EXCERTOS

 

Este livro já estava escrito. Caso seu autor tivesse sobrevivido à peste, à loucura, à razão, ao preconceito, ao eu, ao país, com certeza lhe teria dado uma outra organização, um outro cosmo, um caos exato. Nem sei se ele continua vivo, o autor. Se continua, não terá condições de opinar. E dará ferozes risadas diante do xadrez deste movimento: um autor que não é responsável pelas próprias ideias que escreve; um romancista que não assume a paternidade dos personagens que cria; um poeta inédito que manipula vozes; um homem sem identidade e sem rosto para encarar o espelho do real; um sonho recebido no meio de uma festa. Mesmo vivo, ele não existe; não tem

como provar quem é, quem foi ou quem deveria ser.

Mas o livro vive, e é isto: um voo em pane, um salto em falso, um ego em negro.

(...)

Não são textos psicografados. Não são mensagens trazidas de um plano superior por um mensageiro sábio e consciente. São canções de derrota e vitória, cantos de trabalho, pontos, partidos altos, sambas-enredos, choros, blues. Alegorias. São restos do naufrágio de um homem, que vieram dar nesta praia onde você começa a caminhar, a partir de agora.

 (O primeiro dia do ano da peste, p. 11-12)

 

 

(...)No princípio era a escravidão. Até que Oxalá falou e disse: “Nada de se martirizar. O negro está encurralado na autenticidade: insultado, avassalado, ele se reergue, apanha a palavra negro que lhe atiram como uma pedra e dela faz sua morada, a morada do seu ser. Ele se reivindica negro diante do mundo. Não é a fundação de um mundo: é um reencontro com seu próprio mundo.” Esse reencontro é uma descida aos infernos, disse o deus. Chega de levar a pedra até o alto do monte e ver ela rolar até a base, chega de empurrar a pedra até o pico do monte e ver ela rolar até a savana, chega de sangrar, de se esfalfar e sofrer a pedra até o topo do mundo e ver ela se lançar rodante até a planície, chega de ser pedra e ainda assim tentar ser feliz. O ritual é outro: é descer até o infernos e trazer a própria alma lazarenta brilhando como uma luz negra. É preciso vomitar a sujeição branca. É preciso dizer palavras sem sombras. É preciso dizer o mundo com uma nova lucidez: uma clareza negra.

(...)

Pedra. A pedra é mundo, mas o negro não poderia ser pedra. Pedra é o homem branco. O negro é ritmo. Um imenso ritmo que ondeia e mareia e flui da raiz até o fruto maduro, o vento nas ramas das estrelas. O rio de um ritmo. O riso de um ritmo.

O negro flui: não reflete. O negro não reflete: dia-a-dialetiza. O negro não é uma falha:é um ser e deve-se, constante devir. Flui. E foge do sofrimento, dos pelourinhos, dos martírios, dos messianismos do ente doente. Que doa! Alheio às engenharias dos suplícios e ao tráfico dos abolicionismos utópicos, o negro canta. Eis o ladrão do fogo das palavras.

 (O primeiro dia do ano da peste, p. 21-22)

 

 

Com Pierre e Janime, Quirino També entende a mensagem secreta que tinha lhe escapado durante toda a sua viagem: ser negro é uma missão impossível. Mais ainda: ser humano é uma impossibilidade. O homem é queda e perda. E não há retorno ao país natal.

Ele tinha procurado ver o lado oculto de si mesmo. Tinha viajado. “O bom de uma viagem é que, aonde quer que você vá, acaba sempre chegando a si mesmo. Só que bem outro.”

 (O primeiro dia do ano da peste, p. 39)

 

— O que vai beber, irmão?

— Não sou teu irmão.

— Modo de falar. Vai o quê?

— Uma cerveja.

Não gosto de crioulo atrás de balcão. Não gosto de crioulo. Escravo não tem direito de chamar ninguém de irmão.

— Bem gelada, escravo.

— Você também é escravo.

— Não gosto de crioulo escravo.

— Então não olha no espelho.

Eles têm a resposta na ponta da língua. E como é rápido o bote da língua dos escravos. Mas é só uma língua.

— Lava esse copo direito e fecha essa matraca.

— Você tem pinta de patrão, mas a cor não ajuda.

— Pedi uma cerveja, não pedi papo.

 (O primeiro dia do ano da peste, p. 41-42)

 

AC adorava Machado de Assis. Tinha uma teoria: Memórias póstumas de Brás Cubas era um livro mediúnico, um reencontro definitivo de Machado de Assis com sua alma negra. Um morto que escreve sobre sua vida só pode fazer através de um médium, não importam os argumentos em contrário. AC contava a história de um Machado secreto, frequentando terreiros sem o conhecimento de Carolina e dos amigos intelectuais. As crises de epilepsia do “Bruxo do Cosme Velho” eram a prova definitiva da teoria de AC: cada vez que Machado, em nome da cultura branca, se afastava dos terreiros, sofria uma crise; era o chamado dos santos.

 (O primeiro dia do ano da peste, p. 163-164)

 

 

 

Mas a melhor performance de AC girava em torno do filósofo demente Quincas Borba e do Humanitas.

(...)

Segundo AC, o Humanitas desaguava no Canibalitas. Como a vida é o maior benefício do universo, a vida deve se alimentar da vida; é a hora suprema da missa carnal. Só havia  verdadeiramente uma desgraça: não comer. Duas tribos famintas lutam pelo campo de batatas. As batatas chegam apenas para alimentar uma das tribos. Se as duas tribos dividirem em paz as batatas, vão morrer de fome. As duas tribos lutam entre si e, na luta, descobrem que o melhor é devorar os vencidos com um acompanhamento de batatas. Ao vencedor, o vencido-com batatas!

(...)

O Canibalitas teria seu contrário, "perfeito e provisório", no Quilombitas. O Quilombitas é o Canibalitas com consciência, de alma em paz e barriga cheia. O Quilombitas é justo e humanitário. Seu ideal de sociedade é igualitário e cooperativo, sempre sonhando com um ser humano que não fosse vítima da fome ou do apetite de outro ser humano. O Quilombitas quer uma sociedade criativa, sem a religião da gula e sem o capitalismo da necessidade. O Quilombitas é antirracista, anticapitalista, anticanibalitas. O Quilombitas é o defensor perpétuo da existência humana digna e saciada.

O chato é que o Quilombitas é a utopia do Canibalitas de barriga cheia.

 (O primeiro dia do ano da peste, p. 167)