O avesso da pele
(excertos)

Jeferson Tenório

 

A PELE

 

1.

Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade, você nunca soube ir embora. Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. No entanto, você entrou e saiu da vida, e ela continuou áspera. Há nos objetos memórias de você, mas parece que tudo que restou deles me agride ou me conforta, porque são sobras de afeto. Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre você. É com eles que te invento e te recupero. É com eles que tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar. Talvez eu deseje chegar a algum tipo de verdade. Não como um ponto de chegada. Mas como um percurso que vasculhe os ambientes e dê início a um quebra-cabeça, um quebra-cabeça que começa atrás da porta da sala, onde encontro um alguidar de argila alaranjada. E, dentro dele, uma pedra, um ocutá, enrolada em guias de cores vermelhas, verdes e brancas, um orixá, Observo-a com cuidado. É assim que se adentra numa vida que já se foi. Tiro o ocutá do alguidar. Lembro o dia em que você me disse que sua cabeça era de Ogum, e que isso era ter sorte, porque Ogum era o único orixá que sabia lidar com os abismos. Lembro que foi de sua boca que escutei pela primeira vez a palavra “abismo”. Há palavras que guardamos na infância porque nos confortam. Lembro agora do que minha tia Luara havia me dito para fazer quando encontrasse o seu Ogum, Enrole-o num pano, segure-o entre as mãos e leve-o para o rio, ela me disse. No entanto, antes de sair, vou ao seu quarto, observo da porta: há roupas espalhadas, outras jogadas dentro do armário. Sobre a mesa, há canetas sem tinta, meias sem par misturadas a notas de supermercado. Há cadernos e papéis. Há pastas com provas e redações dos seus alunos. Teu caos me comove. Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que você era antes de partir. Os mesmos utensílios que te derrotaram e que agora me contam sobre você. Os objetos serão o teu fantasma a me visitar.

(In: O avesso da pele, p. 13/14)

 

****

O AVESSO

 

4.

Certa vez, quando eu tinha nove anos, você me perguntou quem era Deus. Lembro que estávamos caminhando pela rua, procurando uma sombra para descansar. Estava quente, um calor que não era insuportável mas que nos incomodava. Então, quando encontramos um banco embaixo de uma árvore, você olhou para algumas pombas que ciscavam por ali, naquela praça malcuidada, e me perguntou: Pedro, você sabe quem é Deus? E eu não fazia a mínima ideia do que tinha te feito perguntar uma coisa daquelas para um menino de nove anos. Lembro que recém havia terminado de ler um livro sobre vampiros, lendas e histórias de terror. Então, quando você me perguntou quem era Deus, pensei em dizer: não sei. Acontece que você detestava que eu dissesse não sei, você dizia: filho, nunca podemos saber de tudo, mas, olhe, não responda não sei. Diga então que precisa pensar, que precisa de tempo. No entanto, naquele dia, eu não queria pensar. Estava quente e eu só tinha nove anos. Mas eu lembrei do meu livro sobre lendas de terror e respondi que achava que Deus era um fantasma que morava no céu. E, quando eu disse isso, você me olhou com certo espanto, e vi seu rosto se iluminar com alegria. Como se eu tivesse dito a coisa mais importante do mundo. Talvez hoje eu compreenda por que você ficou comovido com aquela resposta. Conforme fui crescendo, suas perguntas foram ficando mais complexas. E confesso que às vezes eu não queria ser profundo. Eu queria apenas brincar e ser como os outros filhos eram com seus país. No entanto, agora eu sei que você estava me preparando. Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos. Lembro que você fazia um grande esforço para ser entendido por mim. Eu era pequeno e talvez não tenha compreendido bem o que você queria dizer, mas, a julgar pela água nos seus olhos, me pareceu importante.

(In: O avesso da pele, p. 60-61)

 

****

9.

 

[...]

Reinaldo tomou a palavra. Olha, Henrique, nós sempre pensamos no lado negativo quando estamos em crise. Ficamos agressivos, até. E isso é normal. Mas veja, ele disse descruzando as pernas, a crise é o melhor momento das nossas vidas, porque é quando nos reavaliamos, quando fazemos uma autocrítica. E, o melhor disso é que, quando a crise passa, tudo fica melhor. São as crises que nos levam adiante. Portanto, gostaria de propor um exercício a vocês: quero que pensem no momento em que vocês se conheceram. Pensem naquilo que os fez se apaixonarem um pelo outro. Pensem um pouco e digam. Verbalizem. Esse é o momento de resgatar o que vocês perderam. Você achou aquilo tão ridículo que não via nenhuma possibilidade de dizer algo. Quer dizer que vocês querem que eu passe por cima de tudo que aconteceu e fique aqui relembrando a porra de um passado, você pensou. Mas você não disse nada, apenas ficou remoendo as coisas dentro de si. Por breves instantes o silêncio dominou novamente a sala. Enquanto isso, você observava os terapeutas. E pensou que eles não sabiam nada de vocês. Não conheciam o tumulto vital de vocês. Eles eram brancos. Vieram de uma classe média. E tinham urna visão limitada do mundo. Não perceberam o que estava acontecendo ali. Eles não faziam a mínima ideia de que a metade dos seus problemas estava contida na cor da pele, você pensou. Não diretamente, mas lá no fundo. Você sabia que tudo isso era mais complexo do que eles imaginavam. A psicanálise tinha cor e ela era branca, você pensou. E definitivamente havia coisas que escapavam a Freud. Você só queria ser honesto consigo, porque nunca sabemos se somos suficientemente bons ou quando somos incapazes de fazer algo, não pela nossa cor, mas porque simplesmente não conseguimos fazer, você pensava. E ninguém nunca te diz que você pode fracassar. Que está tudo bem se você cometer um erro. O mundo seguirá. Fique tranquilo. Nada de mais vai acontecer. Quando urna pessoa branca nos elogia, nunca saberemos se aquilo é sincero, ou apenas uma espécie de piedade, ou para não se sentir culpada, ou mesmo para não ser acusada de racismo. Não sabemos avaliar nosso fracasso. Porque é tentador atribuir todas as nossas fraquezas e nossas falhas ao racismo. E, para não cair nessa armadilha, você precisa tirar forças sabe-se lá de onde e construir dentro de si uma espécie de balança ética, e não sei explicar bem como uma porra dessas funciona, entende? Porque você passa a vida escutando que, apesar de tudo, você tem de aguentar. Você passa uma boa parte da vida apanhando e ainda te dizem que você não pode fazer certas coisas. Que você não é capaz. E para sobreviver, porque é assim que você vê a vida: um tumulto vital com o qual você tem de lidar apesar da cor da sua pele. Você não só mostra que é capaz, como também precisa mostrar que é sempre melhor. E quando você falha, quando você cai, você precisa abrir mão da autopiedade, mesmo que seja a sua única bengala, mesmo que haja um mundo nefasto ao seu redor, é preciso ser honesto com seus afetos. Mas isso dói. E às vezes não se quer ter essa coragem. E ainda assim, por mais que você seja sincero consigo, por mais que você derrube as ilusões, sobrará sempre aquela dúvida sobre suas reais capacidades. E essa é a perversidade do racismo. Porque ele simplesmente te impede de visitar os próprios infernos. Sim, Freud nos escapa, você pensava.

(In: O avesso da pele, p. 84-86)

 

 

 

 

 

Texto para download