O presente do velho 


Estava escuro o velho me acordou. Sentia a brisa morna que vinha da fresta na parede e roçava meus tornozelos.

─ Acorda! ─ ele disse. ─ Vamos dar uma caminhada ─ e antes que eu me levantasse, calçou-me com suas botas que há tempos usava. Até aquele momento, eu andava muito de pés descalços. Desconhecia qualquer calçado. Que diferença elas fariam? Botas de solado gasto e bico furado. Quando as coloquei, meus pés se perderam no interior de tão grande a grande diferença de tamanho. O cano delas chegou ao meu joelho.

Não lembro há quanto tempo caminhávamos. O silêncio que nos acompanhava, multiplicou a distância que percorríamos. Enquanto meus sentidos vasculhavam os campos, árvores e todo animal que aparecia, as visões davam-me um prazer noticioso. O velho caminhava de cabeça sempre voltada para frente como um bom cavalo carroceiro.

Morávamos num lugar onde nossos vizinhos eram os campos, árvores, e nossos ladrões: raposas e guaraxains. Hoje essas lembranças são embaçadas, iguais as que eu tinha da cidade, por serem raras as vezes que fui conhecê-la. Ainda assim, era sempre no mesmo lugar.

Sentia no meu pé uma ardência. Em cima dos dedos queimava como se houvesse fogo. As botas roçavam tanto, devido à imensa folga, que arrancavam minha pele. Nada disse para ele, apenas acelerei algumas passadas à frente e me sentei num cupinzeiro. Tirei a bota do pé esquerdo, estava com os dedos e o calcanhar em carne viva. Nem tirei a do pé direito.

─ Coloca isso! ─ ele me disse. Cruzou por mim e, sem voltar-se para trás, gritou:

─ Coloca de volta! Deixa de besteira! ─ e caminhava. O sol refletia o suor na sua pele negra e enrugada.

Ele se distanciava. Recoloquei as botas e saí correndo. Uma tortura foi o seu presente. Melhor não ter me dado nada, como sempre fez. Na primeira oportunidade, jamais recolocaria aquelas botas ou qualquer outro calçado que me dessem.

Chegamos numa encruzilhada. O velho olhou para o sol, depois, sentou-se num barranco. Sentei ao seu lado. Queria perguntar o que estávamos fazendo ali. Não tinha coragem para tanto. Hoje, dou exemplo da mais pura falta de intimidade entre duas pessoas. Ficamos sentados naquele barranco por um longo tempo.

Passaram peões. Tocavam bezerros desgarrados. Lagartos atravessaram a rua empoeirada. O dia tornava-se menos quente. Aproximava-se uma estranha condução. Deslocava-se sem ajuda de cavalos e seu ronco fez os pássaros voarem das árvores. Foi a coisa mais estranha e fascinante que vi. Conhecia o automóvel, ainda eram raros e muitos homens tinham mais fé no cavalo. Mas não demorariam a tomar as cidades algum tempo depois. O velho se ergueu, ajeitou a bombacha e cruzou os braços em sua típica postura de espera. Eu apenas o imitei, como sempre fazia em tudo. À medida que o veículo se aproximava, tinha curiosidade ainda maior de saber quem esperávamos. A condução parou a alguns metros. O homem de casaca, calça e sapatos pretos, desceu. Tive vontade de rir de seu bigode retorcido. Ele ficou ao lado da carroça, próximo do condutor: um velho de lábios encobertos pela barba acinzentada. Era um rosto que, além das roupas, desconhecia. Havia uma grande diferença de todos os outros homens que havia visto. O velho me pegou pelo braço e me levou até o homem. Não se cumprimentaram, mas o velho amoleceu através do olhar úmido e num leve sorriso desajeitado.

─ É um bom negrinho ─ e me empurrou. ─ O senhor vai gostar dele. O homem mandou que eu entrasse. Entrei no automóvel. No seu interior, havia uma mulher de rosto delicado e pele amorenada. Ela usava um vestido branco detalhado em bordados cor-de-rosa. Seus olhos eram castanho-claros. O homem subiu, fiquei entre os dois. O veículo movimentou-se, fez o retorno. Mal pude me virar para ver o velho. Ele sentou-se outra vez no barranco. Vi desaparecer sua imagem enquanto as árvores passavam. Os galhos balançavam-se como braços que se despediam ao vento.

A mulher me olhava como se houvesse descoberto algo gracioso. Olhou para meus pés e pediu que eu tirasse as botas. Tiramos ambas com sua ajuda. Ela agarrou meus pés.

─ Pobre criança! ─ ela disse. ─ Não devia tê-lo deixado ─ e atirou as botas no campo.

Olhei para aquele par de botas velhas que jaziam na grama até minha visão perdê-la coma distância. Fiquei observando os meus dedos esfolados como única recordação de um estranho presente.

(Guerrilha e Solidão, p. 83 – 85)

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