Prefácio a 15 poemas negros1

Florestan Fernandes*

 

Ignoro as razões que levaram Oswaldo de Ca­margo a dar-me o privilégio de prefaciar a presente coletânea de poemas. Não sou crítico literário. Tam­pouco tenho competência ou sensibilidade para apre­ciar judiciosamente sua produção poética. Considero a crítica literária uma especialidade complexa e difí­cil, que exclui a improvisação e requer não só talento e bom gosto, mas sensibilidade, erudição e imaginação criadora. Sendo evidente que não reúno essas condi­ções (pelo menos em relação à capacidade de ser crí­tico literário...), entendi que o convite se endereçava ao sociólogo, algum tanto conhecedor da situação do negro na sociedade brasileira. Às vezes, uma condi­ção exterior à obra de arte pode ser significativa pa­ra a sua compreensão e interpretação. Talvez o autor procurasse, portanto, alguém que pudesse "explicar a sua poesia à luz de sua condição humana das in­fluências e motivações psicossociais que ficam por trás da sua maneira de ver e de representar, poetica­mente, emoções, sentimentos, aspirações e frustrações que poderiam ser entendidas como parte da ex­periência de vida do negro brasileiro.

Todavia, ao ler e reler Um homem tenta ser anjo (1959) e as poesias colecionadas nesta obra, chego à conclusão de que Oswaldo de Camargo é, essencial­mente, um poeta. O fato de ser negro tem tanta im­portância quanto outras circunstâncias (como a de ser brasileiro, católico marcado por experiências mís­ticas singulares etc.). O que conta, em sua obra, é a poesia. Embora ela exprima, em várias direções, a con­dição humana do seu criador, sobre ela e não sobre outras coisas deveria falar o seu intérprete. Ora, fale­ce-me autoridade para isso. Um poeta jovem, que vem de uma estreia recente, pretende algo mais que uma “apresentação” convencional: espera que o apre­sentador diga aos outros o que ele próprio sabe acer­ca de seus versos, de suas intenções e do sentido de sua poesia. Nada que me sentisse capaz de fazer, pelo menos com justiça, propriedade e o devido respeito pelo autor, pelo público e por mim mesmo...

Abriam-se diante de mim dois caminhos. Um, o de lamentar as limitações da nossa celebrada “forma­ção humanística”. Bem mal vai um país no qual um professor universitário treme diante das responsabili­dades do juízo estético. Não é só o padrão de educa­ção que entra em jogo. É todo um sistema de vida in­telectual que sofre um impacto negativo. Penso, em particular, na negligência dos críticos especializados, que só existem para os produtores de arte de prestígio consagrado, subestimando ou negligenciando a ener­gia moça pela qual se processam a afirmação e a re­novação das grandes ou das pequenas literaturas. O segundo caminho seria o de avançar os resultados de minhas modestas reflexões. Os que não podem con­centrar-se na própria medida do raciocínio poético já dão algo de si indicando o que percebem, o que sentem e pensam. Por consideração especial pelo au­tor, não me neguei a isso. Acho sinceramente, porém, que ninguém lucrará nada com ideias tão minguadas de verdadeiro teor crítico.

Em uma civilização letrada, o poeta representa um dos produtos mais complicados do condicionamento educacional, intelectual e moral. É um con­trassenso pensar-se que o negro brasileiro encontre na poesia (como em outros campos da arte) veículos fáceis de autorrealização. Há toda uma aprendizagem técnica, difícil de conseguir-se e de completar­-se. Vencido esse obstáculo, erguem-se as verdadei­ras barreiras humanas, que estão dentro e fora do próprio negro. De um lado, temos as contingências de um meio intelectual ainda mal polido e parca­mente aberto às aventuras da inteligência criadora. Ele se fecha com facilidade, movido por molas que as convenções escondem ou disfarçam, especialmente diante das ocorrências que fogem às normas e à roti­na. O produtor de arte negro é, em si mesmo (isto é, independentemente da qualidade e da significação de sua poesia ou seja lá o que for), uma aberração de todas as normas e uma transgressão à rotina, num mundo organizado por e para os brancos. De outro lado, acham-se as fronteiras que nascem da situação humana do negro na sociedade brasileira. Pode-se imaginar que existem várias gradações na linguagem poética e que a poesia não seja incompatível com ne­nhuma situação humana, reconhecível objetivamen­te. Embora isso pareça incontestável, só a força de um gênio permite superar as limitações sufocantes das barreiras que anulam o próprio sentido da dignidade do eu, aniquilando pela raiz as impulsões criadoras da inteligência humana. Em consequência, os "poe­tas negros" do Brasil caem, grosso modo, em duas categorias extremas. Ou são réplicas empobrecidas do "poetastro branco", ou são exceções que confir­mam a regra, ou seja, episódios raros na história de uma literatura de brancos e para brancos, o que se po­deria exemplificar, em relação à poesia, com uma fi­gura tão conhecida corno a de um Cruz e Sousa. Não existe uma vitória autêntica sobre o meio. A "inteli­gência negra" é tragada e destruída, inapelavelmen­te, antes de revelar toda a sua seiva, como se não im­portasse para o destino intelectual da nação.

A produção poética de OswaIdo de Camargo sus­cita, em termos dessas ponderações, novos ensina­mentos. Ela foge ao primeiro extremo e evita, apesar das qualidades visíveis do poeta, o segundo, demons­trando que o negro intelectual, liberto dos precon­ceitos destrutivos do passado, tende a identificar sua condição humana, e extrair dela uma força criadora quase brutal e desconhecida, bem como a superar-se pela consciência da dor, da vergonha e da afronta moral. Em outras palavras, começa a delinear-se uma poesia negra e dela constitui uma floração rica e exem­plar a presente coletânea. Mais que sobre qualquer outra coisa, é sobre essa poesia que gostaria de medi­tar, servindo-me da oportunidade que os versos de Osvaldo de Camargo me oferecem.

Na medida em que expressa a condição humana do negro no Brasil, essa poesia afirma-se como uma poesia de ressentimento e de profunda humilhação moral. Não evidencia apenas desalento e mortifica­ção: a depreciação social da cor atinge o equilíbrio da pessoa, convertendo o poeta na voz do drama psico­lógico de uma coletividade. Já no livro anterior (Um homem tenta ser anjo), sente-se o tom acre e soturno do protesto negro:

Meu Deus! meu Deus! com que pareço!?
Vós me destes uma vida, Vós me destes
e a não consigo levar...
Vós me destes uma alma, Vós me destes
e eu nem sei onde está...
Vós me destes um rosto de homem,
mas a treva caiu
sobre ele, Deus meu, vede que triste,
todo preto ele está 2


Mas é nos poemas desta coleção que o referido protesto atinge seu clímax, desvendando toda a amargura triste e revoltada de brasileiros que se envergonham de ser gente:

Recolho o pensamento e me debruço
nesta contemplação, assim me largo...
E, preso ao ser que sou, soluço e babo
na terra preta de meu corpo amargo...

(Excerto de "Canção amarga")

 

Deslembrado de mim, me recordei:
folha no chão, estrume, antigo som
de fonte e sobre a preta face
essa tristeza que sempre haverei...

(Excerto de "Relembrança")

 

Quem vos disse, senhores, que pareço
em desespero com qualquer rapaz?
Se me amargo a contemplar-me, sou
a luta entre o ser nada e o ser demais...

(Excerto de "Pergunta")

 

Profundamente em mim uma lâmina se enterra...
Se enterra e não vale recuo, nem o meu grito breve
às horas rubras desta tarde de hoje...
[...]
Já não sei que fazer para alegrar minh'alma!
E é preciso sofrer para salvar meu sonho!

(Excerto de “Profundamente”)

 

Não sei meu rumo nesta rude terra,
nem sei a que destino me consagro...

(Excerto de "4 sequências, III")

 

Pelo amor das lindas horas
em que sonhais só co' o amor,
parai um pouco, senhoras,
somos os homens de cor,
que vêm tecendo coroas
de tristezas pela estrada...
Voltamos de muitas noites,
há noite dentro de nós,
pelo amor dos que vos amam,
escutai a nossa voz!
[...]
Encontramos a esperança
toda em pranto debulhada...
E nos perdemos na noite,
não achamos a alvorada;
queremos subir na vida,
não encontramos a escada...
E estamos diante de vós,
pranteando o não sermos nada...

(Excerto de "A modo de súplica")

 

Eu conheço um grito de angústia,
e eu posso escrever este grito de angústia,
e eu posso berrar este grito de angústia;
quer ouvir?
"Sou um negro, Senhor, sou um... negro!"

(Excerto de "Grito de angústia")

Tentei multiplicar os exemplos de propósito. Sob várias facetas, eles nos mostram o negro torturado por avaliações que decorrem da aceitação de uma imagem do próprio negro construída pelo branco. As contradições, as ansiedades e as frustrações, expres­sas com tamanha autenticidade poética por Oswaldo de Camargo, emergem da mesma matriz. Avaliando­-se através de critérios de julgamento e de expectati­vas morais recebidas do branco, o drama de ser negro corresponde, literalmente, à impossibilidade de afir­mar-se em um mundo moldado pelos brancos e para os brancos. Desde a infância, o negro é modelado para viver nesse mundo, como se não houvesse diferenças entre negros e brancos; mas as portas fecham-se diante dele, quando tenta atravessar os tortuosos corredores que conduzem a tal fim. Existe, pois. um "brancor" no negro, o qual só pode ser reconhecido e é válido como estado subjetivo do espírito:

Rosa, rosa, o meu brancor existe,
mas inexiste e meu corpo chora;
rosa, meu pensamento existe,
mas existe e meu corpo sofre...
Percebo o brancor que em mim existe
irrevelado e isso me faz triste...
Quero ser ave!
O azul sei que existe...
Ah, minha alma, chora! 
3


Daí resultam contradições morais. A brancura e a infância surgem como obcecações que traduzem
valores supremos:

Eu vi de branco a menina e esse sonho
jamais me escapou...
E meus dedos sem visgo em vão tentaram
sustar do sonho névoa e brevidade...
E não sei que eco de orfandade
lembrou-me então a mim que eu estava só,
só como o sonho que era único:
branca menina de sandálias brancas...
Como tudo era branco, branco, branco!
E quando me revi estava só...
E minha vida estava branca, branca, branca, 
como meu primeiro caderno de escola...

(Excerto de "Um homem tenta ser anjo")


Ah!
que medi muito mal a distância da vida,
e julgara comigo: "hei de ir muito longe",
mas tombou sobre mim uma idade imprecisa
e eu invejo agora o menino que fui.

Eu invejo agora o menino que fui,
leve, andando nas pedras de tantas montanhas;
e, porque me tornei tristemente um homem,
para breve serei uma sombra, só sombra.

Muitos restos de mim larguei já pelas ruas;
infelizmente me gastando vou...
numa esquina qualquer muitas mortes me esperam,
e eu espero também qualquer morte que venha... 

(Excerto de "Ronda")

Ambas, a brancura e a infância, constituem po­larizações centrais em sua poesia. Uma, como expres­são do mundo vedado objetivamente ao negro, embora acessível pela participação subjetiva. Outra, como fase da vida em que as proibições são menos drásticas ou passam despercebidas.

O drama psicológico e moral do negro, sentido e descrito nesse plano, em que o ego aprofunda as con­tradições e as hipocrisias da "democracia racial brasi­leira", não consubstancia um estado de marginalida­de nem uma atitude de rebelião. Eventualmente, o "brancor" chega a ser desmascarado:

                    Tenho em meus gestos um rebanho inteiro
                         de atitudes brancas, sem sentido,
                     que não sabem falar...
                 
                   (Excerto de "A manhã")

Contudo, o jogo dos contrastes evoca a manhã e a noite em termos da oposição entre o branco e o ne­gro. Não há o desafio moral da escolha nem o apego ambivalente à herança cultural do negro ou do bran­co; trata-se do universo mental que o negro se cons­truiu, no qual ele deveria ser uma coisa, mas é outra:

Eu penso que a manhã não interpreta bem
a superfície escura desta pele,
que pássaro nela vai pousar?

Ai da tristeza de meu corpo, aí,
o pássaro conhece a manhã,
e sabe que é branca a manhã,
mas não ousa enterrar-se de novo
na noite...
[...]
Eu, no entanto, permaneço ao lado
da manhã e das cantigas...
A noite, a grande noite está pousada em mim
escandalosamente!

(Excerto de "A manhã")

O que subsiste, pois, é o desalento ressentido, que transparece melhor onde se afirma uma ligação espiritual com os ancestrais africanos e escravos:

Meu grito é o estertor de um rio convulso...
Do Nilo, ah, do Nilo é o meu grito...
[...]
Meu grito é um espasmo que me esmaga,
há um punhal vibrando em mim, rasgando
meu pobre coração que hesita
entre erguer ou calar a voz aflita:
ó África! Ó África!
Meu grito é sem cor, é um grito seco,
é verdadeiro e triste...
[...]
Por que é que grito?

(Excertos de "Meu grito")


Em suma, o negro não repudia nada — nem a ex­
periência ancestral, nem o universo criado pelo bran­co, nem a condição humana que nele encontra. A sua revolta nasce de uma injustiça profunda e sem remédio, que só ele sente por ser posto à margem da vida e da justiça humanas, vítima de um estado ex­tremo de negação do homem pelo homem. Em nome de um código ético rude e egoísta, o branco ignora as torturas, os conflitos e as contradições que cimentam sua concepção "cristã", "cordial" e "democrática" do mundo, condenando à danação todos os negros que aceitem com integridade e ascetismo essa mesma concepção do mundo, com suas opções e valores morais.

Ainda é cedo para emitir juízos definitivos sobre essa poesia negra, associada à liberação social progressiva do branco e do negro na sociedade urbana e industrial brasileira de nossos dias. Dois pontos, todavia, poderiam ser aprofundados. Primeiro, na sua forma atual, fixando o drama moral do negro de um ângulo meramente subjetivo, ela não transcende nem mesmo radicaliza o grau de "consciência da situação" inerente às manifestações iletradas do protesto negro. É certo que ela expõe as coisas de maneira mais grandiosa, chocante e pungente. Diante dela, até os relutantes ou os indiferentes terão de abrir os olhos e o coração: há torpezas sem nome por detrás dos iníquos padrões de convivência que regulam a integração do negro à ordem social vigente. No entanto, essa mesma poesia se mostra incapaz de sublimar atitudes, compulsões e aspirações inconformistas, que a poderiam converter numa rebelião ativa, voltada para o processo de redenção social do negro. Segundo, ela se divorcia, de modo singular, dos mores das populações negras brasileiras. Por enquanto, a poesia que serve de veículo ao protesto negro não se vincula, nem formal nem materialmente, ao mundo de valores ou ao clima poético das culturas negras do Brasil.

As duas constatações possuem amplo interesse. Elas não pressupõem nenhuma sorte de restrição ao nosso poeta ou ao tipo de poesia que se procura cultivar com vistas ao drama humano do negro. Mas revelam de forma expressiva o poder de condicionamento externo da obra de arte. Se o "meio negro brasileiro" tivesse um mínimo de integração, os dilemas morais descritos poderiam ser focalizados à luz de experiências coletivas autônomas. Existiriam conceitos e categorias de pensamento que permitiriam apreender a realidade sem nenhuma mediação ou alienação, através de sentimentos, percepções e explicações estritamente calcadas nos modos de sentir, de pensar e de agir dos próprios negros. Na medida em que o negro, como grupo ou "minoria racial", não dispõe de elementos para criar uma imagem coerente de si mesmo, vê-se na contingência de ser en­tendido e explicado pela contraimagem que dele faz o branco. Mesmo um poeta negro do estofo de Oswaldo de Camargo não escapa a esse impasse, de enorme importância histórica: até onde ele perdu­rar, o negro permanecerá ausente, como força social consciente e organizada, da luta contra a atual situa­ção de contato, sendo-lhe impossível concorrer efi­cazmente para a correção das injustiças sociais que ela encobre e legitima.

Já o segundo ponto tem mais que ver com a di­nâmica da criação literária. Os padrões de produção artística e de gosto literário imperantes aboliram, lar­gamente, o influxo contínuo e produtivo das heranças culturais de que foram portadores estoques étnicos ou raciais considerados como “inferiores”. Ao aderir a tais padrões, o artista acaba sacrificando, sem o saber, riquezas potenciais insondáveis, algumas ligadas às suas energias pessoais, outras vinculadas à influência do ambiente social imediato. Um simples paralelo per­mitiria ilustrar claramente o que pretendo dizer. To­me como exemplo o futebol: em sucessivas gerações sempre contamos com alguns “magos da pelota” ne­gros e através deles conseguimos enriquecer gradati­vamente a nossa “arte de jogar”. Em grande parte, isso se deve à liberdade de expressão conferida ao jo­gador negro, que não encontra réplica na esfera da produção artística, sufocada por preconceitos de vá­rias espécies ou se elimina o concurso do negro e o aproveitamento de sua contribuição criadora, ou se estiola sua capacidade de renovação, submetendo-o a um processo de reeducação que o transforma, sem nenhum sarcasmo, em um escritor branco de pele preta. Embora não devamos levar o paralelo com o futebol longe demais, o que parece aconselhável seria uma reação positiva, pela qual o intelectual negro (e como ele qualquer intelectual identificado com determinada parcela da heterogênea civilização brasileira) repudiasse os freios que o isolassem do éthos de sua gente. Certas perdas culturais são irrecuperáveis; perdemos o poeta negro que recriava as tradições poéticas tribais. Todavia, precisaríamos perder também a própria faculdade do poeta negro de exprimir-se, através de sua poesia, como e enquanto "negro"? Se se desprendesse da tutela total do branco, é presumível que o escritor negro brasileiro estaria em condições de contribuir melhor para o enriquecimento da nossa literatura.

Um poeta da envergadura de Oswaldo de Camargo, se persistir em aperfeiçoar-se e em trabalhar duramente, poderá marcar com sua presença tanto os movimentos sociais e culturais do meio negro quanto a renovação de nossa poesia. O "grande homem de cor" torna-se, em si mesmo, cada vez menos importante em nossa sociedade. Em compensação, os frutos de sua contribuição pesam cada vez mais no fluxo da vida humana. Ninguém melhor que um poeta para revitalizar as aspirações igualitárias, um tanto adormecidas atualmente, que orientaram os grandes movimentos sociais negros da década de 1930. Ninguém melhor que um poeta para sugerir novos ru­mos no aproveitamento construtivo das energias in­telectuais dos “talentos negros”. Fala-se muito que vivemos numa era pouco propícia à poesia. Não obs­tante, o poeta conserva o fascinante prestígio que ad­vém da magia da palavra, indissoluvelmente associada à linguagem e ao raciocínio poéticos. O seu exemplo não só se propaga, como também cala fun­do. Isso é tão verdadeiro hoje como o foi no passado, embora muitos ignorem que não existe civilização sem poesia.

A questão está na qualidade da poesia. Em re­gra, o poeta negro brasileiro tende a entregar-se ao fascínio pela poesia de efeito dramático. A poesia de auditório, que adquire viço e arrebata os corações quando se atualiza através de um recital, com acom­panhamento ao piano. Aqui e ali Oswaldo de Camar­go fez concessões a esse tipo de poesia, enrijando-a com a substância crua da verdade e com sua admi­rável intuição poética. Malgrado o êxito invariável dessas composições, nas reuniões intelectuais das as­sociações culturais negras, elas estão longe de justifi­car as preferências que merecem. Os caminhos que unem a redenção social do negro à emancipação in­telectual do Brasil repousam sobre processos civilizatórios que reclamam uma poesia suscetível de inspi­rar e dirigir a ânsia de aperfeiçoamento contínuo do homem. Ela transparece em muitos versos e em al­guns poemas de Oswaldo de Camargo, principalmen­te naqueles em que o protesto negro encontra eco mais sentido e profundo. Se ela se tornará mais participante e militante, ou não, é impossível prever. Tudo depende do interesse que o poeta tiver pelos problemas humanos de sua gente e do sentido que imprimir, em função disso, às suas atividades criadoras. De minha parte, gostaria imenso que ele completasse o círculo de sua evolução intelectual, arrostando os ângulos inexplorados do protesto negro e libertando-se de influxos que ainda retém suas produções poéticas no limiar das experiências humanas do negro brasileiro.

Notas

1. Nota presente na edição de 30 poemas de um negro brasileiro (2022): texto publicado na primeira edição de 15 poemas negros, lançada em 1961 pela Associação Cultural do Negro. A obra é reproduzida integralmente neste livro, acompanhada de poemas presentes em O estranho (1984) e na antologia Luz & breu (2017).

2. Oswaldo de Camargo, Um homem tenta ser anjo. São Paulo: Supertipo 1959, p. 55.

3. Oswaldo de Camargo. Um homem tenta ser anjo, op. cit., p.73.

Referências

CAMARGO, Oswaldo. 15 poemas negros. Prefácio de Florestan Fernandes. São Paulo: Associação Cultural do Negro, 1961.

CAMARGO, Oswaldo. O estranho. São Paulo: Roswita Kempf, 1984.

CAMARGO, Oswaldo. Luz & breu: antologia poética 1958-2017. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2017.

CAMARGO, Oswaldo. 30 poemas de um negro brasileiro. Prefácio de Florestan Fernandes. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

 

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* Intelectual orgânico, Florestan Fernandes (1920-1995) marca presença na história das Ciências Sociais brasileiras como um de seus mais destacados pensadores, sobretudo no tocante às questões raciais que marcam o período pós-abolição. Dentre suas publicações, destacam-se Brancos e negros em São Paulo (1959, coautoria Roger Bastide), A integração do negro na sociedade de classes (1964), O negro no mundo dos brancos (1972), A revolução burguesa no Brasil (1974) e O significado do protesto negro (1989).

 

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