?

O professor pergunta:

– Where are you coming from?

– La Kara, sir.

– La Kara?

– Yes, sir, a region of Togo.

– Oh! Togo, beautiful country!

O professor fala ao coronel: – É africano mesmo!

Tanclau não explodiu de rir na hora por motivos óbvios relaxou a tensão. Afinal, sua mentira tinha colado.

Do modo que puderam se entender, Tanclau contou ter sido roubado e que se encontrava sem passaporte, sem dinheiro e, o pior, sem navio. Quase me esquecia a história do navio: havia aportado em Salvador uma embarcação de bandeira togolesa na semana anterior aos fatos agora relatados. De um dos tripulantes da mesma, nosso amigo tinha comprado umas calças para revender. Contou então que perdera a embarcação da qual seria um dos passageiros. Constatado na lista de atracação do porto o tal navio, ficou tudo confirmado e o coronel se deu por satisfeito. O álibi estava perfeito!

E como acomodar o "africano"?

O único jeito era alojá-lo nas instalações do Departamento de Polícia Federal. Afinal, se improvisada uma cela especiais, não chegaria a um apartamento, mas quebraria um galho.

Lá estava Tanclau, casa, comida, algumas roupas gentilmente doadas por agentes e, o melhor, uma possível viagem para a África.

Mas, azar quando ataca não há santo que tire. Azar de crioulo, então, só acaba depois de sete luas. Estava tudo correndo muito bem. Tanclau morando há duas semanas no quartel dos tiras, com livre trânsito de entrada e saída, vizinho de cela de um preso político muito simpático quando numa noite infeliz, depois de comer um mocotó: sono pesado e sonho! Sonhou, e alto! Falou, praguejou, se bateu, berrou, riu, e o pior, tudinho em português, aquele português safado, amalandrado, cheio de gírias e etecéteras! Não deu outra, o vizinho (o tal preso político) ouviu tudo e, entre meio pasmo e gozador, decidiu sacanear os tiras. Não se sabe bem como, mas o tal preso tinha lá seus contatos externos, e foi a conta! No dia seguinte ao miserável sonho, oito da manhã em ponto, nosso herói foi acordado por um batalhão de repórteres e fotógrafos, que tiveram acesso ao departamento calçados na história de entrevistar um possível líder africano.

A Tarde, entre outros diários, deu a manchete, em letras garrafais:

"Polícia Federal cai no 'Conto do Africano"'.

Claro que nosso amigo não resistiu ao tiroteio de perguntas do pessoal da imprensa e entregou tudo tintim por tintim.

Com aquela, o arrogante coronel-diretor da Divisão Baiana não contava! Estava "secretariável" junto governo do Estado, promessa séria do governador, e logo assumiria a pasta da Segurança. Ser enrolado pelo negão? Era demais!

Dar sumiço no tal (na época era muito comum) daria muito na pinta, uma vez que a imprensa em peso interessou-se pela matéria.

Transferiu de imediato seu hóspede para a delegacia de Jogos e Costumes, agora na qualidade de preso especial. Pior a emenda que o soneto!

Diariamente, os noticiários acompanhavam o caso e Tanclau passou até a dar entrevistas coletivas, apurando volta e meia uma grana "a título de algumas declarações exclusivas" de como enrolou a tão competente instituição, de suas artimanhas anteriores, de suas pretensões futuras e tudo mais que causa a sensação num caso assim.

Ficou menos de uma semana na tal delegacia.

“Forças ocultas” contrataram para o agora acusado dois excelentes advogados que impetraram ''habeas corpus" pela condição de primário do nosso amigo. Posteriormente, Tanclau soube ter sido o próprio coronel que queria dar um fim ao caso e garantir sua já comprometida nomeação.

Quando deixou a delegacia, um carro o aguardava e foi levado por três acompanhantes misteriosos à presença do tal coronel:

– Seu crioulo filho de uma digníssima dama, para que lugar do Brasil você quer se pirulitar agora para não levar um couro de ficar manco?

– Bem, doutor, desculpe, para o Rio de Janeiro eu topo ir.

– Mas você vai tear calado, seu sacana?

– Claro, doutor, desculpe, coronel, afinal de contas burro é uma coisa que não sou!

– Muito bem, vou te dar uma passagem agora mesmo e você vai embarcar no próximo ônibus.

Ganhou a tal passagem, chorou mais uma graninha pra viagem, juntou seus panos e se mandou (foi escoltado até a rodoviária!).

Usa o nome de Tanclau até hoje, digo hoje porque não o vejo faz algum tempo, ou melhor, na semana passada cruzei com um negão cheio de terno e colete, em altos papos com um sujeito com pinta de barão. O negão era a cara do Tanclau.

Não é por nada, mas decidi conter esse caso e, volta meia, dar uma olhadinha nas colunas sociais. No meio dessa crise, grana difícil do jeito que anda e se levando em conta a versatilidade de Tanclau, nunca se sabe...

 

Nossos malungos têm artes

que não se aprendem na escola

por isso aprendemos bem cedo

pouquinho depois de nascer

a rir da miséria e do medo

e resistir, sobreviver.

 

(Cadernos Negros: os melhores contos, p. 85-92)

 

 

Zumbi...dos

Daqui de onde estou,

Ouço os primeiros ruídos.

Abafados, subterrâneos,

Como os sussurros cuidadosos,

Por meus avós também ouvidos.

Da nova gente que surge,

Com a coragem de herança,

Legadas por Zumbi,

Quase esquecida pela força,

Quase sangrada pelas alegorias,

Quase morta pelos passos na avenida.

Daqui de onde estou,

Sussurro também cauteloso,

Para despertar outros ouvidos,

E destravar outras bocas,

Para sussurrarmos todos um dia,

E fazermos um barulho,

Que será tal,

Que se transformará,

Em fala!

E das falas virão os gritos,

Não de dor, mas de vitória,

Como são vitoriosos os sussurros,

De nossa gente agora,

Pois estão acordados,

Para dizer,

Com a força de Ganga Zumba

E a altivez de X:

Que somos!

Faremos!

Bem alto!

Como as torres de Palmares.

(O arco-íris negro, p.64)

 

 

Meu Sonho Não Faz Silêncio

Meu sonho jamais faz silêncio

E a ninguém caberá calá-lo

Trago-o como herança que me mantém desperto

Como esta cor não traduzida em versos

Pois se fariam necessários muitos e tantos versos

 

Meu sonho vara madrugadas

Som alto

De timbales que se arrebentam em cânticos

E trago-o como Olorum na crença

Que não me pune em pecados

Mas

Enche-me o peito grávido de esperanças

Como malungos marcando ao sol de novembro

Subindo as serras

Defesa e guerra

Meu sonho jamais faz silêncio

É a lança brilhante de Zumbi

A espada de Ogum

É o ê, o rumpi, é o rum

É a fúria sem arreios

Terra farta dos anseios

Desacato, ato, sem freios

 

Vôo livre da águia que não cansa

Me faz erê, me faz criança

 

Meu sonho jamais faz silêncio

É um griot velho que me conta as lendas

De onde fisga tantas lembranças

E com ele invado chats, pages, sites

Na intimidade de corpos em dança

Perpetuando o gosto pelo correto

Meu sonho é pura herança

Rastro

Dos que plantaram, lutaram, construíram

O que não usufruo

Areia que moldada em vaso

Onde não nos cabe culpas

É lúcido ao sol dos trópicos, charqueada ao frio

É como um fio

 

Grita alto e bom som

Que o seio do amanhã nos pertence

Carregamos toda pressa

 

Meu sonho não faz silêncio

E não é apenas promessa

 

Planta em mim mesmo, na alma

Palmares, Palmares, Palmares

Pelo que de belo, pelo que de farto

Muitos Palmares

 

Carrega como o vento escritos

Versos de Jônatas, Oliveira, Colina, Semog e Cuti

Alimenta e nutre

Lembrando que esta cor me mantém desperto

E não tenho sustos

 

Sentinela que tange o eterno quissange

Entende a volúpia do calor que me abriga

Desfaz a mentira, destruindo a intriga

 

Meu sonho jamais faz silêncio

Como um Ilê Aiyê acordando a liberdade

Descobrindo amante ávido o sexo pulsante da existência

Desejo de navegar todos os mares

Comandando todas as fragatas, naves

 

E nos lança em um solo de Miles

Nos recria em um solo de Coltrane

Clássico como Marsalis, Jazz como Marsalis

 

E que nem tentem que faça silêncio

Pois voltaria gritando em um texto de Sohiynka

ás que completa a trinca

Torna-se um canto de Ella, Graça, Guiguio, Lecy

Gente negra, gente negra

Jamelão, mangueira

Brilho da mais brilhante estrela

Nunca se estanca, bravo se retraduz em sina

 

Só não lhe cabem

Crianças arrancadas da escola

Pela fome que rasga gargantas

E nos promete vê-las

Alimentadas todas, cultas

Meu sonho é uma negra criança

Que luta

Ergue Quilombos, aqui, ali

Em cada mente, em cada face

Impávidos como Palmares, impávidos Ilês

Em todos os lugares

Meu sonho não faz silêncio

Porque feito de lida

Teimoso como esta cor

Para sempre será desperto e certo

Mais que vivo, é a própria vida.

(Negras intenções, p. 65-67)

 

Águas do Paraguassu

As águas do velho Paraguassu

São Abebes, espelhos, luzes profundas

Donde emergem perfeitas, belas

Kayalas e Dandalundas

E vão todas elas ao Rumpayme Ayono Runtoloji

No fim da tarde, quando é mais suave a brisa

Para conversar, sem alarde, com Gaiacu Luíza.

Lembram das velhas de línguas trocadas

Capazes de paralisar jovens,

Estendendo-os nas calçadas, gelados ate os ossos

Pelo desrespeito para com seus lábios grossos.

 

As águas do velho Paraguassu

Testemunha de tantas magias

Lavam-se de tantas mágoas, águas de alegrias

Fazem renascer em cada um de nós

Guerreiros, Rainhas, Amantes, Feiticeiros

Mães e Filhos de Santos.

 

São tanto assim de poesia, que nos fazem crer

Cada vez mais nas promessas

Nas lanças, nos cantos das festas

As águas do velho Parágua reconstroem a herança

Perpetuam ensejos, refazem esperanças

Regam Áfricas inteiras permanentes nestas terras

Descartam tênues fronteiras, pretextos e guerras.

As águas porque são águas, fluidos sem tormentas

Dançam entre otás as danças dos ventos

Os ventos aos sopros, todos abraços

Entram pelo ori, chamados pelos toques

Vivos em seus passos de Angola, Ketu, Jeje, Nagô

Inquices de qualquer nação

Voduns, fartos, enchentes

Orixás, vertentes, todos nossos de coração.

 

Águas que me fazem retomar as canoas dos acertos

Atrever-me, opondo-me aos preconceitos

Entendendo Iroko, árvore, ele mesmo sua morada

Branca Gameleira.

E cuidar das ferramentas, dormir nas esteiras

Saber de peixes, ouro, estrelas, aconchego e Ojás

Simples como chão de terra batido

Como simples são os sentidos

Como simples são inquices, Voduns e Orixás.

 

 

Águas, seculares águas sobre nossas cabeças

Bênçãos, Agôs, Mucuius, Colofés

Como nos cobre de bênçãos nossa Mãe

Quando subimos ou descemos ao mundo

Do alto da Levada

Bênçãos em todas as línguas, todas as estradas

Ewe, Fon, Gun, Quimbundo, Ioruba, Mahi,

Quicongo

Umbundo

E nos faz atrevidos...

Sabemos vodunces, iaôs, muzenzas

Em todos os sentidos

Iansã é oya, Dandalunda é Oxum

Xangô é Sobô, Jeje é Nagô

Angola é Ijexá

Somos, pois, um só povo

Para aprender todos os toques em todos os cantos

E queremos ver-nos dançando

Em todos os terreiros, para todos os santos

E vamos além deste sonho menino

Fazer o mais correto pelas Águas que protegem

Das dores, desatinos, e nos preparam, nos regem

Para viver todo Rito, celebrar o planeta e a vida

Cumprindo nossos destinos.

(Cadernos Negros 25, p. 94-96)

 

Maio

Quero ler na noite, cor, irmão

o rosto dos irmãos, braços, peitos

todos lindos, nus, descendo todas

as colinas, transpondo barreiras

se espalhando na semelhante

marca serpente do asfalto.

 

Quero ver colares, gritos, danças

e assumir como vestido agora

o manto brilhante do que vem,

o ato, o desacato, a consciência,

e descobrir depois de tudo a luta pela

felicidade interior de ser negro.

(O arco-iris negro, p.41)

 

 

Entradas e Serviços

(Para Milton Nascimento)

 

Quando eles chegaram

eu estava absorto

no meu tempo

trabalhando ferro,

plantando,

fazendo

minhas próprias guerras.

 

Tinha as portas abertas

pois pouco sabia deles

entraram com suas armas

me tiraram da cama

justo quando descansava.

 

Me puseram correntes

e caminhei

os mares

no ventre fétido

de grandes barcos.

 

Cheguei em terras

que haviam tomado de outros

fiz tudo por aqui

enquanto eles

de braços cruzados,

bebiam meu suor.

 

Seu tédio era tão grande

que ainda lhes dei

chula, samba, mambo

blues, rumba, calipso

jazz

para vê-los, pelo menos

mexer suas carcaças inertes.

 

Hoje vendo esse passado

posso, devo dizer

não.

Estou mais do que farto

de entrar pela porta dos fundos.

(Atabaques, p. 15)

 

 

Quilombos

 

(para Abdias Nascimento e Lélia Gonzales)

 

 

Memórias I

 

queria ver você negro

negro queria te ver

se Palmares ainda vivesse

em Palmares queria viver.

 

O gosto da liberdade

sentido

cravado

no peito

correr,

sentir os campos

ter

a vida

 

Angola Janga

terra

de negros

livres

 

Ali toda vida

Toda raça

Raiva

vontade

África

África (tão subitamente roubada)

Sonhos (tão subitamente assassinados)

Liberdade (tão subitamente trocada pela escravidão)

 

 

Memórias II

 

negro correndo livre

colhendo, plantando por lá

se Palmares ainda vivesse

em Palmares queria ficar.

 

O ódio do feitor

é pegajoso, fecundo

ele pode emprenhar

até as mentes mais estéreis

com seu pênis de chicote.

 

Os feitores esparramam se gozo

nas costas dos malungos

Guinés

Ardras

Congos

Agomés

Minas

Cafres

e o sangue jorrou com tanta força

que em Angola, fui Nagô,

irmão de Haussá

Jeje, Tapa e Senty.

O cheiro nauseante do esperma

da tortura

fez com que ficássemos juntos

usando nosso ódio mais comum.

 

 

Sonhos I

 

o rei de Portugal

mandou ao meu povo matar

se Palmares ainda vivesse

em Palmares queria estar

 

Cumbe na Paraíba,

Alagoas, Macaco e Subupira

Mangueira, São Carlos,

Portela na Avenida

são quantos?

 

ontem morri

em Andalaquituche,

Tabocas,

Amaro,

Acotirene

 

Hoje no Juramento,

Borel,

Turano

Salgueiro

 

morro subindo morro

rolo ladeira cada dia

com decidido ar de

defunto novo

quando desce a noite

vejo em cada fundo de prato

o reflexo da luz da vela

e sonhos para devorar

 

 

Sonhos II

 

te vejo meu povo feliz

Teu sonho querendo sentir

Se Palmares ainda vivesse

Pra Palmares teria que ir

 

Você já pensou

se Domingos Jorge Velho

e sua malta

Não houvessem tido tanta sorte?

 

já pensou naquele país da serra da Barriga?

sei que talvez não,

é difícil imaginar uma terra

onde não fosse possível ver

uma negra ter

que mostrar a bunda

abrir as coxas

tirar das entranhas

o pão de cada dia

onde não fosse possível ver

criancinhas

de dez

oito

seis anos

voltando às quatro da manhã

depois de vender chicletes

e o último resquício de dignidade

nos cruzamentos da cidade.

 

 

Notícias

 

por menos que conte a história

não te esqueço meu povo

se Palmares não vive mais

faremos Palmares de novo

 

Ontem um distinto senhor me disse:

– Filho não pense nessas coisas

(naturalmente mandei-o à merda)

 

 

Insônias

 

Saudades das Tuas noites

fogueiras que eu não vivi

Palmares, Estado Negro...

(vivo pensando em ti)

 

Como não estar

Na podridão do Mangue

nas ratazanas da zona

na multidão de bucetas infectas

como não estar

no barulho da britadeira

Na comida azeda

na marmita fria

como não estar

na fome do meu filho

Já nascido

com jeito de morte

como não estar

no lixo das madames

no cheiro da gordura da pia

nas bostas dos barões boiando na latrina

como não estar

no trem lotado

no barraco caindo

No camburão

na porrada nos dentes

no lodo do fundo de cada cela

 

Como,

se tudo isso sou eu?

 

Quilombos

meus sonhos

sofro de uma insônia eterna

de viver vocês

 

Vivo da certeza

de renascê-los

amanhã,

 

Se um distinto senhor vier me dizer

para não pensar nessas coisa

vou ter de matá-lo

com um certo prazer.

 

Por menos que conte a história

Não te esqueço meu povo

Se Palmares não vive mais

Faremos Palmares de novo.

(Atabaques, p. 19-23)

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