A culpa deve ser do sol

Paulo Dutra

Naquela época o itinerário das linhas de ônibus vinha numa plaquinha no teto em cima da cabeça do cobrador. De um ponto final a outro, estavam lá todos os nomes de ruas e avenidas no trajeto de ida e no trajeto de volta que cada linha percorria. Cada um nome mais difícil que o outro. Haddock Lobo. Brás de Pina. Visconde de Pirajá. Piraquara. Um monte de conde, visconde, marquês, barão. E um monte de Gal e Mal também. Gal Sezefredo. Gal Azeredo. Mal Fontenelle. Mal Abreu Lima. Fora os santos e as datas. São Francisco Xavier, sete de setembro. Até nome de árvore tem.  Rua da Laranjeiras. Rua do Jambo. Quase nenhum nome de mulher. Deve dar pra contar nos dedos. Carolina Machado. Rua Helena. Elisa de Albuquerque. Até nome de árvore tem mais que nome de mulher. Uma aula de história social e geografia do Rio de Janeiro ao mesmo tempo naquela plaquinha. Depois essa prática foi desaparecendo. Do banco de trás dava pra ler e reler todos os nomes das ruas e avenidas em cima do cobrador. Naquela época a porta abria em duas partes, pra dentro do ônibus. Era só meter a mão entre as borrachas da porta entre dois e escancarar. Um segura enquanto o outro desce. Sempre tinha alguém que do banco de trás perto da porta ajudava a segurar uma banda aberta até o último descer. Às vezes as garotas também desciam pela porta de trás. Também tinha o esquema de bater a moedinha no ferro pro motorista achar que era o cobrador. O cobrador naquela época ajudava o motorista batendo a moedinha pra avisar que o último passageiro já estava a bordo e que já podia fechar a porta ou pra abrir a porta pra um atrasildo que vinha correndo. Se ninguém desse sinal pra subir, só pra descer, era só bater a moedinha que o motorista abria a porta e aí era só descer. Depois chegaram aqueles ônibus em que as portas abriam prum lado só. Aí era mais fácil de segurar a porta aberta só com o pé apoiado ou com a mão também. Foi nessa época que ficou melhor andar na porta traseira do ônibus. As costas apoiadas no batente e o pé apoiado na porta davam sustentação e podia vir a curva que viesse, até a do viaduto de Madureira ou a do fim da Vila Militar, que era impossível cair. Na Avenida Brasil não dava não. Só no horário de rush porque aí o ônibus tava lotado mesmo e os homem não podiam fazer nada além de cansar de mandar subir. No horário normal se estivesse na porta o cassetete cantava na Brasil. Além do mais não tinha graça porque tirando o Caju, (ou Benfica, sabe-se lá) ali no Parque Alegria perto do sabão-português, é um trajeto quase em linha reta. A melhor linha era o 918 (Bonsucesso-Bangu), depois de Marechal Hermes quando atravessava a linha do trem pro outro lado, e qualquer uma que viesse beirando a linha do trem da zona norte à zona oeste do lado de cá da linha do trem, 383, 391 porque o trajeto sinuoso era o melhor pra andar pendurado na porta. Naquela época o preço da passagem ainda não era unificado. Ônibus que descia pro centro da cidade era mais caro. Claro as linhas funcionavam diferente (mente). Linha de bairro e linha pro centro. As intermunicipais nem se fala, o preço lá nas alturas. Pra ir pra Barra tinha que pegar dois ônibus, um pra chegar até o ponto final do 754 e depois o 754. No 754 era impossível andar pendurado por dois motivos. Um era a quantidade de seguranças que desciam a borracha e o outro era porque o ônibus passava na de Deus. No 754 tinha que pagar a passagem, mas às vezes o cobrador, com aval dos seguranças, deixava passar junto. Aí é que sobrava um troco que ia amarrado no cordão do short e ai de quem perdesse. Perder o dinheiro significava passar fome o dia todo na Barra e se arriscar a tomar um sacode dos seguranças no 754 na volta já quase de noitinha. Telefone, pescoção, tinha um deles que tinha uma vara tipo de goiaba e outro que andava com um chicote. Capitão do Mato misturado com feitor. Se arriscar não, na verdade o sacode era certo a não ser que eles tivessem já satisfeitos ou cansados e deixassem passar por de baixo da roleta. Com os seguranças do 754 nem os moleques da diDeus se metiam. Todo mundo tinha medo deles sem distinção ou exceção cabelo cor ou feição. No 754 em dia de praia era igual no trem da central, se tirasse o pé do chão não podia botar de novo porque parece que cada um tinha 4, 6 pés de tão abarrotado. As caravanas vinham de Bangu, Realengo, Padre Miguel, Senador Camará, pintando na Barra da Tijuca e não em Copacabana. Cantando “rema rema rema remador vou botar no cu do trocador (às vezes o cobrador se ofendia) se o trocador for vigarista vou botar no cu do motorista”, e na estrada do Catonho: “se essa porra não virar olê olê olá eu chego lá”. Devia dar medo mesmo, um galerão só de short, negros torsos nus deviam deixar em polvorosa mesmo a gente ordeira e virtuosa. Um sol de torrar os miolos, mas na hora que chegava perto da praia, o mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos e a maresia entrando pelas narinas, se esquecia o aperto. Primero dar um mergulho, pegar jacaré e depois ir pro canal atravessar na correnteza pro outro lado pra mergulhar da pedra. De vez em quando um saía com o coco rachado direto pra cidade do pé junto. De vez em quando os salva-vidas tiravam um que não aguentava atravessar de volta. De vez em quando não dava tempo de os salva-vidas tirarem e era mais um pra cidade do pé junto. Pra ser salva-vidas tinha que passar em testes físicos inumanos no concurso dos Bombeiros. Ser resgatado pelos salva-vidas significava (igual Pessanha) na frente de todo mundo, um esporro, que adjetivo nenhum é suficiente para descrever, e perder o resto da praia no postinho dos bombeiros em observação; o que era mais castigo do que outra coisa; fora a zoação que ficava pra vida toda. A cada mergulho, a cada jacaré e, principalmente, a cada caixote, uma conferida no short pra ver se a merreca ainda tava lá. Quando a fome já era maior e batia mais forte que as ondas, era caçar uma padaria que deixasse pelo menos um entrar. Mais de um e o portuga ameaçava chamar os homem. Dois pães pra cada. Mortadela e guaraná porque coca-cola faz digestão mais rápido e aí depois a fome batia de novo. Coxinha nem pensar. Tinha que comer no meio-fio e não deixar sujeira porque senão o portuga ameaçava não vender na próxima vez. Todo mundo conta o dinheiro pra ver se dá pra garantir a passagem do 754 de volta e o que sobra vira picolé, quase nunca sobrava. Tinha que ter a passagem, sem esse garante, na volta, era tomar um sacode regado a tapa na cara, pontapé e pescoção na certa. Depois do almoço era deitar na areia pra pegar um bronze que resultava em insolação, pele ardida, às vezes uma surra de cabo de vassoura da mãe (na pele ardida) e descascar igual cobra depois de uns dias. Antes do pôr do sol tinha que andar até o ponto final na Alvorada e encarar o ônibus lotado de novo só que agora aos bagaços dormindo em pé, mas só até chegar na de Deus, na hora que passava na diDeus tinha que ficar na atividade, sem dar mole, mesmo só de short. Antes do pôr do sol, porque passar na diDeus de noite era furada, mais arriscado que não ter o dinheiro da passagem. Sol. A culpa deve ser do sol. Depois era só pegar o 745 ou o 746 até a estação de Realengo. Abrir a porta na marra, no muque porque moeda não dava pra levar pra praia, e descer. Atravessar a Bernardo de Vasconcelos, a Avenida Santa Cruz virar à esquerda na Capitão Teixeira e à direita na Avenida Canal – até valão dá nome a ruas e avenidas, só mulheres que não (tem a Ana Neri também, a Olímpia Esteves, a Luiza Barata, mas nesta os ônibus não passam, esta não tinha lugar na plaquinha). Na Canal era cruzar o valão em frente ao Centro Interescolar Municipal Padre Leonel Franca e chegar sãos e salvos. As panelas que se cuidassem. As panelas sempre são vítimas, sempre sofrem e às vezes apanham.

 

(In: Aversão oficial: resumida, p. 71-74).

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