A oração do carrasco

(excerto)

Itamar Vieira Junior

 

O pai dá um machado para o filho com seu corpo frágil. Ele se equilibra para segurá-lo. Seus onze irmãos estão à volta e esperam em silêncio que o pai ordene a sentença. Há um irmão que olha com assombro. Outro com arguta curiosidade. Há outro irmão que pisca os olhos com aparente nervosismo. Outro coloca a mão na fronte para sombrear o olhar que se mistura à luz do sol. Há uma irmã que tem uma ínfima lágrima repousada em um de seus olhos. Dois irmãos estão muito próximos e são quase um, as sombras se fundiram no chão de terra seca. Outro irmão tem a boca entreaberta e a saliva brilha como a seiva de uma planta. Outra irmã, tão decidida e forte, nem pisca. Outra irmã tem os cabelos grossos com sua oleosidade impregnada do barro suspenso na atmosfera. Outro irmão é apenas uma alma atenta e nenhum dos outros o podem ver, nem mesmo sua sombra sobre a terra.

O pai é um homem forte e olha com atenção o filho equilibrar em suas mãos o pesado machado O filho primogênito logo será um homem e levará uma mulher para habitar uma nova casa: a povoará com filhos e o seu trabalho trará abundância e fartura sobre a terra. O pai, o último de uma linhagem de carrascos que atravessou gerações, agora o inicia no seu destino, sem que ao menos o filho saiba o que o espera. Aquele é o quarto ano de uma seca que parece não ter fim, mesmo para os que nessa terra fizeram morada. Os galhos secos são parte da paisagem de uma floresta de árvores mortas. Crispam o céu como uma teia de lanças à espera da água para fazê-los renascer de novo. O corpo desse homem, que se aproxima da meia-idade, se confunde com a terra sobre a  qual ele pisa, que recobre a parede de sua casa, terra que recobre como um manto o telhado que os protege, que se mistura ao suor dos corpos dos filhos, o encardido do lenço sobre a cabeça da mulher, recobre as penas das aves que resistem, e das carcaças mortas de sede espalhadas pelo chão. Terra que de tão seca é quase ar, como a água que evapora ao calor, e todos respiram terra, cheiram terra, são terra. Essa é a história da iniciação do filho carrasco.

O homem avança para trás da casa sob os olhares dos filhos, e o longo cacarejo de uma galinha será o som ao cortar o ar. O animal hesitante tenta escapar das mãos daquele homem convicto do seu ofício e de sua herança. Ele volta para o cenário da iniciação e as asas do animal batem , com seu corpo carregado pelos pés no infinito de terra que deixou o céu com um tom amarronzado. A galinha arqueia seu corpo e levanta no ar forçando seus pés contra a mão do pai. As crianças seguem com seus olhos todos os movimentos do animal. Mirradas penas se desprendem de seu corpo. O pai não recua e a repousa sobre o tronco do que um dia foi uma árvore. A mãe, ao perceber o alvoroço, espreita da janela de casa, sem manifestar nada, porque ela própria fizera tantas vezes aquele serviço e sabe que é chegada a hora dos filhos aprenderem. O pai amarra as pernas do animal que continua a berrar num lamento que o lembra dos urros dos prisioneiros a caminho da forca. O filho olha firme para o pai, mas é dominado pelo medo, o sangue foge de seu rosto, sua boca está pálida e inerte. Cerra os dentes. Todos os filhos continuam imóveis esperando que se concretize a sentença da galinha, escolhida sem razão entre outras que vagavam ciscando poeira na secura do chão.

O corpo repousa, as asas se fecham nas mãos do pai. Os pés estão amarrados. A respiração ofegante, da galinha e do menino, ritmada pela espera, audível desde a casa em que a mãe observava. A panela de água aquecia no fogão a lenha. O pai entrega as asas do animal ao filho-que-olha-assombrado, enquanto por trás do filho-carrasco apruma o machado a uma altura para que sua tarefa tenha o êxito esperado. “Desce o machado sobre o pescoço”. O menino, mesmo sob o sol forte do meio dia, sente uma corrente de ar frio percorrer seu corpo: teme ferir as expectativas de seu pai, severo no seu intento de educá-lo. “Não tenha pena. Senão ela não morre”. “Não tenha compaixão, senão ela sairá viva com o pescoço degolado”. Em pensamento, as palavras que o filho não podia ouvir: “Execute sua tarefa, meu filho, porque dela será feito o seu futuro e o de sua descendência”.

(In: A oração  do carrasco, 2017, p. 67-70).


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