Parei diante da vitrine e olhei para mim.
Aquele era eu?
Não, não foi surpresa. Conhecia meu rosto. Conhecia aquelas fei- ções. Aquele corpo não me era inteiramente desconhecido. No entanto, algo dentro de mim provocou um leve mal-estar.
Mal-estar?
Não, talvez mal-estar não fosse a palavra mais adequada. A bem da verdade, me faltava a palavra adequada para explicar o que senti naquele instante.
Estava me vendo e me vendo fiquei, criança descobrindo-se a si mesma na primeira vez diante do espelho, aventureiro em terra estranha e escuridão bem profunda, tateando no nada atrás dos cabelos, dos olhos do nariz, de traços fisionômicos conhecidos. Senti como se estivesse me descobrindo diante da vitrine.
Eu era negro.
Um susto?
Pra que ir tão longe, não é mesmo?
Não, não era isso. Me pareceu estranha a constatação e a leve mas perceptível surpresa diante dela.
Nunca, que me lembre, precisei me preocupar com isso. Mesmo no Colégio ninguém jamais tocara no assunto, nem mesmo em casa A gente não falava sobre isso nem quando tio Luís Carlos aparecia com a sua indefectível boina jamaicana. Algo assim como um acordo não escrito entre ele e meus pais. Até minha mãe costumava fugir do assunto, Todos fogem. A pele acentuadamente mais clara do que a dos meus primos e primas ajuda um pouco mais. Agora, aqui, a sós com a implacabilidade da vitrine, recordo-me apenas de uma ou outra ocasião em que alguém notou minha cor. Chamaram-me moreninho. Foi num dos voos de meu pai e deu para notar o constrangimento geral.
A sós com a vitrine, fico pensando. Lembrar é por demais fácil, algo totalmente involuntário. As lembranças simplesmente aparecem. A mãe vivia dizendo que o sapato dele devia brilhar mais do que o dos outros alunos do Colégio e ele fazia questão disso. Os primeiros dias no Colégio, solitários dias sentado ou escondendo-se pelos cantos, espreitado pelos olhos de todos, perseguido pela surpresa desses olhos. O professor de inglês implicando sempre com o seu jeito de falar, apesar de seus esforços e do dez quase rotineiro das provas. A menina na quarta série que recusou a flor que levara para ela e nunca mais sentou-se ao seu lado na sala. Lembrou-se vagamente daquela carteira vazia durante semanas e de como o professor de geografia - com era mesmo o nome dele? colocou uma japonesinha, aliás a única da sala, sentada ao seu lado. Nunca teve um professor sequer moreninho no Colégio. Sempre fora mais às festas da escola ou dos amigos do que àquelas que a família organizava. Nunca teve namoradas no Colégio. Até quisera, mas todas aquelas que amara só quiseram como amigo, um grande amigo. Conhecia apenas alguns dos irmãos de sua mãe. Os avós maternos morreram sem conhecê-lo. Desconhecia os primos do outro lado da família. Recordou-se do olhar desconfiado de um vigilante no banco. Havia um segurança no supermercado que viva em seus calcanhares, espreitando-o, quando ia sozinho fazer compras. "Ele está com a senhora?", perguntara a balconista de uma loja no shopping quando ele e a mãe entraram para comprar um vestido que ela usaria na sua festa de aniversário - quantos anos fazia? Não se lembrava mais. Fora há tanto tempo. Quando sumiu uma calculadora na turma da sexta série, muitos alunos ficaram olhando, olhando para ele. Os medos que cresciam dentro dele sempre andavam pelas ruas ou por onde quer que fossem ele, seu pai e sua mãe. A maneira como olhavam para sua mãe. Aqueles olhares, aquele silêncio cordial por trás daqueles olhares. O medo daquele enorme homem negro que se debruçou sobre a janela do carro de seu pai e estendeu uma das mãos para pedir alguma coisa. O medo da mãe fechando os vidros do carro sempre que paravam num sinal de trânsito e aqueles meninos negros apareciam querendo vender tudo e qualquer coisa. A menina negra que a mãe trouxe do Maranhão para trabalhar em sua casa e que comia sozinha na cozinha depois de todo mundo.
(...)
Pareço ter vivido duas vidas todo esse tempo. Uma, bem visível, presa fácil de todo um confortável itinerário de felicidades palpáveis e sucesso irresistível, e uma outra, inteiramente subterrânea, acumuladora de tristes recordações esquecidas, imagens dolorosas imediatamente abandonadas, de coisas bem ruins mas inteiramente invisíveis. Vejo em mim duas pessoas. Aquelas recordações não me pertencem. Fazem parte de outra existência. Dividido, vejo uma daquelas pessoas sorrindo para mim. Ela é a minha cara ou em tudo se parece com a cara que eu sempre desejara para mim. A outra, no entanto, prefiro desconhecer. Vejo nela a face obscura de medos muito, muito grandes. Assombrosos.
Que sou?
Pra onde vou?
O que devo fazer?
O que devo ser?
(Na cor da pele, p. 49-54)