Alguns tímidos denunciaram a tia Balbina como feiticeira, e Motta Coqueiro, depois de descobrir em poder da preta os instrumentos próprios de tal arte, para prevenir os envenenamentos possíveis, fez castigar severamente a escrava.
O castigo germinou no coração de Balbina um ódio encanecido, e ela desde então só fitava o senhor de través.
Acesa a vela, a feiticeira insistiu na pergunta:
-O que é que você quer com a tia Balbina, quando o galo não tarda a cantar?
Carolina começou a falar:
- Vosmecê sabe que eu estou pejada, mas não sabe de quem é.
Balbina, abaixando a gola da camisa, deixou ver o seu colo carnudo, onde se desenhava grosseiramente um olho aberto:
- Balbina sabe tudo, exclamou a feiticeira; casa não tem parede, gente não tem segredo, bicho não tem maldade para Balbina. Filho de você é de Manuel João; mas o pai não se importa mais com a mãe de seu filho.
O espanto avassalou a crioula, qe se debulhou em lágrimas.
- Não chora, não, criança; mundo é assim mesmo. Balbina criou o filho dos brancos, Balbina foi boa para o menino. Quando o filho do dono no meio dos escravos dos brancos. Língua má corta com Balbina, brancos dão ouvidos: Balbina é surrada, como negro ladrão, Balbina sofre calada, porque maior é Deus. Tem amizade ao filho dos brancos, que não é filho de Balbina. Podia soprar a casa grande; mandar a cobra-coral tirar nos brancos o sangue que correu das costas de Balbina, mas não quer; sofre calada.
- Mas eu não quero sofrer assim, tia Balbina; não quero dar meu peito ao filho de Manuel João, basta que eu veja ele casado com aquela faísca.
- Bico! Disse a feiticeira, levantando um dedo aos lábios. Você está dizendo pecado. Escuta primeiro a voz do chocalho de Balbina.
A feiticeira abriu de novo a janela e espreitou para fora, depois tornou a fechá-la cautelosamente. Tirou de um gancho de pau do candeeiro e do braço de Carolina e dirigiu-se para a repartição interior da senzala.
Colocou o candeeiro numa espécie de prateleira pregada à ombreira da porta do interior, e ordenou a Carolina que se conservasse de costas para ela.
Voltou então ao lugar cm que estiveram e abriu uma caixa de onde tirou uma trouxa coberta com uma baeta vermelha, e tornou para junto da crioula.
Desdobrou então sobre o chão a baeta, e espalhou sobre ela umas figas negras, uns rolos de enxofre, uns maços de cabelos lanosos, um pequeno boneco disforme de feições gateadas e foscas, e uns ossos amarelados.
De dentro da cesta tirou um embrulho de arruda seca e um chocaIho feito do esferoide de um cuité, tendo por cabo uma haste de taquara.
Depois de ter queimado um galho de arruda, e vendado com um lenço os olhos de Carolina, a preta acocorou-se e pôs-se a tanger o chocalho perto da orelha, dizendo:
- O chocalho fala que Carolina há de dar três patacas para ele e uma vela para Nossa Senhora das Dores, outra para S.Benedito e outra para S.Miguel.
- Faço, sim senhora, tia Balbina.
A feiticeira tangeu de novo o chocalho.
- O chocalho está dizendo que o filho de Carolina tem de sofrer cativeiro do mau senhor. Brancos podem surrar, podem vender o filho da sua escrava, e a escrava há de chorar e tomar ojeriza dos brancos. Antes o filho não nasça, se há de passar tantos trabalhos; antes vá para os anjos no tabuleiro com rosas e girassóis. A cobra zangada ou morde a quem a zanga, ou morde o seu corpo dela. A mãe que tem de ficar sem o filho, que é seu sangue, como a cobra zangada.
- Sim, sim, tia Balbina.
- Escuta ainda, criança, continuou a africana, tangendo sempre o chocalho; -a coral briga com o lagarto; a cobra faz rodilha e sacode a língua de fogo; o lagarto para, estica a cabeça chata e espera. A cobra dá o bote, o lagarto faz roda e chicoteia, e quando é mordido sabe no mato a erva contra a dentada, que mata. Zumbi, que está lá em cima, foi quem Ihe ensinou o remédio. Carolina foi mordida no coração, Zumbi lhe ensina o remédio.
De manhã, em jejum, o caldo do limão corta, a cinza do borralho come.
- Sim, sim, tia Balbina.
- Mas é pelo mau senhor, que morre o filho de Carolina, que devia ser
bonito como seu pai, com seus cabelos cacheados e pele de capixaba.
(Motta Coqueiro ou a pena de morte, p.68-69)